MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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1.2 - O rap e o hip hop no Brasil

As primeiras manifestações da cultura hip hop e consequentemente do rap, em nosso país, se dão por volta de 1988, principalmente em São Paulo. No entanto, é no Brasil dos anos de 1990, em meio a toda efervescência nos campos político, social e econômico, que o rap se manifesta com mais intensidade e se apropria, mesmo sem “autorização”, do espaço urbano. Isso foi possível porque o rap, tal qual o conhecemos hoje, sofreu mudanças em relação à sua matriz jamaicana. Mudou porque as relações sociais mudaram na passagem do mundo moderno para o contemporâneo.
Essas mudanças fizeram com que o rap produzido noBrasil apresentasse um modo singular de apropriação do discurso, do espaço urbano e do agir coletivo dos moradores das periferias urbanas. São poemas em que predominam temas relacionados às periferias brasileiras, versos engajados que tentam convencer, motivar e mobilizar seus ouvintes. Está associado exclusivamente às experiências dos jovens afrodescendentes espalhados nas periferias urbanas do Brasil. Ao mesmo tempo em que se faz singular mantém as referências aos temas sociais e a identificação com o passado histórico. 
Não raro, veremos no discurso do rap referências a esse desejo de (re)construção da identidade negra agregada a um desejo de construção de uma auto-imagem positiva. Isso se dá por meio de um discurso social de protesto, sempre relacionados à vida da periferia, à violência sofrida pela população pobre e, sobretudo, negra. Também são fortes as alusões ao contexto sociopolítico, principalmente do século XIX e início do XX,  e aos fatos históricos em que pessoas de cor negra figuram como protagonistas: “Ontem senzala, hoje favela”; “Precisamos de um líder de crédito popular / Como Malcom X em outros tempos foi na América / Que seja negro até os ossos, um dos nossos/ E reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços” (RACIONAIS MCs, 1993). E também referências diretas às personalidades que se tornaram ícones de justiça e tolerância e que, reconhecidamente ao longo da história, lutaram, por meio do discurso, contra o ódio racial e a segregação: “gente que acredito/ gosto e admiro/ brigava por justiça e paz/ levou tiro: Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley e o evangélico Martin Luther King” (RACIONAIS MCs, 2002). Configuram-se desse modo, por meio do rap, as referências de identificação dos grupos negros contemporâneos com seus antepassados, mantendo sempre, em seu discurso, o caráter crítico subversivo de resistência, ou seja, a palavra negada outrora é agora (re)tomada, ganhando força e eco na voz do rapper.     
O rap é o gênero discursivo (o discurso verbal) do movimento hip hop. Este movimento pode ser entendido como sendo uma manifestação cultural de amplo espectro que inclui, dentre outros, música, literatura, artes plásticas, dança e consciência sociopolítica. Sua origem está ligada aos movimentos de resistência e luta contra as manifestações de discriminação e a falta de participação política imposta historicamente às comunidades negras e pobres da Jamaica e dos Estados Unidos. Para Big Richards,

O hip hop tem um aspecto social muito forte, tanto no Brasil como em outros países. Todos os elementos do hip hop, de alguma forma,procuram levar uma mensagem, uma espécie de denúncia da realidade vivida na periferia. Passar informação, uma mensagem consciente é muito importante na cultura HIP HOP. Os dois pilares do movimento são a atitude e a conscientização. Claro que a diversão também faz parte da cultura (RICHARDS, 2005, p. 35).

No Brasil, segundo Marco Aurélio Paz Tella, o rap se tornou a expressão mais importante para a propagação do movimento hip hop:

Dentre as artes do movimento hip hop, o rap ganha destaque em virtude do fato de ser um veículo no qual o discurso possui o papel central, e por intermédio dele o rapper transmite suas lamentações, inquietações, angústias, medos, revoltas, ou seja, as experiências vividas pelos jovens negros nos bairros periféricos. A periferia torna-se o principal cenário para toda a produção do discurso do rap, encaradas de forma crítica, denunciando a violência policial ou não, o tráfico de drogas, a deficiência dos serviços públicos, a falta de espaços para a prática de esportes ou de lazer e o desemprego. Em meio a esse conjunto de denúncia e protesto, ganha destaque o tema do preconceito social e, principalmente, o racial (TELLA, 1999, p. 52)           

 Os próprios rappers qualificam a sua aparição na vida social brasileira como um “efeito colateral que seu sistema fez” (RACIONAIS MCs, 1998) – em suas falas há uma tentativa de dialogar criticamente com a sociedade branca da zona sul (o “sistema”), apontando suas mazelas.  O tipo de sistema referido é aquele criado por homens brancos que exclui toda e qualquer “minoria”, principalmente negros e pobres: “me ver pobre, preso ou morto já é cultural” (RACIONAIS MCs, 2002). Para Tella (1999) o rap brasileiro transformou-se num gênero construtor de identidades e que influenciou diretamente a formação de uma consciência crítica-subversiva frente à violência e a exclusão praticada contra a população negra no Brasil. O mesmo autor acredita ainda que o rap, por meio dessa conscientização, possui a função de romper com as ideologias de exclusão que ainda insistem em habitar o imaginário social brasileiro. O rap segundo ele é também:

[...] uma manifestação que salvaguarda um comportamento crítico e propositivo dos problemas sociais que afligem uma parcela significativa dos jovens afro-descendentes. Os rappers constroem representações da sua própria realidade e de acordo com os interesses e as ideologias dos grupos. Eles fazem de sua realidade social, local, cultural e étnica o ponto de partida para rompimentos éticos, estéticos, simbólicos, históricos e imaginários da sociedade. (TELLA, 2000, p. 230)

            Assim, hoje, no Brasil, o rap segue desenvolvendo o papel de desalienador social, conscientizando os jovens das periferias e parte dos jovens do “asfalto”.