MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.5 - Da violência: policial, tráfico, favela

Para melhor compreendermos as relações de violência e de rechaço da mesma pelo rap é preciso, sobretudo,que conheçamos o contexto social, político e econômico dos últimos 20 anos em nosso país. Desse modo, as discussões a seguir são baseadas principalmente nas discussões propostas por Alba Zaluar (1995, 1998) e por Kabengele Munanga (2006).
 Num panorama geral, pode-se dizer que essas relações são as duas faces de uma mesma moeda. Isso porque o século XXI, no Brasil, é marcado, por um lado, por mudanças significativas no campo da tecnologia e da ciência que promoveram o crescimento da produção industrial e agropecuária, proporcionando um crescimento significativo do número de empregos e consequentemente uma condição melhor de acesso ao consumo para muitas pessoas até então excluídas. Além disso, é preciso considerar a crescente modernização das atividades econômicas que resultou numa sensível melhora nos setores de saúde e alimentação e no aumento do nível de renda de uma parcela significativa da população (é sabido, entretanto, que ainda estamos longe do ideal).
O outro lado da moeda, contudo, mostrou um paralelismo de certa maneira cruel com as populações mais pobres que não viram nem sentiram as melhoras citadas anteriormente. Exemplos disso foi o crescimento assustadoramente acelerado da violência não só no Brasil como no mundo, violência que se manifesta como intolerância, exclusão social, racismo, xenofobia, discriminação, aumento do consumo de drogas lícitas e ilícitas, na morte pela fome, na proliferação de movimentos neo-nazistas que pregam o ódio gratuito, na impunidade dos crimes praticados pela classe política e principalmente pela ausência e descaso do Estado em relação aos problemas sociais mais agudos relacionados  a falta de educação,de  habitação e de saúde. Acrescenta-se ainda a este quadro a forte segregação historicamente sofrida por membros das chamadas minorias étnicas como os negros e os índios, mas também por analfabetos, nordestinos e homossexuais, grupos que de uma maneira ou de outra a ideologia racista se incumbe de marginalizar (ZALUAR, 1998; MUNANGA, 2006).                              
Os temas principais do rap, que também se estende para a literatura marginal, giram em torno das desigualdades sociais vigentes, negro/pobre, branco/rico, da violência urbana e da falta de perspectiva do jovem negro que está inserido nesse contexto.  Esses temas estão intrinsecamente ligados à vida dos membros das classes populares como a carência de bens e equipamentos culturais, precariedade da infra-estrutura urbana, relações de trabalho – predominantemente associados ao espaço social da periferia.
Em História da vida privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea(2008), Alba Zaluar no texto “Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil”,nos coloca a par dos mecanismos que conduzem ao crescimento da violência em nosso país, principalmente entre as classes excluídas, diz ela:

Daí que a correlação entre a pobreza, a falta de informação e o baixo nível educacional adquiriu contornos ainda mais sinistros neste fim de milênio, permitindo formas extremas de exploração na selvageria de um capitalismo que tenta fugir dos controles coletivos, seja na forma de lei, seja na forma das negociações informais, em que as palavras são fundamentais. Por isso é tão difícil entender a violência e lidar com ela: ela está em toda parte, ela não tem atores sociais permanentemente reconhecíveis, nem “causas” facilmente delimitáveis e inteligíveis (ZALUAR, 2008, p. 256).
 

Por qualquer ângulo que se olhe, a violência surge como constitutiva da cultura brasileira, como um elemento fundante a partir do qual se organiza a própria ordem social. Nesse sentido, a história brasileira, transposta em temas musicais e literários, comporta uma violência de múltiplos matizes, tons e semitons, que pode ser encontrada assim desde as origens, tanto em prosa quanto em poesia: a conquista, a ocupação, a colonização, o aniquilamento dos índios, a escravidão, as lutas pela independência, a formação das cidades e dos latifúndios, os processos de industrialização, o imperialismo, as ditaduras. Todos esses temas estão divididos, grosso modo, na já clássica nomenclatura literatura urbana e literatura regional dos modernistas, podendo-se dizer que, ao longo da lenta e gradativa transformação da estrutura socioeconômica e demográfica do país, o desenvolvimento da literatura sempre buscou uma expressão adequada à complexidade de uma experiência que evoluiu tendo como pano de fundo a violência. Pode-se dizer, então, que surge daí a singularidade do discurso do rap nacional.   
   Como se sabe a violência tanto física quanto moral é muito praticada nas periferias urbanas. Em grande parte é exercida pelo próprio Estado configurado na instituição polícia, algo paradoxal, já que é justamente a polícia quem deveria dar proteção. Vejamos como esta tensão é explicitada no rap tomando como exemplo os fragmentos abaixo:

Recebe o mérito, a farda  
Que pratica o mal
Me ver pobre ou morto
Já é cultural
(RACIONAIS MCs, 2002)

Quem confia em polícia?
Eu não sou louco
(RACIONAIS MCs, 1998);

Enquanto zé povinho, apedrejava a cruz
                            Um canalha fardado cuspia em Jesus
(RACIONAIS MCs, 2002)

Pesquisa publicada prova
Preferencialmente preto, pobre,
Prostituta pra polícia prender  
Para, pense, por quê?
(GOG, 2000)

O rap é a forma de resistência e revide encontrada pelo indivíduo da periferia frente à violência diária exercida pela polícia. Desse modo pode-se dizer que a relação entre Estado e os indivíduos da periferia basea-se no revide. No caso dos rappers esse revide se dá pela palavra contestatória e denunciadora de seus poemas; já no caso, da polícia isso se dá, não raro, por meio da violência física e bélica (Cf. ZALUAR, 2008).  Vejamos um trecho do rap “Homem na estrada” (1993), para continuar a ilustrar a tensão entre moradores de favela e polícia, e a violência que surge daí:

Não confio na polícia raça do caraio
Se eles me acham baleado na calçada
Chutam minha cara e cospem em mim
Eu sangraria até a morte, já era um abraço
A minha segurança eu mesmo faço
[...]
Na madruga da favela não existem leis
Talvez a lei do silêncio, a lei do cão talvez
Vão invadir o seu barraco é a polícia
Vieram pra regaçar cheios de ódio e malicia
Filhos da puta comedores de carniça
[...]
Se eles me pegam meu filho fica sem ninguém
O que eles querem mais um pretinho na FEBEM?
(RACIONAIS MCs, 1993)

Segundo Zaluar esse tipo de violência (armada) vem numa crescente e de modo perverso, desde os anos 80, devido a fatores sociais, econômicos e culturais os quais conhecemos hoje por exclusão social:

[...] se fizeram sentir de modo particularmente perverso entre os pobres dos países menos desenvolvidos, onde a política de bem-estar nunca se efetuou, onde quase não há proteção contra o desemprego e onde o sistema escolar permanece pouco preparado para os desafios dessa modernidade do século XX (ZALUAR, 2008, p. 274).  
  

Contudo a autora aponta que a adesão ao mundo do crime e da violência por parte das classes mais pobres é pouca, isso em relação de proporção percentual. De acordo com ela,

[...] o maior contingente desses jovens e crianças, muitos dos quais trabalham na rua, permanecem ao largo das atividades criminosas, embora se encontre em posição mais vulnerável à influência dos grupos organizados de criminosos. Apenas poucos deles terminam envolvidos pelas quadrilhas de ladrões ou traficantes, com os quais cooperam de arma na mão e vida no fio [...] Prova disso é o percentual baixo dos pobres que optam pelo crime como meio de vida em torno de 1% do total da população de um bairro pobre com uma população estimada entre 90 e 120 mil habitantes (ZALUAR, 2008, p. 274- 275).

A exclusão social, que está arraigada na sociedade brasileira, é o que mais se combate no rap. Possivelmente isso se dá pelo fato dos rappers compreenderem que se origina daí grande parte da violência sofrida pelas comunidades periféricas. Entenda-se por exclusão social, a situação de privação coletiva a que é submetido um indivíduo. Um processo de segregação social, ou seja, um fenômeno que se origina da separação do outro, não apenas como um desigual, mas como um “não semelhante, um ser expulso não somente dos meios de consumo, dos bens, mas do gênero humano. Como também, uma forma contundente de intolerância social que marginaliza o ser humano. A exclusão caracteriza-se como uma espécie de desfiliação, representando uma ruptura de pertencimento, de vínculos sociais, isto é, uma impossibilidade de partilhar, o que leva à vivencia da privação, da recusa, do abandono e da expulsão, inclusive, por meio da violência física, de uma parte significativa da população brasileira (Cf. ZALUAR, 2008). Sendo assim, o que estamos entendendo por exclusão social consiste numa lógica que se dá nas formas de relações econômicas, sociais, culturais e políticas que constituem uma situação de privação coletiva que inclui pobreza, discriminação, subalternidade, não equidade, não acessibilidade e não representação pública.
 Nesse contexto, Zaluar sugere:

Na sociedade globalizada, em que coletividades organizadas do tipo empresa, fábrica, sindicato e partido perdem a importância que tinham no passado, a educação adquire novas funções e novo escopo. Em vista do descrédito institucional, a saída estaria em um processo educativo generalizado. Nele, portanto, as políticas públicas deveriam se ocupar mais em prevenir a exclusão do que em reinserir os excluídos, mais em criar uma sociabilidade positiva do que em remediar a negativa[...] Para isso, é imprescindível a recuperação das redes de sociabilidade vicinal e o fortalecimento das organizações vicinais com a participação efetiva dos moradores no espaço público construído pela crítica social que desenvolveram no passado, assim como o processo recente de urbanização de favelas [...] Essa  prática social é indispensável para se  desconstruir  a violência difusa ( ZALUAR, 2008, p. 318)          

Nesse sentido, pode-se ver o rap como um elemento possuidor dessa  função social. Nessa perspectiva, se constitui como um veículo de enfrentamento, de revolta e de denúncia da realidade social que pretende e pode resgatar a auto-estima, por meio da construção de uma auto-imagem positiva, dos jovens estigmatizados, por serem, não raro, negros e pobres. E dessa maneira criam uma identidade comum de proteção entre eles. Mais que isso é o eco de uma geração privada de voz, que toma o direito de falar por si contra a ordem estabelecida que lhe impuseram uma realidade de exclusão contínua.