MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.8-Rap: aversão à ficção?

Os poemas de rap contendo denúncias e recuperando a voz do negro na periferia repercutem na elevação da auto-estima do jovem da periferia, uma vez que lhe permitem elaborar uma interpretação sobre a sua realidade social, de se ver e se compreender parte de uma história e de se territorializar no espaço de forma representativa, dada pela recuperação da auto-estima, pelo sentimento de pertencer a algo, de forma concreta por fazer parte de uma posse, e transmitir a sua mensagem a outros pares, o que lhes permite ser ouvidos 

O hip-hop busca resgatar as culturas africanas e afro-brasileiras – seja através do trabalho das “posses” em suas comunidades, seja através dos ritmos e das letras presentes nas diversas músicas de  rap. Há uma mensagem que transita entre o desabafo dos rappers, que discutem histórias de vida muito próximas às vividas pelos jovens da periferia ou pelos detentos em instituições e prisões, podendo ser visto tanto como um “grito de alerta”, mas também, como identificação com seus personagens, de forma a dar o exemplo de conduta a ser seguida. Nesse reconhecimento das letras dos raps como forma de mostrar seu mundo é possível dizer que alguns cresceram em meio a uma ordem social oculta e, em seus atos infracionais, construíram uma representação alternativa e própria, através da qual tentam se sobrepor à difícil realidade em que vivem  (CARRIL, 2003, p. 196-7).

É desse contexto, que germina a consciência engajada sócia-política do eu- enunciador do rap que se manifesta por meio de uma narrativa avessa à ficção.     

Não é conto,
Nem fábula,
Lenda ou mito
[...]
Forrest Gump é mato.
Eu prefiro contar uma história real,
Vou contar a minha...
(RACIONAIS MCs, 2002)

 Esses versos fazem parte de “Negro Drama” (2002) nos quais Brown faz alusão ao filme Forrest Gump: o contador de histórias(1994) para ironizar e promover uma espécie de rechaço à ficção, no sentido desta ser entendida, no contexto literário, apenas como sendo uma invenção, algo que não tem “correspondência” com  a realidade. Essa postura se manifesta a partir dos relatos que são consubstanciados na própria experiência do eu-enunciador. Dessa maneira o discurso do rap se opõe nitidamente ao caráter ficcional das narrativas tradicionais – a ficção –, justamente por se pautar em suas próprias experiências. É a partir dessas características que sustentamos aqui que o rap é uma narrativa avessa a ficção. Isso, no sentido de entender que o rap apresenta, como vimos, características como aliterações, assonâncias e lirismo em sua estrutura. O discurso de Brown é todo constituído e marcado pelo tom de testemunho de relato pessoal (pela centralidade no eu), no intuito de rechaçar de sua forma de narrativa o caráter ficcional. É com “Capítulo 4 Versículo 3,” que iníciamos essa análise:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
(RACIONAIS MCs,1998)

Já no início, o teor da letra mostra qual é sua intenção – expor de maneira sistêmica a realidade na qual o jovem negro está inserido no Brasil, e faz isso a partir de categorias convencionadas socialmente que gozam do status de representantes da verdade e do real: a estatística e a notícia jornalística.
Assim é exposta, sem maquiagem, a vida dos jovens negros oriundos das periferias brasileiras, em especial as de São Paulo (as quais os integrantes do grupo Racionais pertencem). No trecho, há um esforço de denunciar a violência sofrida, a falta de acesso, o descaso do Estado em relação à juventude, ou melhor, a toda periferia, de expor uma condição histórica de opressão. Essa denúncia parte de um enunciador que se apresenta como mais um sobrevivente. A postura assumida por esse sobrevivente (que sabido é negro, pobre e sem letramento acadêmico) vem de encontro a uma condição que lhe é imposta historicamente por uma sociedade preconceituosa e socialmente desigual – a saber – a de não ter o direito de falar, possuir, de não ter direito algum. A perspectiva de ascensão social sempre lhe foi negada assim como o direito de falar por si próprio. Nesse momento é importante assinalar que o eu-enunciador do rap não raro se configura como sendo um sobrevivente, ou seja, alguém que está inserido num sistema selvagem e covarde que deseja “vê-lo” preso ou morto. Essa postura, de resistência, pode ser vista em várias letras do grupo, por exemplo, em “Fórmula mágica da paz” (1998) na qual Brown afirma que

Ninguém é mais que ninguém, absolutamente
Aqui quem fala é mais um sobrevivente
[...] 
Cheguei aos 27, sou um vencedor, tá ligado mano!
Aqui quem fala é Mano Brown mais um sobrevivente
27 anos, contrariando a estatística morô meu!
Malandragem de verdade é viver...Se liga!
(RACIONAIS MCs,1998)

O esforço para rechaçar o ficcional. De modo geral, o eu enunciador do rap é, quase sempre, alguém que luta contra aquilo que seria “seu destino natural”, se envolver com o crime se tornar um traficante ou assaltante ou os dois, logo depois ser preso ou ser morto seja pela polícia ou por seus rivais do tráfico, isso num curto espaço de tempo geralmente entre os 15 e 20 anos. O enunciador tem consciência de que no Brasil é cultivada uma cultura que valoriza a exclusão e as práticas de violência contra negros e pobres, como podemos ver nesse trecho de “Negro Drama”: 

Desde o início por ouro e prata
olha quem morre, então veja você quem mata
recebe o mérito a farda que pratica o mal
me ver pobre, preso ou morto já é cultural
(RACIONAIS MCs, 2002)

Estes versos são denunciadores da realidade vivida principalmente pelos jovens negros e pobres das periferias brasileiras.
Os fragmentos que se seguem, logo abaixo, são de alerta e apontam a possibilidade, outro caminho, de contrariar a cultura relatada nos versos anteriores. Vejamos:

 A bala não é de festim
Aqui não tem dublê
Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia
Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia

De Guaianazes ao extremo sul de santo amaro
Ser um preto tipo A custa caro

É foda, foda é assistir a propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
[...]
Correntinha das moça
As madame de bolsa
Dinheiro: não tive pai não sou herdeiro

Se eu fosse aquele cara
Que se humilha no sinal
Por menos de um real
Minha chance era pouca
[...]
Mas não, permaneço vivo
Prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
(RACIONAIS MCs, 1998)

Vê-se que a postura assumida pelo eu-enunciador se desenvolve em tom de resistência e revolta contra um sistema que lhe é impõe uma realidade violenta e sem perspectiva. Veja-se que, a todo o momento, o discurso se afirma como realidade, se opondo ao que chama de mundo da fantasia: “A bala não é de festim / aqui não tem dublê / Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia”. No trecho, o próprio enunciador se coloca como exemplo e afirma que vive o dia a dia violento das favelas e do asfalto, no entanto, com orgulho, essa violência não foi capaz de corrompê-lo e que por isso continua vivo contrariando as estatísticas: “permaneço vivo / vinte e sete anos contrariando as estatísticas”. A letra é construída conscientemente, é um esforço para apontar um outro caminho, um novo horizonte aos jovens dessas comunidades  de ser “um preto tipo A” (entenda-se essa expressão como sendo a postura ideal a ser assumida pelos que vem do gueto, sugere uma inserção no mundo letrado, um distanciamento do crime, um não corrompimento do caráter em razão do acúmulo de dinheiro), alguém que contraria as estatísticas  que não se rende nem se vende ao sistema. Um defensor da sua comunidade, um representante social.  
Para observarmos as relações enunciativas que se desenvolve no rap, apresentamos um trecho do poema “Voz ativa” (1996),

Eu tenho algo a dizer
E explicar pra você
Mas não garanto porém
Que engraçado eu serei dessa vez
Para os manos daqui!
Para os manos de lá!
[...]
Sei que problemas você tem demais
E nem na rua não te deixam na sua
Entre madames fodidas e os racistas fardados
De cérebro atrofiado não te deixam em paz
Todos eles com medo generalizam demais
Dizem que os negros são todos iguais
                          [...]
Não quero ser o Mandela
Apenas dar um exemplo
Não sei se você me entende
Mas eu lamento que,
Irmãos convivam com isso naturalmente
Não proponho ódio, porém
Acho incrível que o nosso compromisso
Já esteja nesse nível
Mas Racionais, diferentes nunca iguais
Afrodinamicamente mantendo nossa honra viva
Sabedoria de rua
O rap mais expressivo (E aí...)
A juventude negra agora tem a voz ativa (pode crer)
[...]
Chega de festejar a desvantagem
E permitir que desgatem a nossa imagem
Descendente negro atual meu nome é Brown
Não sou complexado e tal
Apenas Racional
É a verdade mais pura
Postura definitiva
A juventude negra
Agora tem voz ativa
                                         (RACIONAIS MCs, 1996)

A voz ativa é a atitude. Para o MC ela deve estar voltada à juventude negra. Assim, a  representação do sujeito chamado já começa a ser delineada: é um sujeito negro e jovem.  
Em termos linguísticos, o sujeito enunciador, de “Voz Ativa”, se representa por meio de uma série de enunciados, entre eles: “Eu tenho algo a dizer”, “Mas (eu) não garanto porém que engraçado eu serei dessa vez”, “E eu pergunto por quê?”, “(eu) Não quero ser o Mandela, apenas dar um exemplo”, “Mas eu lamento”, “(eu) Não proponho ódio”, “que seja negro até os ossos, um dos nossos”.  Assim, podemos observar a imagem que o rapper faz de si. Além disso, ele se representa como um sujeito negro disposto a empreender ações que interrompam a celebração da desvantagem (dos excluídos?), pois está “cansado” disso. Ele também questiona a não participação de seus semelhantes (negros) na mídia. 
            Qual é a imagem que o sujeito enunciador faz do sujeito chamado? Essa representação é delineada por meio dos enunciados: “Se você se considera um negro, pra negro será mano!”, “Sei que problemas você tem demais”, “Entre madames fodidas e racistas fardados de cérebro atrofiado não  te deixam em paz”, “Dizem que  os negros são todos iguais/  Você concorda”, “(você) Se acomoda, não se incomoda em ver”, “Mesmo sabendo que é foda/ (você) Prefere não se envolver/ Finge não ser  você”, “Você prefere que o outro vá se foder”. O sujeito chamado aparece, linguísticamente, pelo pronome ‘você’. Discursivamente, ele é descrito como um sujeito que, mesmo enfrentando problemas com a polícia (racistas fardados), ignora (isto é, mantém-se passivo. Desse modo, o rapper também denuncia que há uma generalização em relação à representação (pejorativa) do sujeito de cor negra feita por sujeitos de classes dominante, geralmente branca, que justificam as atitudes e as agressões de policiais (racistas). Essa representação é aceita pelo sujeito chamado, que nada faz para mudá-la.
O rap parece ser, dialeticamente, um movimento no qual se rompe, avança, transgride, discursiva e culturalmente, mas, ao mesmo tempo, resgata questões já por outros tão exploradas. Ao usar expressões tão típicas do seu meio, ele transgride e rompe com as barreiras de vedação do discurso (Cf. FOUCAULT, 2010). Esses “narradores” têm representação empírica porque ao contar uma história fazem com que ela se aproxime do real, pois os temas de seus poemas estão consubstanciados em sua própria vivência, o mundo da periferia, assim seu relato ganha uma maior autenticidade.
Assim sendo, pode-se dizer, então, que esse discurso é consciente, marcado pela subversão, rebeldia, transgressão e insubordinação ao sistema do opressor. É assinalado também, por uma auto-afirmação manifestada numa expressão própria, uma linguagem própria que reflete uma nova forma, do negro brasileiro, de se pensar e agir, um ‘novo’ olhar sobre o social, o do oprimido. Ou seja, o rap é a manifestação revoltosa, de sujeitos cerceados de seus direitos mais básicos, contra a violência da exclusão social há séculos sofrida.
Aí você sai do gueto mais o gueto nunca sai de você, morô irmão
Você tá dirigindo o carro, o mundo todo tá de olho em você,
Sabe por quê? Pela sua origem, morô irmão,
É desse jeito que você vive é o negro drama
[...]
Mas aí, se tiver que voltar pra favela, eu vou voltar de cabeça erguida,
Porque assim que é, renascendo das cinzas, firme e forte, guerreiro de fé
(RACIONAIS MCs, 2002)