MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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1.4 – Rap e suas tensões: literatura? Canção?

Como vimos anteriormente, o rap surge em meio às transformações sociais, políticas e econômicas que ocorreram nos anos de 1980, época de intensas e profundas mudanças mundiais e nacionais tais como: a dissolução da União Soviética, a queda do Muro de Berlin, instalação da chamada Globalização, o surgimento da Internet e o aumento significativo da influência da mídia televisiva sobre a vida social (surge daí a sociedade do espetáculo). No Brasil, o reflexo destas transformações acendeu um intenso desejo de participação social, nas decisões políticas, principalmente das classes menos favorecidas econômica e politicamente (Cf. ZALUAR, 1998). Conhecer um pouco do cenário sócio-político brasileiro dos anos de 1980 e 1990 é relevante para compreendermos as manifestações sociais que ocorreram nesse período e a postura que foi adotada por parte da população excluída e marginalizada.
Após muito tempo de controle militar, a eleição (mesmo que indireta) do primeiro presidente civil pós-regime militar, deu ao Brasil ares mais democráticos. Na prática, isso assegurou à maioria da população o direito de participar da vida política nacional, pelo menos no papel. A consolidação do processo de redemocratização do país, a partir da formulação da Constituição de 1988, trouxe consigo o que podemos chamar de uma certa euforia social, uma renovação da esperança, calcada numa possibilidade de crescimento econômico, desenvolvimento cultural e possível amenização da forte exclusão social há muito presente em nosso país. Porém, tempos depois se percebeu que apesar da instalação de um Estado formalmente democrático e do aumento, ainda que tímido, da participação popular na vida política, a realidade das camadas menos favorecidas economicamente continuava a mesma e para alguns ficara até pior. Como consequência disso, começam a surgir movimentos com certa organização reivindicando principalmente a reforma agrária (MST), devido à imensa concentração de terras em poucas mãos. Compõem esse quadro, as manifestações sindicais, de onde emergem Luis Inácio Lula da Silva e a voz das camadas excluídas contra os altos índices de desemprego do período e a considerável exclusão social que atinge principalmente a população de cor negra. Nesse contexto, pode-se dizer também que a (re) democratização brasileira trouxe à tona a discussão sobre o caráter multirracial da nossa sociedade, sobretudo, com relação ao negro (Cf. MUNANGA, 2006, ZALUAR, 1998).
Nesse quadro de democracia pós-regime militar algumas questões incômodas começavam a ganhar voz, tais como: o porquê ainda era insignificante a presença de negros no alto escalão do funcionalismo público, no poder judiciário, nas forças armadas, no alto clero e nos comandos das polícias civis e militares (Cf. MUNANGA, 2006) A participação do negro na sociedade estava muito aquém em vista de outros avanços democráticos. É em meio a esse contexto que surge o discurso crítico-subversivo do rap brasileiro. Apresentamos, agora, algumas características desse tipo de discurso, a saber:

  • resistência, enfrentamento e contestação frente ao discurso hegemônico promovido por uma sociedade excludente;
  • denúncia à ausência do Estado nas comunidades periféricas (favelas);
  • protesto e revolta contra exclusão social historicamente imposta às suas comunidades;
  • busca por uma conscientização sociopolítico dos indivíduos inseridos nas realidades daquelas comunidades;
  •  postura de enfrentamento a um discurso que desqualifica, reduz, exclui  e oprime seres humanos em função de sua cor de pele e/ou posição social.
  • transformação  do presente visando um melhor futuro para suas comunidades;
  • desconstrução de uma imagem depreciativa e de submissão pacífica;
  • promoção do orgulho e da auto-estima de ser negro a partir da construção de uma auto-imagem positiva;
  • ênfase num desejo de libertação tanto individual como coletiva.

Com isso, aliás, podemos dizer que pelo simples fato de existir, o rap já se torna subversivo, isso no sentido de ser a voz daqueles que ao entender do discurso hegemônico, não deveriam nunca falar (Cf. SPIVAK, 2010; FOUCAULT, 2006; LEJEUNE, 2008). O MC parece tomar para si o dever de denunciar a falta de voz, de participação social das comunidades desprovidas representação política. Sem dúvida, está engendrada no discurso do rap uma espécie de ideologia ativista que – no limite – se manifesta a partir de uma conscientização sociopolítica dos indivíduos oriundos das periferias. Nesse sentido, são indivíduos que conseguiram absorver, a seu modo, enunciados orais e escritos, mais que isso, aprenderam a dominar o código linguístico da escrita o qual resultou na produção de textos que são empregados em situações de participação social. Desses indivíduos, pode-se dizer que sua ação assemelha-se a um fazer intelectual (Cf. SAID, 2005; SARTRE, 1999; AREDENDT, 2007).

1.4.1- Rap é literatura?
           
           
Como vimos rap é um acrônimo. Refere-se à Rythmn and Poetry (ritmo e poesia). Partindo disso, o desenvolvimento dessa discussão se dá a partir das seguintes perguntas: a) o rap sendo poesia é literatura?  a) sendo ritmo é música?
Parece fácil responder que rap é poesia. As rimas e a ênfase na sonoridade são elementos suficientes para falarmos que o rap é poesia. Nada disso, contudo, responde às nossas questões feitas acima. Sobretudo, porque a controvérsia não é de hoje e os conceitos seja de literatura, seja de música, não são inequívocos.
De fato, muitas são as possibilidades de respostas a essas perguntas, seja para negar seja para afirmar a existência de um caráter literário no rap produzido atualmente. Sobre isso, Écio Salles é categórico “é evidente que existem dificuldades para reconhecer no rap uma forma de literatura – e, diga-se de passagem, mesmo o reconhecimento do status de música lhe é dificultado” (2004, p. 90). Como se vê, não é nada fácil conceituar o rap devido, talvez, aos múltiplos e fragmentados contextos que caracterizam a ordem social na contemporaneidade. Desse modo, faz-se necessário lançar um olhar panorâmico sobre os principais conceitos do que se entende por literatura e música contemporaneamente.
Como se sabe as noções sobre o que é literatura variam muito de acordo com a época, no entanto, não se pode negar que boa parte das ideias de Platão e Aristóteles ainda fornece as bases para se esboçar uma resposta a essa pergunta. Isso porque não podemos esquecer ainda que grande parte da cultura ocidental seja herança dos gregos antigos. Assim, estabelecer um conceito de literatura não é nada simples, pois depende de contextos históricos, referências culturais e valores sociais. É relevante entender que a noção de literatura é compreendida, de modo geral, como sendo o exercício artístico da linguagem, ou seja, está diretamente ligada à arte. Desse modo, é muito mais coerente, falar em “conceitos de literatura”, pois diante de uma variedade tão grande de produção cultural escrita como a que se desenvolve nos nossos dias, seria um equívoco proclamar um único conceito de literatura, já que, ao se fazer isso, será excluída toda uma gama de produções (incluíndo-se aí o rap) que também utilizam a linguagem verbal para se expressar artística e culturalmente, como afirma Compagnon:

Identificar a literatura com o valor literário (os grandes escritores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um texto é literário subentende sempre que um outro não é (COMPAGNON, 2003, p.33).

Como se vê, é de imensa complexidade afirmar ou negar a literariedade de um texto ou obra, já que isso, como afirma o autor de O Demônio da Teoria (2003), gera um atestado de exclusão.
Para Jean-Paul Sartre a literatura é e deve sempre ser engajada, deve ser um agir no mundo, um fazer intelectual que intervém na realidade social para muda-lá, privilegiando sempre a liberdade humana. É o caminho por onde se deve agir no mundo público, ou seja, produzir literatura é desse modo, produzir um discurso que promova uma espécie de engajamento sócio-político por parte de seus produtores:

Pois não se pode exigir de mim, no momento em que percebo que minha liberdade está indissoluvelmente ligada à de todos os outros homens, que eu a empregue para aprovar a servidão de alguns dentre eles. Assim, quer seja ensaísta, panfletário, satirista ou romancista, quer fale somente das paixões individuais ou se lance contra o regime social, o escritor, homem livre que se dirige a homens livres, tem apenas o único tema: a liberdade. [...] Felizmente a maioria - compreendiam que a liberdade de escrever implica a liberdade do cidadão. Não se escreve para escravos. A arte da prosa é solidária com o único regime onde a prosa conserva um sentido: a democracia. Quando uma é ameaçada, a outra também é. Qualquer que seja o caminho que você tenha seguido para chegar a ela, quaisquer que sejam as opiniões que tenha professado, a literatura o lança na batalha; escrever é uma certa maneira de desejar a liberdade; tendo começado, de bom grado! ou à força você estará engajado (SARTRE, 2004, p. 52-3).

 
Contemporaneamente, Márcia Abreu, em Cultura letrada literatura e leitura (2006), amplia a discussão, pluralizando o conceito. Assume uma postura crítica perante o rançoso conceito clássico de literatura. Na obra, a autora defende, entre outras, a ideia de que é imprescindível abrir mão de empregar aos textos contemporâneos um único critério, o clássico principalmente, de avaliação, e que se passe a compreender cada texto e cada obra dentro do sistema de valores em que foram criados. Ou seja, é preciso que se olhe numa direção onde os padrões clássicos sejam rechaçados, isso no sentido de serem o modelo único de avaliação, como ainda muito se faz. Afirma ainda a autora: “a apreciação estética não é universal: ela depende da inserção cultural dos sujeitos. Uma mesma obra é lida, avaliada e investida de significações variadas por diferentes grupos culturais” (p.80). E vai além, expõe um exemplo interessante de como é equivocada a questão da avaliação, dos textos, que pode nos ajudar a pensar o rap, nesse contexto. Pondera a autora:

Se avaliarmos Hamlet com os padrões africanos, a tragédia parecerá um completo non-sense. Da mesma forma, se um poema moderno, um samba-enredo ou uma tragédia forem julgados com os critérios próprios à poética dos folhetos parecerão mal feitos e esteticamente ruins. A convenção dos folhetos não serve para avaliar outra coisa que não os folhetos [...] Na maior parte do tempo, o gosto estético erudito é utilizado para avaliar o conjunto das produções, decidindo, dessa forma, o que merece ser Literatura e o que deve ser apenas popular, marginal, trivial, comercial (ABREU, 2006, p. 80).

Pode-se dizer que as afirmações de Abreu vão ao encontro das de Compagnon. Ambos direcionam seus olhares apontando, sobretudo, a necessidade de se lançar um olhar contemporâneo para a produção textual da atualidade. Ou seja, para ambos, o que se produz atualmente deve ser avaliado a partir de critérios contemporâneos, concernentes aos contextos em que o objeto cultural a ser avaliado pertence. Isso deve ser feito, para que não se corra o risco de se atribuir valor inferior a um texto e superior a outro devido à origem de seus produtores e as posições sociais que ocupam, ou ao fato de o gênero ser novo em si. Sobre isso Abreu pondera ainda que:

[...] a literatura erudita pode interessar a comunidades afastadas da elite intelectual, não porque devam conhecer a verdadeira literatura, a autêntica expressão  do que de melhor se produziu no Brasil e no mundo, mas como forma de compreensão daquilo que setores intelectualizados elegeram como as obras imaginativas mais relevantes para sua cultura. Do mesmo modo, pode-se estudar e analisar os textos não canonizados, o que para alguns significará refletir sobre sua própria cultura e para outros, o conhecimento das variadas formas de criação poética ou ficcional. Não há obra ruins em definitivo. O que há são escolhas – e o poder daqueles que as fazem. Literatura não é apenas uma questão de gosto: é uma questão política (ABREU, 2006, p. 112).    

Continuando a discussão em torno dos conceitos de literatura, agora, a partir de uma possível manifestação literária existente no rap, Écio de Salles, ao retomar o conceito de “literatura menor” cunhado por Deleuze e Guattari, aponta que por esse viés o rap pode sim ser entendido como literatura, afirma ele:

Poderíamos falar do rap como uma literatura menor? Creio que sim. Afinal, não tenho dúvida que os negros, de qualquer parte do mundo, que fazem rap são também autores “menores”, que inclusive se expressam numa língua peculiar, marcada pelos traços de um modo negro de ser. Ressalte-se ainda que aqui estamos falando de uma minoria não em termos absolutos, mas uma minoria política, os negros e pobres; o que nos leva à segunda característica. Esta refere-se ao fato de, nas literaturas menores, tudo se tornar político. Se nas grandes literaturas a relação entre os diversos casos individuais formam um bloco único, nas literaturas menores o caso é outro: seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política (SALLES, 2004, p.93).

O mesmo autor aponta ainda um efeito de resistência nesse tipo de enunciação:  

No rap, pode-se detectar essa característica tanto por sua constante enunciação de uma identidade disruptiva quanto pelo caráter combativo das falas e das atitudes dos rappers, voltados contra uma ordem social que consideram racista e opressiva (SALLES, 2004, p.94).

Como se vê, Salles acredita e defende que o rap pode sim ser considerado literatura, mas não aquela feita por homens brancos, ricos e academicamente letrados, produzida, não raro, para disseminar o discurso dominante de exclusão sobre outros grupos sociais. Entende o rap como sendo fruto (ainda que indesejado) de uma sociedade que exclui e oprime os indivíduos pertencentes a grupos sociais vistos como sendo minorias políticas como é historicamente o caso dos negros e dos pobres.
O gênero rap pode ser entendido como um suporte, criado por indivíduos excluídos, utilizado para disseminar uma ideologia ativista na esfera sociopolítica por meio de um discurso que vai de encontro ao discurso dos grupos dominantes, um contra-discurso. Uma espécie de revide, uma tomada consciente de posição por parte de indivíduos historicamente excluídos, e que agora deixam ou tentam deixar a condição de objetos do discurso para serem sujeitos do discurso: “não foi sempre dito que negro não tem vez então/ olha o castelo irmão/ eu era a carne agora sou a própria navalha” (RACIONAIS MCs, 2002). Desse modo, o rap possibilitou que indivíduos, tradicionalmente excluídos como sujeitos do processo simbólico, pudessem entrar em cena para produzir sua própria imagem, dando origem a uma espécie de deslocamento do discurso pautada numa intensa movimentação cultural advinda não mais dos centros, mas dos guetos.
A discussão a respeito de conceitos de literatura serve para pensarmos este gênero como sendo, na contemporaneidade, uma manifestação artístico-cultural, seja da palavra cantada seja da palavra escrita que apresenta ao mesmo tempo um discurso lírico e crítico subversivo. Ou seja, o rap é entendido aqui como sendo um discurso de sujeitos excluídos com intuito de construir uma auto-imagem positiva e um lócus de enunciação que sai da margem rumo o centro e que apresenta traços artísticos em sua composição. Faz isso utilizando uma linguagem artística – a poesia –, que por muito tempo foi sinônimo de arte erudita produzida para retratar e enaltecer os “feitos” dos povos dominantes (exemplo disso é a epopéia), mas que no rap se torna um discurso de resistência frente à condição de exclusão e subalternidade de indivíduos de cor negra, pobres e geralmente sem acesso ao mundo letrado da academia. Pois, como afirma Salles:

O rap, contudo, se estabelece de maneira a confrontar os critérios dessa cultura letrada. Portanto, pode-se dizer que o rap é uma forma de expressão desterritorializada não somente em relação à língua na qual se expressa, mas – uma vez que privilegia a voz no lugar da escrita desterritorializada em relação à própria literatura numa acepção mais ortodoxa (SALLES, 2004, p.96).

1.4.2- O rap é canção?

Aparentemente parece ser mais fácil, num contexto mais amplo, reconhecer no rap o estatuto de música. A batida firme que acompanha o canto dos MC’s atesta o ritmo no qual o rap se estrutura. Porém, isso ainda é pouco para sermos categóricos em afirmar que o rap é música e menos ainda que é canção. Por isso, faz-se necessário buscar conceitos que apresentem um melhor embasamento teórico sobre esse assunto.
Genericamente, o que se entende como sendo música vai desde composições milimetricamente organizadas como as sinfonias até formas aleatórias e improvisadas como o jazz (TATIT, 2004). Constitui-se basicamente em combinar sons e silêncio seguindo uma pré-organização ao longo do tempo. É considerada por diversos autores como uma prática cultural e humana. Atualmente não se conhece nenhuma civilização ou agrupamento que não possua manifestações musicais próprias. Embora nem sempre seja feita com esse objetivo, a música pode ser vista como uma forma de arte, entendida por muitos como sua principal função.  
No imaginário coletivo popular tudo é música, seja o rap, o sertanejo, o axé, o funk, o rock, o samba, o choro, a bossa nova e todos os outros ritmos que utilizam o som e o silêncio. No entanto, afirmar que tudo é música, pelo fato de todos possuírem ritmo, nos remete a mesma problemática que decorre no campo da literatura, pois, como vimos, nem todo texto que utiliza a linguagem escrita artisticamente é considerado literatura; da mesma maneira que nem todo ritmo é música. Essa problemática se levanta também na música, já que os conceitos aplicados também variam muito de acordo com a cultura e o contexto social de cada comunidade.
Dentro da esfera das “artes”, a música pode ser classificada como uma arte de representação. Característica também encontrada na literatura, claro que guardadas as devidas singularidades. Assim como na literatura, existem a prosa e o verso que se desdobram em gêneros como romance, conto, crônica, poesia – a música também é dividida em gêneros. Contudo, as linhas divisórias e as relações entre os gêneros musicais são muitas vezes sutis, algumas vezes abertas à interpretação individual e ocasionalmente controversas, como muito acontece na literatura.
De acordo com Katia Maheirie (2003), a música é uma forma de linguagem, expressão do pensamento afetivo e possui uma função simbólica, posto que revela e traduz uma época ou um fato, necessitando ser compreendida como um produto histórico-social:

[...] é possível afirmar que ela (a música) produz elementos novos no cotidiano dos sujeitos, constituindo-se como uma mediadora na construção de identidades coletivas. Cada característica que compõe a música popular nos seus diversos gêneros e estilos participa do cotidiano dos sujeitos. O sujeito subjetiva tais características e as objetiva de volta, em forma de idéias, posturas, modo de andar, falar, vestir, dançar e de perceber o mundo em que está inserido (MAHEIRIE, 2002, p.41).
Em termos brasileiros, Música Popular Brasileira (MPB) é o produto resultante de uma ideologia que surge por volta de 1920, no intuito de disseminar uma ideia de “povo brasileiro”, algo utilizado pelos republicanos para dar a intenção de coesão entre as camadas mais e menos abastadas da sociedade. O samba foi o gênero mais utilizado nessa ideologia (veremos isso de forma aprofundada, mais adiante). Associa-se ai elementos extra-musicais, como textos (letra de canção), padrões de comportamento e ideologias. É subdividida em incontáveis subgêneros distintos, de acordo com a instrumentação, características musicais predominantes e o comportamento do grupo que a pratica ou ouve. Dentro da esfera da MPB está a canção. Esta tal qual a conhecemos hoje, sempre foi utilizada para vincular conteúdos que expressavam prazer e dor, talvez, por isso não raro veremos a canção sendo o instrumento de expressão dos prazeres e dores de ricos e pobres, negros e brancos, orientais e ocidentais. Contudo, a canção atualmente está em meio caos do mundo contemporâneo e por isso sofre influências de mercado que a coloca, assim como a literatura, e as outras manifestações artísticas nas prateleiras do capitalismo de consumo.
No Brasil, a canção está associada a movimentos culturais populares, daí surge à sigla MPB. Está consolida-se somente após a urbanização e a industrialização brasileira e com a formação de uma  sociedade de consumo.  Tornou-se o tipo musical icônico do século XX, após ser tomada como um dos principais produtos da indústria cultural. Atualmente segue tendências e modismos e muitas vezes é associada a valores puramente comerciais, porém, ao longo do tempo, incorporou diversas tendências vanguardistas (Cf. TATIT, 2004). 
No conceito Luiz Tatit (2004), canção é a composição que se forma da junção entre duas linguagens distintas: a melodia musical e o texto literário. Nela, o cancionista se equilibra, conseguindo cativar  a confiança do ouvinte,  muitas vezes intuitivamente, demonstrando domínio entre os vários elementos melódicos e linguísticos, numa entoação próxima do coloquial. É exatamente na interação entre o texto linguístico e o texto musical que a canção constrói o seu sentido (Cf. TATIT, 1994). A partir dessa teoria, Tatit vem propondo um método de análise da canção que identifica a estreita ligação entre ‘fala’ e ‘canção’, evidenciando os diversos níveis de relações existentes entre ‘letra’ e ‘melodia’. Dessa maneira, é possível perceber como se dá a construção do sentido numa obra que usa dois sistemas de significação distintos: um texto linguístico sustentado por um texto melódico.
Como se vê, definir o que é canção, assim como o que é literatura, também não é nada fácil devido aos múltiplos contextos interpretativos e culturais em que essas manifestações artísticas são produzidas. No entanto, o que se percebe é que quando se trata de conceituar música, as referências se dão sempre em torno dos sons produzidos por instrumentos, não fazendo referência à expressão escrita ou cantada. O texto escrito é considerado um elemento extra-musical, algo não essencial à música, chegando a ser afastado por alguns gêneros como o Erudito e o Clássico. Por outro lado, a partir do conceito de canção proposto por Tatit, vimos que na canção a palavra escrita, a expressão verbal, é de extrema relevância, é o núcleo, sem ela a canção não existe. Desse modo, portanto, se tentarmos enxergar o rap como sendo música tal qual reconhecida como gênero puramente instrumental e rítmico será um equívoco, pois no rap o ritmo e a palavra escrita/cantada são indissociáveis. Sendo assim, o rap talcomo é constituído atualmentepode ser compreendido como um híbrido de música popular, de canção e de poesia, de ritmo e fala, de entoação e palavra escrita.
Num contexto mais amplo Salles, baseado em Zumthor, aponta e defende o rap como sendo:

[...] um discurso marcado, socialmente reconhecido como poético, dirigindo o foco desse reconhecimento para a recepção. Por esse critério, a canção pode também ser reconhecida como objeto dos estudos literários. É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito, (ou, de uma forma geral, o texto literário), é sentido como a manifestação particular [...] de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (SALLES, 2004, p. 96).

Assim, o que fica visível no rap é a sua capacidade de apresentar o que muitos tentam esconder – a realidade social, econômica e cultural – de uma parcela da sociedade, a negra.  E também a valorização de seus produtores como agentes discursivos: “Eu quero é nos devolver o valor, que a outra raça tirou” (RACIONAIS MCs, 1997). Contudo, isso não esgota os conceitos sobre o rap e a organização social e intelectual de seus produtores.