O PROCESSO DE ENTRADA E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR EM MACAPÁ

O PROCESSO DE ENTRADA E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR EM MACAPÁ

Christian De Lima Cardoso
Tatiani Da Silva Cardoso
Yuri Yanic
Roberto Carlos Amanajas Pena
(CV)

Volver al índice

2 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA DIVERSIDADE PERMEADA PELA MESMA CONDIÇÃO

Deficiência não é um assunto tão objetivo quanto parece, pelo contrário, apresenta-se longe de ser um assunto conclusivo. Apesar de as discussões recentes terem trazido resultados positivos (embora insatisfatórios), vislumbra-se ainda um longo caminho para que as pessoas com deficiência participem em todos os setores da sociedade. Embora a deficiência ocorra no corpo biológico do indivíduo, ela irá trazer implicações de ordem cultural que são o resultado da significação simbólica de tal condição. Esta forma de organização social (a cultura) dará um lugar à pessoa com necessidade especial na sociedade, que, por ser considerada fora dos padrões de normalidade, de beleza e de funcionalidade, em maior ou menor grau, será quase sempre de exclusão. A própria terminologia “deficiente” revela-se carregada do significado social, e revela por si só a imagem construída socialmente em torno das PNE’s. Neste aspecto, RIBAS pontua:

Na nossa sociedade, mesmo que a ONU e a OMS tenham tentado eliminar a incoerência dos ‘conceitos’, a palavra ‘deficiente’ tem um significado muito forte. De certo modo ela se opõe à palavra ‘eficiente’. Ser ‘deficiente’, antes de tudo, é não ser ‘capaz’, não ser ‘eficaz’. Pode até ser que, conhecendo melhor a pessoa, venhamos a perceber que ela não é tão ‘deficiente’ assim. Mas, até lá, até segunda ordem, o ‘deficiente’ é o ‘não-eficiente’. (1994, p.12).

Embora a humanidade apresente características físicas diversas e em muitos casos estas diferenças coincidam com formas quantitativa e qualitativamente diferentes de se relacionar, estas, como se viu no início deste tópico, não nascem das diferenças físicas, mas são construídas pelo homem; logo, a mera transposição da realidade natural para a realidade social trata-se de um mal-entendido. Não obstante, esta relação está internalizada na sociedade, na mesma medida em que estão internalizados os padrões que determinam o estigma1 do deficiente. Vale ressaltar que o estigma não nasce com o deficiente, não faz parte de sua natureza, assim como não faz parte da natureza da pessoa que estigmatiza, ele antecede o sujeito, pois é algo que faz parte da construção social estabelecida desde antes dos seus nascimentos.
Portanto, mesmo antes que nasça a pessoa deficiente, os valores pré-estabelecidos já permitem identificar a possibilidade de que seja ou não estigmatizada. “[...] não é para o diferente que se deve olhar em busca da compreensão da diferença, mas sim para o comum”. (GOFFMAN, 1988). Este “comum” representa o conjunto de expectativas normativas compartilhadas pelos indivíduos na sociedade, as quais compõem as condições necessárias para a vida social, condições que se sustentam pela incorporação desta pelo indivíduo. Ainda que o estigma seja uma imposição da ordem cultural, pode ocorrer que a pessoa estigmatizada internalize a concepção geral de sua condição e encare todas as dificuldades como sendo unicamente de ordem natural.
A pessoa deficiente, portanto, se sente no dever de procurar se aproximar o máximo possível do padrão de normalidade instituído pela sociedade, nesta busca pela execução das normas, a pessoa deficiente julgará ter obtido sucesso ou fracasso, ambos terão consequências sobre sua integridade psicológica. Não obstante, para o deficiente isso não se trata de uma questão de vontade, pois, a deficiência, na maioria dos casos, é um fato que não está sob seu controle imediato; muito embora, alguns tentem minimizar a aparência de lesões seguindo dicas como a seguinte, sugerida pelo educador de cegos Wilhelm Heimers:

Muitas deficiências físicas podem ser aliviadas por meio do uso de próteses que tornam o defeito mais aceitável para as outras pessoas. No caso da pessoa cega, o olho se apresenta deformado, como morto, e provoca repulsa, especialmente quando a pessoa esboça com o olho movimentos próprios dos videntes. Um olho artificial não ajuda a pessoa cega, mas permiti-lhe disfarçar o defeito e elimina o aspecto desagradável da órbita ocular. Se por uma coincidência qualquer a aplicação de uma prótese se torna impossível, recomenda-se o uso de óculos escuros. A pessoa cega que se adapta ao ambiente e se comporta de um modo normal sem chamar a atenção sobre sua deficiência facilita enormemente o relacionamento com os outros e prestigia sua imagem no mundo dos videntes. (IBID, p.17-18).

O deficiente fica forçado, então, a esconder algo que faz parte de sua identidade para que se sinta incluído. Ele percebe que esta inclusão em parte não é suficiente, pode em alguns casos não se sentir incluído totalmente, pois sente o desconforto e a tensão de ter que esconder ou maquiar a lesão que, tão logo descoberta, pode levá-lo a ter experiência de perceber as reações muitas vezes repulsivas das demais pessoas. As tentativas de inclusão predominantes têm se mostrado como uma velada forma de separar o deficiente, ou seja, não excluí-lo totalmente, atendê-lo, mas em separado, revelando, assim, uma visão discriminadora.
Algumas pessoas, na tentativa de minimizar as dificuldades enfrentadas pelos deficientes declaram que estes são iguais aos demais indivíduos, focalizando o debate na deficiência em si e não na estrutura social formada concebida em torno da deficiência; este enfoque na deficiência denuncia a insensibilidade de contextos sociais em relação à diversidade corporal como diferentes estilos de vida. A mera declaração não os torna iguais, pois de fato são diferentes, no entanto, se isto justifica um tratamento diferenciado, este deve se dar no sentido de remover as interdições sociais que impedem as pessoas deficientes de gozarem dos seus direitos; além disso, mesmo dentre as pessoas deficientes é possível se constatar uma diversidade muitas vezes negligenciada, embora permeada pela concepção social de deficiência, como se pode inferir das palavras de LINTON 2 (1998):

Saímos, não escondendo nossas pernas atrofiadas sob mantas de lã marrom, ou com óculos escuros tampando nossos olhos pálidos, mas aparecemos de shorts e sandálias, de macacão e terno, vestidos para brincar ou para trabalhar encarando de frente, desmascarados, sem pedir desculpas. Estamos, como disseram Crosby, Stills e Nash ao público de Woodstock, ‘com nossas flâmulas de identificação ao vento’. E não somos apenas os atletas cadeirantes ‘sarados’ vistos recentemente nos comerciais da tevê, mas também criaturas desengonçadas, atarracadas, desajeitadas, e encaroçadas, declarando que a vergonha não mais definirá nosso guarda - roupa nem nosso discurso. Hoje estamos por toda parte, de cadeira de rodas ou em marcha desenfreada pela rua, ao som do toque de nossas bengalas, sugando ar por tubos de respiração, seguindo nossos cães-guia, soprando e aspirando nos nossos acionadores de sopro que controlam nossas cadeiras motorizadas. Às vezes pode acontecer de haver baba, escuta de vozes alheias, nossa fala pode soar entrecortada, podemos utilizar cateter para coleta de urina, podemos viver com um sistema imune comprometido. Estamos todos ligados uns aos outros, não pela lista de nossos sintomas coletivos, mas pelas circunstâncias sociais e políticas que nos forjaram como grupo. Nos encontramos como um grupo e buscamos uma voz para expressar não desespero pela nossa condição, mas a revolta pela nossa posição social. Nossos sintomas, mesmo que sejam às vezes dolorosos, assustadores, desagradáveis ou difíceis de lidar, ainda assim fazem parte do cotidiano da vida. Existem e sempre existiram em todas as nossas comunidades de todos os tempos, o que denunciamos são as estratégias utilizadas para nos privar de nossos direitos, de oportunidades e da busca de felicidade. LINTON, 1988 apud REILY (2007, p. 220).

Apesar de haver uma diversidade de categorias de deficiência há uma condição que une todos os deficientes: a interdição social que os impede de participar das principais atividades sociais. A constatação da interdição social deu uma nova abordagem às discussões sobre deficiência, que até a década de 60 estavam sob o domínio do modelo médico de compreensão da mesma. Foi determinante no processo de retirada deste assunto do domínio médico para a esfera sócio-política a atuação do grupo UPIAS (The Union of the Phisically Impaired Against Segregation)3 , formado por sociólogos deficientes do Reino Unido, em 1976, os quais responderam a carta do sociólogo Paul Hunt, deficiente físico, endereçada ao jornal inglês The Guardian, na qual Hunt fazia a seguinte denúncia:
Senhor editor, as pessoas com lesões físicas severas encontram-se isoladas em instituições sem as menores condições, onde suas idéias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes. Proponho a formação de um grupo de pessoas que leve ao Parlamento as idéias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituições e das que potencialmente irão substituí-las. Atenciosamente, Paul Hunt. HUNT, 1976 apud DINIZ (2003, p. 13).

A UPIAS é considerada a primeira organização política formada e gerenciada por deficientes sociólogos dos quais, além de Hunt, constavam Michael Oliver, Paul Abberley, Vic Finkelstein, Colin Barnes, entre outros. Este grupo foi o primeiro a resistir politicamente ao modelo médico de compreensão da deficiência, segundo o qual o problema do deficiente se restringia a tratamentos de reabilitação e onde a deficiência era um problema individual ou como dizia Oliver uma ‘tragédia pessoal’. Eles foram os primeiros a dizer que “a experiência da deficiência não era resultado de suas lesões, mas do ambiente hostil à diversidade física” DINIZ (2007), denunciando a falta de abertura e de prever as diferenças. O período que antecedeu a criação da UPIAS era caracterizado pelo estigma da segregação, onde o deficiente tinha um espaço restrito e vigiado, e contato social quase inexistente, condições que, considerando suas peculiaridades, se assemelhavam às condições de exclusão experimentadas por outros grupos minoritários.
A UPIAS recorre a Marx, mais especificamente ao materialismo histórico para fundamentar seu argumento de que a deficiência é uma experiência de opressão social e não uma mera lesão em virtude da qual o deficiente merece somente cuidados médicos, quando os pode ter; neste sentido, A UPIAS estabelece uma profunda ruptura entre lesão e deficiência, pois, enquanto no modelo médico de compreensão da deficiência, as duas significavam a mesma coisa, segundo a UPIAS:
[...] Lesão: ausência parcial ou total de um membro, ou membro, organismo ou mecanismo corporal defeituoso; deficiência: desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea, que pouco ou nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social. UPIAS apud Diniz (2003, p.17).

Desta forma, a UPIAS estabelece uma divisão clara entre os aspectos naturais e sociais, introduzindo um novo debate sobre deficiência que escapa do domínio do modelo médico. Com a nova definição, a palavra lesão se esvazia do significado pejorativo não sendo mais possível explicar a exclusão social que sofrem os deficientes somente pela ocorrência de uma lesão física. A nova definição denunciou o domínio do modelo médico sobre o assunto e a ausência de iniciativas políticas e da intervenção do estado. Com isso, a UPIAS desfaz a idéia de que a deficiência acontece pelo acaso, capricho da vida, ou pela falta de sorte, e sim pelas
interdições sociais impostas e pela discriminação sofrida por parte de uma sociedade que em função de padrões exclui grupos e pessoas que possuem formas diferentes de se expressar.
“A deficiência é um tipo de divisão social que está permeada pela divisão da sociedade em classes e tem íntima relação com esta”. RIBAS (1994). Esmiuçando esta divisão, constata-se uma divisão mais ou menos nítida entre ricos e pobres, trabalhadores e donos de bens de produção, inferiores e superiores, bonitos e feios, vencedores e fracassados. Diante disto cabe perguntar como é possível realizar a inclusão de pessoas com deficiência em uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade social e onde os princípios de igualdade de direitos, dignidade, participação política, liberdade são suplantados por direitos econômicos de consumo e de propriedade? A UPIAS denuncia esta estrutura, não com estas palavras, mas com o seguinte argumento buscado no marxismo:
[...] o capitalismo é quem se beneficia, pois os deficientes cumprem uma função econômica como parte do exército de reserva e uma função ideológica mantendo-os na posição de inferioridade. OLIVER apud DINIZ (2003,p. 22).

O tipo ideal de sujeito produtivo, estabelecido pelas sociedades capitalistas forja os deficientes como um grupo potencialmente destinado à exclusão. No entanto, para que a prática inclusiva ocorra é necessário que se abandone definitivamente relações sociais discriminatórias, que ocorram mudanças atitudinais em relação a diferenças e se quebrem tabus tais como a crença das classes econômicas dominantes que acreditam estar acima da sociedade, e julgam não depender das demais numa clara desvalorização do outro.
A prática de nossa sociedade mostra uma visão negativa acerca da diferença e uma desvalorização da interdependência. Na visão de nossa sociedade de consumo, as diferenças que caracterizam as pessoas com deficiência fazem com que estas fiquem aquém das exigências do ritmo e da capacidade de produção e geração de renda, e como estas diferenças engendram valores diferentes, onde quem pode ser e fazer mais do que o outro recebe mérito, os deficientes, estigmatizados pela incapacidade, são concebidos como de menor valor; mesmo que a ocorrência de lesões seja, desde tempos imemoriais, algo previsível e corrente. Seu caráter previsível, segundo Abberley, ainda fica mais evidente nas sociedades capitalistas, onde é comum o surgimento de enfermidades relacionadas ao desgaste no trabalho, como a artrite. A este respeito, Abberley lançou mão de dados estatísticos sobre saúde na década de 80, onde diferentes formas de artrite surgiam como a primeira causa de lesões.
Com este argumento, Abberley pretendia mostrar que os contextos causariam lesões e deficiências. Este é um exemplo de relação direta do mundo do trabalho com deficiência. No entanto, a realidade estrutural estabelecida pela sociedade capitalista, bem nítida em países como o Brasil, com graves problemas de concentração de renda, nos revela um quadro mais crítico em relação às pessoas com deficiência.

1 Marca simbólica de denotação pejorativa atribuída ao sujeito considerado fora das normas e regras estabelecidas.

2 Deficiente física e ativista do movimento de direitos do deficiente.

3 Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação.