MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

Volver al índice

O INTELECTUAL MARGINAL DO RAP: CARACTERÍSTICAS E TENSÕES

As reflexões que se seguirão, acerca de um fazer intelectual que atualmente emerge das periferias urbanas brasileiras, se dará a partir de uma leitura panorâmica dos conceitos já existentes observando, no entanto, as possíveis rupturas e continuidades entre um e outro.

3.1- O intelectual e sua função: conceitos clássicos  

De início faz-se a pergunta: o que é um intelectual?
De modo geral, a definição do intelectual é realizada, principalmente, pelos próprios intelectuais e/ou acadêmicos. Estes definem o termo segundo seus próprios posicionamentos sociais, fato este que torna complexo uma definição universal.
Para o Houaiss (2004, p. 422), intelectual é “quem domina um campo de conhecimento intelectual considerável ou tem muita cultura geral, [trata-se de um] erudito”.  O Dicionário da Língua Portuguesa (2001, p.500) afirma que intelectual é a “pessoa que se dedica a leituras, estudos e às coisas da inteligência”. Partindo dessas afirmações pode-se constatar que o intelectual é um ser que está inserido dentro de uma tradição que privilegia o acúmulo do conhecimento e da cultura e o exercício do pensar e do refletir. Contudo, essas definições estão aquém de definir realmente o intelectual e seu papel social. Por isso, apresento, de início, um panorama dos principais conceitos sobre a figura do intelectual e sua função na esfera social.
Iniciamos as ponderações partindo da etimologia da palavra intelectual que deriva da  palavra latina intellectualis a qual em sua conversão para o português manteve o sentido relativo à inteligência, ao acúmulo de conhecimento. Nela está já desenhada a relação homem com a vida social que o cerca. Segundo Maria Zilda Cury, decompondo a raiz latina intellectualis temos:

[...]intus, para dentro e lectus, particípio passado de legere (ler). Ler para dentro das coisas, para seu interior. Mas, o sentido etimológico do verbo legere postula certa intensificação do fato social, na medida em que aponta para uma dimensão de exterioridade [...] Ler, pois, pressupõe um movimento para o exterior, para comunicar-se com os outros, fazendo uma leitura do mundo, o que dota a palavra intelectual de dois movimentos: para dentro e para fora de si[...] salienta-se a condição intermediária do intelectual, sua função mediadora (CURY, 2008, p. 13).      

Como se constata, para a autora, a palavra intelectual é utilizada para nomear o indivíduo que se dispõe a fazer uma leitura crítica e autocrítica de si e do mundo social no qual está inserido. O intelectual se define inicialmente a partir de uma tensão entre interioridade e exterioridade.
Um dos conceitos mais difundidos sobre o intelectual é o proposto por Antonio Gramsci, autor da clássica distinção entre intelectuais orgânicos e tradicionais. Para isso parte de uma afirmação genérica “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1982, p. 7). Segundo o autor, cada grupo social cria seus próprios intelectuais. Podem ser chamados de orgânicos os intelectuais que devem ser constituídos pela educação técnica e devem participar da vida prática como construtores e organizadores permanentes, conscientes de sua função. Gramsci entende ainda que os intelectuais orgânicos são indivíduos que se implicam ativamente na sociedade, lutando constantemente para modificar as mentes e suas realidades sociais ainda que isso ocorra de modo inconsciente. Enquanto que os intelectuais tradicionais caracterizam-se por considerarem a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social existente por conta de sua continuidade histórica. Enfatizando sua afirmação, a de que todo ser humano é dotado de uma “função” intelectual, Gramsci explica:     
        

Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na realidade, tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular-nervoso. Isto significa que, se se pode falar de intelectuais, é impossível falar de não-intelectuais, porque não existem não-intelectuais. Mas a própria relação entre o esforço de elaboração intelectual-cerebral e o esforço muscular-nervoso não é sempre igual; por isso, existem graus diversos de atividade específica intelectual. Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar.

E aponta ainda que, na modernidade:

O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e conseguindo-se que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova continuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção do mundo. O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas — que crêem ser literatos, filósofos, artistas — crêem também ser os "verdadeiros" intelectuais. No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual (GRAMSCI, 1982, p. 7-8).

Passamos agora a exposição do conceito daquele que é considerado como o intelectual por excelência, Jean Paul Sartre. No conceito de intelectual desse pensador o que mais se destaca é a atuação, a intervenção na esfera pública por meio de uma crença no poder da palavra. Isso se dá no sentido de Sartre entender que o intelectual é, sobretudo, um representante, um mediador é aquele que fala por aqueles que a voz não tem ressonância social (Cf. SARTRE, 1994). Para Cury a figura de Sartre é a do intelectual marcante pela força de sua atuação pública:

Sartre representa aquele agente cultural que interferia diretamente na cena pública. Na sua ação como intelectual, empunhando megafone, ia para a frente da Universidade discutir com os estudantes posicionava-se na imprensa contra as guerras coloniais e a do Vietnã, tomando partido (CURY, 2008, p. 21).  

Já em Sartre é possível enxergar a postura de alguém que se encontra inserido numa contradição, pois se vê dentro da mesma realidade da qual aqueles a quem defende estão inseridos e ao mesmo tempo está distante dela culturalmente e economicamente. Podemos enxergar isso sob a ótica de que todo intelectual vive dentro de um permanente conflito, pois, como intelectual (alguém que está longe de viver a realidade daqueles a que quer defender), entende que por muitas vezes sua voz não será ouvida e se for não será compreendida sem distorções, mas que, no entanto, não desiste e crê que por meio de sua intervenção algo possa ser mudado. Sobre isso Sartre afirma que o intelectual é definido justamente por tal contradição:

o intelectual se caracteriza por não ter mandato de ninguém e por não ter recebido seu estatuto de nenhuma autoridade. [...] Ninguém o reivindica, ninguém o reconhece (nem o Estado, nem a elite-poder, nem os grupos de pressão, nem os aparelhos das classes exploradas, nem as massas); pode-se ser sensível ao que ele diz, mas não à sua existência [...] O intelectual é suprimido pela própria maneira em que se faz uso de seus produtos. (SARTRE, 1994, p. 32-3).

Para Norberto Bobbio, teórico italiano que se dedicou por muitas décadas ao estudo da figura do intelectual e sua relação com a política e o poder,  o intelectual é fruto das complexas relações sociais e seus fenômenos. Acredita que este é definido pelo meio social no qual está inserido ou no qual vive e estabelece sua trajetória social, sempre envolto pelo poder:

Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu, em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante) Toda sociedade tem os seus detentores do poder ideológico, cuja função muda de sociedade para sociedade, de época para época, cambiantes sendo também as relações, ora de contraposição ora de aliança, que eles mantêm com os demais poderes (BOBBIO, 1997, p.11).

Aponta ainda que o mundo contemporâneo produz uma espécie de afastamento entre os homens e dos homens com o mundo. Assim o intelectual é alguém que tem ou deve ter uma capacidade eficaz de intervenção e crítica, que detém a função de mediador entre as pessoas e de amenizador desse afastamento; ele o faz por meio do discurso no qual constrói alianças, laços, em uma sociedade cada vez mais estranha a si mesma.

Ainda hoje, de fato, indicar uma pessoa como Intelectual não designa somente uma condição social ou profissional, mas subentende a opção polêmica de uma posição ou alinhamento ideológico, a insatisfação por uma cultura que não sabe se tornar política ou por uma política que não quer entender as razões da cultura (BOBBIO, 1986, p. 637).

Bobbio opera essas ponderações a partir da categorização de dois grupos de intelectuais: os ideólogos e os expertos. De acordo com o autor o primeiro grupo (os ideólogos) são os responsáveis por elaborarem os princípios que justificam as ações; enquanto que o segundo grupo (os expertos) se responsabilizaria por “dominar” os conhecimentos técnicos necessários para alcançar um determinado objetivo. No entanto, reconhece que um mesmo intelectual possa transitar nessas duas categorias.     
Umberto Eco posiciona-se de maneira a apontar distinções entre aquele que em sua visão seria o intelectual por ofício e aquele que reproduz mecanicamente atividades que estão ligadas, de uma maneira ou de outra, ao intelecto:  

Naturalmente, eu defendo a idéia de que, hoje em dia, não se pode entender por 'intelectual' alguém que trabalhe com a cabeça mais que com os braços. Um funcionário de hotel que anota as reservas em um computador trabalha com a cabeça, enquanto um escultor utiliza os braços. Para mim, 'intelectual' é quem exerce uma atividade criativa nas ciências ou nas artes, o que inclui, por exemplo, um agricultor que tem uma idéia nova sobre a rotação dos cultivos. Em resumo, o autor de um bom manual de aritmética para o ensino médio não é necessariamente um intelectual, mas, se ele escrever esse livro adotando critérios pedagógicos inovadores e eficazes, pode ser (ECO, 2003, p. 07).

Para este autor o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar. Sua contribuição deve se dar na esfera pública por meio da expressão de ideias inovadoras: “não lhes servindo o papel de oráculos” (Cf. ECO, 2003, p 08).
Steve Fuller, pensador americano que milita no espaço acadêmico da Inglaterra, em seu livro O intelectual (2006), promove reflexões acerca dessa figura (o intelectual) que, no seu modo de ver, tem o poder de remediar a fragilidade humana por meio do avesso, do malfeito: “Se você é um intelectual, o ‘tato’ é o melhor modo de referir-se à covardia. Para remediar parcialmente a fragilidade humana, o intelectual tem que seguir a trilha que leva ao malfeito” (FULLER, 2006, p.29).  Ainda segundo Fuller,

[...] o intelectual enobrece a humanidade ao criar oportunidades de resistência – isto é, situações que nos forçam a tomar decisões. Em termos mais mundanos, o intelectual, fazendo uso de sua consciência opositora, age como o consumidor que se nega a comprar tudo o que está na prateleira. Não por acaso, certos grupos de consumidores apresentam muitas das características chave da envergadura dos intelectuais. Eles julgam os produtos segundo a natureza dos produtores e a disponibilidade de alternativas. Da mesma forma que o consumidor perspicaz, o intelectual suspeita de idéias monopolizadas por um produtor de história dúbia. Tais idéias constituem o que o marxista italiano Antonio Gramsci chamou de “hegemonia”  (FULLER, 2006, p.31).  

Em Fuller, se vê aquilo que deve ser a postura a ser adotada pelo intelectual frente aos diversos “produtos” que lhe são oferecidos na esfera pública e também enquanto sujeito crítico criador de oportunidades de resistência a isso. Essa forma de resistência é o poder positivo do pensamento negativo citado pelo autor. O autor vai além e aponta uma espécie de lado patológico do intelectual, o qual é por ele denominado de eterna vigilância ou paranóia:

Respostas a perguntas não formuladas e o mal resultante de atos não intencionais são dois aspectos que ilustram a imagem do intelectual à procura das sombras que escapam ao observador desatento, e que, no final, possam ser apenas invenções de sua imaginação. No entanto, a paranóia profissional do intelectual não deixa de ter um lado romântico. Para todo herói, chega um momento em que percebe no outro tudo aquilo que mais despreza em si mesmo (e, portanto, desconfia no outro). Esse momento de repulsa o leva a reconhecer o ideal que ele deve agora incorporar. A partir daquele momento, o intelectual, na qualidade de herói, internaliza ambos os lados da luta como eterna vigilância, ou paranóia [...] para o intelectual as notícias são como apelos ocultos de um mundo desesperado à procura de orientação (FULLER, 2006, p. 35).        

            Fuller encerra seu livro com uma ponderação que nos revela uma espécie de crença positiva na figura do intelectual como alguém que tem como papel principal despertar a nos indivíduos sociais sua humanidade: “O intelectual é o eterno irritante: ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade –esperemos – emergirá como uma pérola” (FULLER, 2006, p.149).     
Para Edward Said, teórico palestino que escreve no espaço acadêmico americano e dedicou grande parte de sua obra ao estudo do intelectual, essa figura é, sobretudo, um ser público dotado da função de representar, ou seja, é um indivíduo que carrega consigo, por natureza, uma habilidade de mediar e articular questões da vida pública seja de uma classe, seja de uma comunidade:

O intelectual é um indivíduo com um papel público na sociedade [...] um ser dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para e também por um público. Esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja razão de ser é representar todas as pessoas e todos os  problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete... [...] Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com os padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou das nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas (SAID, 2005, p.25-6).

Como se pode notar, o conceito aponta na direção de que os intelectuais são, ao contrário do que afirma Gramsci, sujeitos extremamente selecionados, indivíduos  extremamente raros dotados de uma vocação para representar, tendo como padrões eternos a defesa da verdade  e da justiça.  Said quando expõe isso, tem em vista expor a sua própria forma de atuação como intelectual:

Gostaria de expor isso em termos pessoais: como intelectual, apresento minhas preocupações a um público ou auditório, mas o que está em jogo não é apenas o modo como eu as articulo, mas também o que eu mesmo represento como alguém que esta tentando expressar a causa da liberdade e da justiça. Falo ou escrevo essas coisas porque, depois de muita reflexão, acredito nelas; e também quero persuadir outras pessoas a assimilar esse ponto de vista (SAID, 2005, p. 26).

Quando se insere dentro de uma função intelectual Said nos coloca a par do que para ele é a postura que deva ser adotada pelo intelectual; a de ser do contra, um incômodo, alguém que tenta tirar a população da apatia e mobilizá-la para promoverem transformações significativas na esfera sócio-política. Como intelectual engajado, Said elegeu como seu foco de atuação principal a causa de seu povo, os palestinos, que há muito é expulso de sua própria terra. Além disso, também apontou sua crítica para as mazelas feitas pelo colonialismo europeu, a manipulação pelas elites dos meios de comunicação e a forma de política centralizadora promovida pelos Estados Unidos.
De modo geral, Said categoriza os intelectuais em públicos e privados. No entanto, deixa claro que ambas as figuras co-atuam, ou seja, um intelectual pode ao mesmo tempo se público ou privado. Sobre isso, reitera o autor:

Não existe algo como o intelectual privado, pois a partir do momento em que as palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público. Tampouco existe somente um intelectual público, alguém que atua apenas como uma figura de proa, porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição. Há sempre a inflexão pessoal e a sensibilidade pessoal de cada indivíduo, que dão sentido ao que está sendo dito ou escrito (SAID, 2005, p.26).

Michel Foucault também discute o conceito de intelectual. Em Microfísica do poder (1979), há importante texto sobre o assunto. Nele, Foucault anuncia a necessidade de aparecimento de uma nova forma de posicionamento do intelectual: não mais como aquele que dizia a verdade aos que ainda não a viam e em nome dos que não podiam dizê-la. Mais do que um novo papel para o intelectual, trata-se de uma nova exigência, sob pena da figura do intelectual entrar em ocaso:

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a “idéia” de que eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento; na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência” (FOUCAULT, 1979, p.71).

Beatriz Sarlo, com um olhar atento frente às constantes mudanças da figura do intelectual e do seu papel social na contemporaneidade, pondera:

Foram conselheiros de príncipes, de ditadores, de déspotas esclarecidos, de outros intelectuais convertidos em políticos, de políticos intelectuais e de políticos que tiveram pouco a ver com o mundo das idéias. Falaram ao Povo, à Nação, aos Desvalidos deste Mundo, às Raças oprimidas, às Minorias. Quando se dirigiram a tais interlocutores pensaram que estavam transferindo para eles uma verdade que tinham descoberto pelos próprios meios. Por isso, sentiram-se Representantes, homens e mulheres que tomavam a palavra em nome de outros homens e mulheres. E, por isso, acreditaram que essa representação, esse dizer, o que os outros  não podem nem sabem dizer, era um de seus deveres: o dever do saber.  Deviam então libertar os outros das travas que lhe impediam de pensar e agir; enquanto isso, enquanto essa nova consciência não se impusesse a seus futuros portadores, falaram em nome deles (SARLO, 2000, p. 160-1).  

Para Sarlo, a contemporaneidade põe em crise o papel clássico do intelectual que ela mesma descreve no trecho acima. Sendo assim na medida em que a contemporaneidade avançou sobre a sociedade com suas novas formas e fórmulas de relações sociais, foi abrindo espaço para o aparecimento de outros meios de intervenção na vida pública, principalmente, após o surgimento da chamada crise da representação. Com isso, o tipo clássico de intelectual, perde espaço e em parte o poder de falar em nome do outro, especialmente, pelas camadas que até então eram cerceadas de voz. Repetindo Foucault: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem” (FOUCAULT, 1979, p.71). A massa, o povo, não precisa deles para saber, não necessita deles para falar. Isso abriu caminho, sobretudo, para novos agentes sociais e para novas perspectivas de atuação na esfera socioeconômica. Os ideais do intelectual clássico foram colocados em cheque, por, dentre outros, não se realizar de fato após séculos de promessas. Diz Sarlo:              

As sociedades que surgem da modernidade tardia (isso que chamamos taquigraficamente de “pós-modernidade”) estão longe de realizar um ideal igualitarista e democrático [...] Se nos países centrais a riqueza viabiliza políticas de compensação por parte do Estado, e os movimentos sociais aí intervêm na esfera pública, nos países periféricos a explosão do fim do século [XX] mostra, mais que a diversidade cultural e social, o intolerável contraste entre a miséria e a riqueza (SARLO, 2000, p. 164-5).

Para pensarmos com Foucault, e à luz do que diz Sarlo, parece que o próprio papel do intelectual parecia fazer parte do “sistema” de manutenção destes contrastes. Aquela figura responsável por representar os oprimidos era ele próprio, inconscientemente, instrumento de um sistema de manutenção da opressão. Foucault é um dos primeiros a denunciar isso – e, Sarlo, na esteira de pensadores como Foucault, acusa esse impasse.
Contudo, ela não abandona a crença na importância do intelectual. Para ela, na contemporaneidade surge a necessidade de se retomar algumas das funções que eram inerentes ao intelectual clássico (acredito eu que estas funções estejam ligadas ao posicionamento de confronto frente ao poder hegemônico por meio de um discurso crítico-subversivo), com mais ênfase e em bloco para que esta retomada não seja apenas uma voz que soa sozinha e sem eco no deserto da vida social contemporânea      

A figura do intelectual (artista, filósofo, pensador), tal como criada na modernidade clássica, entrou em seu ocaso. Algumas das funções que essa figura considerava suas, porém, continuam a ser reclamadas por uma realidade que mudou e que, portanto já não aceita legisladores nem profetas como guias, mas não tanto a ponto de tornar inútil o que foi o eixo da prática intelectual nos últimos dois séculos: a crítica daquilo que existe, o espírito livre e anticonformista, o destemor perante os poderosos, o sentido de solidariedade com as vítimas (SARLO, 2000, p. 165).      

Tendo em vista as discussões até aqui apresentadas acerca das diversas correntes teóricas que refletiram sobre a figura do intelectual, chegamos a conclusão que elas, guardadas suas especificidades, comungam uma mesma visão, a saber: o intelectual é um indivíduo que  deve se fazer presente na vida pública contestando, rebatendo, revidando, resistindo às formas de desigualdade e de injustiça. Atitude e postura que, atualmente, é vista por muitos como sendo algo que está na esfera da utopia.
Ao olharmos panoramicamente o cenário apresentado, é necessário esclarecer que quando propomos lançar luz sobre o aparecimento um intelectual marginal não se trata de sentenciar o fim do intelectual de tipo clássico, mas sim apontar a nova forma de engajamento que emerge das comunidades marginalizadas. Isso se faz necessário no sentido de que há muito o pensamento crítico ocidental produz interrogações acerca desta questão, como vimos, nas afirmações manifestadas por Foucault, Bobbio, Said e Sarlo.
 Sendo assim, a nosso ver, a discussão promovida até aqui aponta algo de suma importância para a construção e o desenvolvimento de um conceito de intelectual marginal, a saber: a) segundo Foucault e Sarlo surge na contemporaneidade a possibilidade de outros indivíduos sociais se tornarem agentes intelectuais cuja essência seja a mesma que caracterizou os intelectuais autônomos, ou seja, “o espírito livre e anticonformista, o destemor perante os poderosos, o sentido de solidariedade com as vítimas” e o desejo de participação como cidadão da vida social brasileira; b) na contemporaneidade os intelectuais que emergem das margens sociais falam às suas comunidades incitando a sua união e conscientização social; e falam por si, de si, e de sua realidade de uma forma crítica-subversiva às classes que cercearam historicamente sua voz. Esses sujeitos intelectuais são, dentre outros, o MC e o escritor de literatura marginal, frutos exclusivos do mundo periférico contemporâneo. Sujeitos do discurso que carregam consigo a missão de se fazer ouvir e tornar visível, como cidadão, aos olhos do Estado e confrontar o poder do discurso social que o exclui e também sua comunidade. É de extrema relevância entender que, na esfera das relações sociais, o sujeito constitui-se, sobretudo, por meio de práticas discursivas. Dessa maneira, sujeitos que estão numa condição de exclusão, ignorados pelo Estado em seus direitos básicos, se reconhecem no discurso enunciado pelo MC e pelo escritor marginal, e assim compartilham a mesma ideologia. É de extrema relevância ponderar que entre esses sujeitos exclusos estão não só os negros, mas também brancos pobres, índios, entre outros.
Sobre essa questão de se reconhecer no discurso do intelectual marginal, Waldilene Silva Miranda aponta que:

O sujeito oprimido e ignorado pelo Estado vê em seus intelectuais a figura ideológica daquele que luta discursivamente pelo grupo com o qual se identifica. Manifestando-se, então, contrários à ideologia dominante, esses sujeitos dão voz e vez aos moradores dessas áreas de exclusão. O fato é que os discursos das periferias brasileiras, sobretudo o rap e a literatura marginal estão deslocando as fronteiras que mantinham intacta a concepção de identidade nacional homogênea e suplementando as narrativas pedagógicas (MIRANDA, 2011, p.11-2).