MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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1.5- O rap e seus diálogos possíveis: repente, reggae, rock, samba

O presente subitem procura aborda a pluralidade de diálogos possíveis do gênero rap com outros gêneros musicais. Assim sendo, serão vistas em seu decorrer algumas continuidades que aproximam o rap de outros quatro gêneros, respectivamente: o repente, o reggae e o rock e o samba. Isso é feito sob a consciência de que há ainda inúmeras possibilidades de convergência do rap com outros gêneros, no entanto, acreditamos que os escolhidos aqui nos dão um ótimo panorama emblemático.
Não raro, em entrevistas cedidas a jornais e revistas alguns MCs (Gog, Rapadura, Criolo, Mano Brown) compartilham a opinião de que há uma grande proximidade entre o rap e o repente brasileiro. Embora seja sabido que ambos são gêneros musico-poeticos que apareceram em épocas, lugares e ambientes completamente distintos. Sendo assim, não será um equivoco afirmar que há um dialogo desses gêneros pelo menos no que diz respeito à lida com a palavra rimada e metrificada. Além disso, podemos apontar também como sendo característica convergente o caráter marginal que os acompanham, isso no sentido de serem gêneros que são cultivados e praticados por uma parcela da sociedade que historicamente sofreram e sofrem com a exclusão sócio-política em nosso país, não raros, negros e nordestinos. O repente é reconhecido como sendo a arte do verso metrificado e da rima,assim como o rap é reconhecido como ritmo e poesia. Dentro do repente existe uma vertente que se caracteriza pela capacidade de improviso dos versos pelo enunciador, a embolada cujo seu produtor recebe o nome de embolador. Também no rap há uma vertente que se aproxima da embolada, o freestyle que consiste basicamente na rima de improviso a partir de um mote.  
Recentemente, poetas repentistas e rappers tem começado a cruzar suas artes, num movimento que recebe o rítmico nome de “rap-rep”, podemos dar como exemplo os artistas Zé Brown e Rapadura, este último traz no nome uma alusão ao rap e ao mundo nordestino do repente e da embolada. Através do contato com a realidade local construíram uma ligação entre ritmos brasileiros como o repente, literatura de cordel, a embolada e as batidas do hip-hop. Essa mistura é possível devido a algumas afinidades entre o rap e o repente, através de certas características que os dois ritmos têm em comum, principalmente versos livres, rimas repetidas, as batidas rítmicas e o verso canto-falado e rimado, desde então ambos passaram a compor letras de rap com batidas de embolada. Isso tudo pode ser constatado na parceria feita entre GOG e Rapadura no poema intitulado “A quem possa interessar...” (2008), que é um hibrido de rap e repente, segue:    

E assim vou na missão, nordestino
Sentindo, migrando, sentindo o toque do destino
Sei que não tô no padrão, esquisito eu resisto
Por isso que não me visto do que já estava previsto
Quando GOG falou: aí tá vindo o rapadura
Todo mundo até pensou: é brincadeira!
[...]
Pra permanecer, com bravura, elevando às alturas,
Se segura com postura pra fortalecer
Não estou pra aqui pra ser mais um, pra fazer o show
Pra descer do palco depois ir embora
Se eu não falar com alguém, serei mais um ninguém
E também não terei uma história (ora!)
Tem que por o pé no chão, sentir a multidão
Visitar comunidades, conversar com os habitantes
Se apenas gritar e pedir por barulho estarei tão distante
É como rebeldia, vai passando, tocando o preto
E despertando rebeldia que não passa, ultrapassa
Entrelaça nossa raça e se liberta da amordaça
Interpreta e manifesta a vossa massa
(RAPADURA, 2008)

Bruno Zeni aponta que o diálogo entre o rap e o repente esta na esfera de uma possível troca de conhecimentos culturais: “O hip-hop tem muito a aprender com o repente. Acho que o repente pode aprender um pouco com o hip-hop também” (2004, p. 28).
A abordagem se dará agora a partir dos diálogos possíveis entre o rap e o reggae. Assim como o rap o reggae também nasce na Jamaica, porém nos anos 60, inserido numa ideologia de protesto quase utópica de não violência, amor e liberdade. Difundido por Bob Marley, que é considerado por muitos como sendo seu inventor, esse gênero já nos anos de 1960, abordava todos os temas que hoje são abordados pelo rap.

A necessidade de justiça social, de “verdade e direitos”, espelhava os sentimentos dos negros pobres. Fratricídio político, escassez econômica e desorientação social forçaram respostas ambivalentes de muitos pobres urbanos e ajudavam a erodir os laços da comunidade que começava a desenvolver-se. A despeito disso, a música continha uma certa solidariedade. Forneceu um ambiente estético. Apesar do conteúdo, algo mais se desenvolveu: moralidade, protesto sem medo e transcendência da música. Tais qualidades, evidentes no reggae atual, já existiam quando o rock steady se transformou em reggae, ao final da década de 60 (CARDOSO, 1997, p. 42).

O reggae chega ao Brasil por volta de 1970, sem perder suas raízes de denuncia e protesto.  As bandas brasileiras, geralmente compostas por negros, incorporam o reggae como um gênero discursivo totalmente ligado a conscientização política, a luta contra a exclusão social e, sobretudo, ligada a construção de uma auto-imagem positiva do povo negro. Podemos tomar como exemplo disso um fragmento da música “Palmares 1999”, da banda brasileira de reggae Natiruts:

A cultura e o folclore são meus
Mas os livros foi você quem escreveu
Quem garante que palmares se entregou
Quem garante que Zumbi você matou
Perseguidos sem direitos nem escolas
Como podiam registrar as suas glórias
Nossa memória foi contada por vocês
E é julgada verdadeira como a própria lei
Por isso temos registrados em toda história
Uma mísera parte de nossas vitórias
É por isso que não temos sopa na colher
E sim anjinhos pra dizer que o lado mal é o candomblé
A energia vem do coração
E a alma não se entrega não
[...]
A influência dos homens bons deixou a todos ver
Que omissão total ou não
Deixa os seus valores longe de você
Então despreza a flor zulu
Sonha em ser pop na zona sul
Procura as vias do passado no espelho, mas não vê
E apesar de ter criado o toque do agogô
Fica de fora dos cordões do carnaval de Salvador
(NATIRUTS, 1999)
 

O poema exposto acima é emblemático para mostrar a continuidade dos temas abordados pelo rap e pelo o reggae, issono sentido em que aponta a aculturação da cultura africana pela cultura  e a exclusão social do homem negro. Esses diálogos são reafirmados ainda partir das parcerias realizadas entre seus artistas. Podemos visualizar alguns exemplos em MV Bill e Cidade Negra, que juntos gravaram a música “A voz do excluído”, assim como Gog e Natiruts, com a música “Quem planta preconceito”, só para ficarmos em alguns exemplos. A constante preocupação com as raízes africanas pode ser visualizada nas temáticas e nos ritmos das canções, na vestimenta e no comportamento de seus adeptos. As letras se ocupam, na maioria das vezes, de temas que tratam da exclusão social e cultural, da discriminação racial, da pobreza, da violência policial e civil. Também apontam para as possíveis soluções para superar tal condição de sofrimento, versando sobre amor, união, fé e solidariedade. Assim, tanto o reggae, quanto o rap, se apresentam como instrumentos de resistência, protesto, manifestação e preservação da população negra e pobre. Neste sentido, conforme aponta Silva (1998), a música pode ser entendida como uma tentativa de superar as barreiras linguísticas, a repressão política e religiosa para atuar como elemento de identificação.
A partir disso, pode-se perceber que o rap e o reggae possuem a mesma matriz histórica – a cultura africana, fato que participa da construção, de forma significativa, de toda a produção artística de ambos os gêneros. Neste sentido, desde suas origens até os dias atuais, o rap e o reggae permaneceram predominantemente associados aos grupos juvenis de periferia e afrodescendentes, tendo como característica central a expressão da arte como manifestação política, conservando a rua como referência não apenas de expressão, mas de produção artística. Reflexo disto são as semelhanças encontradas em todo o processo histórico de ambos os gêneros musicais, que nasceram das experiências de sofrimento vivenciadas pela população negra e pobre, a partir das quais construíram um discurso de resistência e de re-elaboração da identidade negra. 
Outro diálogo possível do rap é com uma vertente do rock nacional mais politizada, mais engajada com os problemas sociais. Um exemplo dessa vertente é a banda O Rappa, que surge na cena musical brasileira nos anos de 1990, apresentando uma musicalidade não vista até então. Assim como ocorre no rap, as letras do Rappa, que na estrutura do nome trás o acróstico rap, tratam detemas que denunciam o preconceito, a discriminação, o racismo, a violência policial e a exclusão social vivenciadas, diariamente, pelas comunidades negras habitantes das periferias, principalmente as dos grandes centros. Isso pode ser constatado nas letras abaixo:
                            

Tudo começou
Quando a gente conversava
Naquela esquina alí
De frente àquela praça
Veio os “homi”
E nos pararam
Documento por favor
Então a gente apresentou
Mas eles não paravam
Qual é negão? qual é negão?
O que tá pegando?
É mole de ver
Que em qualquer dura
O tempo passa mais lento pro negão
Quem segurava com força a chibata
Agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre primeiro
O Negro pra passar na revista
Pra passar na revista
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
É mole de ver
Que para o negro
Mesmo a aids possui hierarquia
Na áfrica a doença corre solta
E a imprensa mundial
Dispensa poucas linhas
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Ou das colunas sociais
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
(O RAPPA, 1994, grifos nossos)

A viatura foi chegando devagar
E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, ai compadre, cê perdeu
Se eu tiver que procurar cê ta fodido
Acho melhor cê i deixando esse flagrante comigo
No início eram três, depois vieram mais quatro
Agora eram sete os samurais da extorsão
Vasculhando meu carro, metendo a mão no meu bolso
Cheirando a minha mão
De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
E eu ainda tentei argumentá
Mas, tapa na cara pra me desmoralizar
Tapa, tapa na cara pra mostra quem é que manda
[...] Nos olhos de quem me viu, único civil
Rodeado de soldados
Como seu eu fosse o culpado
No fundo querendo estar
A margem do seu pesadelo
Estar acima do biótipo suspeito
[...]A procura de respeito
Só costa quente, pois nem sempre é inteligente
Peitar, peitar um fardado alucinado
Que te agride e ofende
Pra te levar alguns trocados
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse tribunal de rua
(O RAPPA, 1999, grifos nossos)

Aqui, a abordagem e a violência policial vivenciadas cotidianamente pelo cidadão de cor negra são denunciadas, vide grifos. Cremos que se explicita aí, como é estereotipada a visão que se tem de alguém que traz consigo, marcada na pele, a sua condição histórica. Como já afirmou Foucault (1999), tudo é poder, tudo está ligado ao exercício do poder, e a imposição desse poder por meio da violência psicológica e física como se vê nesse trecho: “E eu ainda tentei argumentá / Mas, tapa na cara pra me desmoralizar Tapa, tapa na cara pra mostra quem é que manda”.  Segundo Zaluar (1998), esse tipo de violência se manifesta no Brasil dos anos 1990, de forma assustadora devido o aumento da exclusão e consequentemente da pobreza. Vemos ainda no trecho, que há referência a uma espécie de resquício do regime militar de opressão dos anos de 1960.         
    Seguem outros trechos letras onde se pode constatar o orgulho negro e a construção de uma auto-imagem positiva:     

É o mundo negro que viemos mostrar pra você (pra você).
Branco, se você soubesse o valor que o preto tem.
Tu tomavas banho de piche, branco e, ficava preto também.
E não te ensino a minha malandragem.
Nem tão pouco minha filosofia, por quê?
Quem dá luz a cego é bengala branca em Santa Luzia.
(O RAPPA, 1996)

A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
Às vezes eu falo com a vida,
Às vezes é ela quem diz:
Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?
As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!
Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido...
É pela paz que eu não quero seguir admitindo
(O RAPPA, 1999)

Os fragmentos acima são, respectivamente, das músicas: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, “Tribunal de rua”, “Mundo negro” e “Minha alma”. Músicas que misturam o modo e atitude de cantar do rap com as percussões utilizadas no candomblé e o som das guitarras do rock e a essência concientizadora do reggae. Tudo isso se mistura formando uma expressão musical heterogênea que reflete a própria miscigenação da banda que é composta por músicos negros e brancos. Pode-se ver também que os temas abordados nos fragmentos são a violência policial, a discriminação do cidadão de cor negra, e de uma maneira mais generalizada à violência social a que o cidadão está exposto. Temas esses que são os mesmos apresentados pelo rap. Desse modo, pode-se dizer que o rap promove um intenso diálogo com esses gêneros no sentido de temas, conteúdo e abordagem dos mesmos.
Deixamos a discussão do diálogo entre o rap e o samba para o fim deste capítulo por dois motivos que se transformaram ao longo dessa pesquisa duas hipóteses, a saber: a)  assim como aconteceu com o samba na primeira metade do século XX, o rap hoje esta sendo incorporado pelas camadas mais abastadas da sociedade, aculturando-a e sendo aculturado por ela. b) o rap brasileiro esta ligado diretamente com a identidade de parte da população brasileira justamente por ser – uma música de periferia/morro/favela produzida por indivíduos em sua grande maioria negros e pobres. c) é um gênero musical  que  ainda sofre discriminação  por uma parte da sociedade e reprimida pela polícia (Estado), mas em crescente expansão após ser entendido pela indústria cultural como um produto com enorme potencial comercial, assim como o samba.
Sobre isso, e também para ilustrar o cenário vigente, vejamos o que respondeu Kleber Cavalcante Gomes, popularmente conhecido como Criolo, um dos MCs mais influentes na atualidade, numa entrevista para Marília Gabriela em 18/01/2012, quando questionado sobre a apropriação do rap pela indústria cultural de massa:

[...] tem muita gente que quer ganhar dinheiro com o rap, inclusive pessoas que odeiam o rap. E foi assim com o samba quando o cara não podia falar que era sambista que apanhava da polícia na roda dos partideiros e hoje são pessoas ovacionadas no mundo todo como grandes escritores, grandes poetas (CRIOLO, 2012).      

O rapper parece querer aponta que o rap esta sendo, mesmo sem querer, incorporado pela indústria cultural (a própria presença de Criolo nesse programa já é um indício disso), porém aponta também que o rap pode tirar proveito disso no sentido de atingir mais interlocutores.  É possível enxergar ainda uma crítica aos moldes dessa possível incorporação que no limite se dá em função do lucro a qualquer custo.  Com mais de vinte anos inserido no movimento hip hop, como MC, Criolo acendeu na mídia e para o grande público quando teve divulgado um vídeo seu na Internet; tal vídeo trazia uma releitura, feita de improviso, da canção “Cálice”, de Chico Buarque. Surge assim um diálogo que até então parecia ser impossível no sentido de estar em cena um rapper, indivíduo morador de favela, trazendo em seu discurso a releitura de uma composição feita por um intelectual branco vindo de uma tradição altamente letrada e elitista.  Segue a releitura:

Como ir pro trabalho sem levar um tiro
Voltar pra casa sem levar um tiro
Se as três da matina tem alguém que frita
E é capaz de tudo pra manter sua brisa

Os saraus tiveram que invadir os botecos
Pois biblioteca não era lugar de poesia
Biblioteca tinha que ter silêncio,
E uma gente que se acha assim muito sabida

Há preconceito com o nordestino
Há preconceito com o homem negro
Há preconceito com o analfabeto
Mais não há preconceito se um dos três for rico, pai.

A ditadura segue meu amigo Milton
A repressão segue meu amigo Chico
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai.

Afasta de mim a biqueira, pai
Afasta de mim as biate, pai
Afasta de mim a coqueine, pai
Pois na quebrada escorre sangue, pai.
(CRIOLO, 2011)    

               
Essa releitura teve muita repercussão e chegou aos ouvidos de Chico Buarque, e em um show em Minas Gerais retomou o refrão intertextualizado por Criolo como forma de reconhecimento ao trabalho do “jovem artista” da periferia. E com isso, o rap segue promovendo diálogos diversos com outros gêneros seja para contradizê-los ou para reconhecê-los também como força de atuação social. 
Os diálogos do rap com os gêneros musicais e poéticos explicitados são compreendidos aqui como manifestações culturais representantes dos contextos históricos e sociais dos quais emergem, respondendo quase sempre a questões identitárias locais, regionais e nacionais. Deste modo, entendemos isso tudo como sendo uma maneira de tornar a vida possível diante das adversidades. Quando dizemos isso tudo, estamos nos referindo às práticas culturais populares, especificamente o rap e seus diálogos com outros gêneros, que têm estado presente nos momentos em que se projetaram movimentos de resistência, configurando-se como um elemento de lazer, de crítica social e de sociabilidade na vida contemporânea.
No capítulo a seguir busco descortinar em que medida o discurso lírico desses raps se manifesta a partir de um eu-individual visando um nós-coletivo, isso a partir das vivências e experiências da vida na periferia.