MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.2 - O eu e o tu do rap

O rap centraliza seu discurso em algo e/ou alguém?
Responder essa pergunta, partindo do senso comum, parece fácil: o rap fala sobre as classes excluídas e seu cotidiano. No entanto, se lançarmos um olhar mais clínico e aprofundado sobre alguns textos de rap, não raro, veremos que quem fala é o MC sobre si mesmo, sobre suas experiências individualmente, ou seja, o discurso está pautado, intencionalmente, numa espécie de centralidade no eu.

   Entendendo com T.S. Eliot, o que estamos chamando de centralidade no eu é a manifestação da primeira voz da poesia: “a primeira voz é a voz do poeta que fala consigo mesmo – ou com ninguém” (1972, p.123). Para Eliot a primeira voz da poesia em si já é a voz que manifesta o eu privado, o que se expssa para si mesmo ou no máximo para uma outra pessoa em particular. O mesmo autor afirma ainda que a poesia pode se manifestar por meio de mais outras duas vozes:

A segunda voz é a voz do poeta ao dirigir-se a uma platéia, seja grande, seja pequena. A terceira é a voz do poeta quando tenta criar uma personagem dramática que fala em verso, quanto esta dizendo, não o que diria à sua própria pessoa, mas apenas o que pode dizer dentro dos limites de uma personagem imaginária que se dirige a uma outra personagem imaginária (ELIOT, 1972, p.123-4). 

   E aponta que a distinção das vozes poéticas baseia-se na dramaticidade de tais vozes, diz ele:

A distinção entre a primeira e a segunda voz, entre o poeta que fala consigo mesmo e o poeta que fala com outra pessoa, conduz ao problema da comunicação poética; a distinção entre o poeta que se dirige a outra pessoa seja com sua própria voz, seja com uma voz hipotética, e o poeta que cria uma linguagem na qual personagens imaginárias falam entre si, aponta para o problema da diferença entre os versos dramático, quase dramático e não-dramático (ELIOT, 1972, p.124-5). 

 Como se vê, a enunciação na poesia lírica (a primeira voz) se da por meio de um “diálogo” do eu lírico consigo mesmo, que tem condições de inventar e usar códigos para si mesmo. Diferentemente, as outras formas de poesia (a de segunda e terceira vozes) pssupõem interlocutores e, portanto, códigos comuns compartilhados por esses interlocutores a um determinado grupo social com quem ele dialoga.
De fato, o falante comum, inserido num grupo social qualquer: “não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 300). Parece ser este o caso do poeta que tem que falar com outrem (o de segunda voz e o de terceira voz) – ele usa códigos compartilhados pelos membros deste grupo. Diferentemente, o poeta de primeira voz (o lírico), se levado ao limite de suas potencialidades, seria esse Adão sozinho no paraíso, falando consigo mesmo, encarregado de inventar seus próprios códigos para definir o seu mundo e seus sentimentos.
No rap, esse processo também se manifesta e é de extrema relevância para manutenção da ideologia que é vinculada em seu discurso, pois geralmente seu discurso está pautado na 1ª voz, porém são audíveis nesse mesmo discurso outras vozes. Podemos entender isso como sendo uma espécie de tensão, que até certo ponto é comum, no rap, pois apesar de seu discurso estar centralizado no eu, o mesmo se esforça para trazer o “nós” para a arena discursiva, traz ao mesmo tempo um eu- individual e um eu-coletivo:

Amo minha raça, luto pela cor,
O que quer que eu faça é por nós, por amor
Não entendem o que eu sou, não entendem o que eu faço
Não entendem a dor e as lágrimas do palhaço
Mundo em decomposição por um triz
Transforma um irmão meu num verme infeliz
E a minha mãe diz:
"- Paulo acorda, pensa no futuro que isso é ilusão,
os próprio pto não tá nem aí com isso não,
olha o tanto que eu sofri, que eu sou, o que eu fui,
a inveja mata um, tem muita gente ruim”.
(RACIONAIS MCs, 2002)

A gente vive se matando irmão, por quê?
Não me olhe assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho,
[...]
Pra todas as famílias, aí,
Que perderam pessoas importante (morô meu)
Não se acostume com esse cotidiano violento,
Que essa não é a sua vida,
Essa não é a minha vida (morô mano!)
Procure a sua paz....
(RACIONAIS MCs, 1998)
   

Os fragmentos acima nos mostram a tensão que se desenvolve na esfera discursiva do rap porque, ao mesmo tempo em que fala de si para si mesmo, busca também falar  ao outro.  
Para Bakhtin,

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expssão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 1995, p. 113).

A imagem da palavra como ponte, proposta por Bakhtin, é complementada pela noção de diálogo inconcluso. Cada fala é parte de um grande diálogo:

A única forma adequada de expssão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p. 348)

Ainda na esteira de pensamento de Bakhtin (2003), todo enunciado, continuamente, nas mais diferentes circunstâncias, responde, de uma maneira ou de outra, aos enunciados que o pcederam. Dessa forma, “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos pcedentes que o determinaram tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas” (BAKHTIN, 2003, p. 300).
Assim, como viver repsenta estar em atitude responsiva, visto que não somos seres passivos, pois interrogamos, respondemos, questionamos, concordamos, discordamos etc. Nesse sentido, fica mais fácil de entender o porque das atitudes dos rappers quando entram em cena num palco produzindo e reproduzindo gestos com as mãos, braços e pernas,   o corpo como um todo, tudo é expssão dialógica. Além disso, o rap quando busca a forma dialógica polifônica de enunciação parece buscar também a ampliação do diálogo entre o eu lírico e sua comunidade, ou melhor, suas comunidades já que “periferia é periferia em qualquer lugar” (RACIONAIS MCs, 1998).
Como se constata, o rap busca estar semp em uma situação de interação, procura  ver-se manifestando no outro e vice-versa. Desse modo, busca complementar, talvez de senso crítico, aqueles que não conseguem compender que é só por meio de uma união que alcançarão seus objetivos.   

O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações contemplam o outro justamente naqueles elementos em que ele não pode completar-se. (BAKHTIN, 2003, p. 323)

Por isso que

A palavra, a palavra viva, indissociável do convívio dialógico, por sua própria natureza quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica, ela pssupõe também a última instância dialógica. Receber a palavra, ser ouvido. É inadmissível a solução à revelia. Minha palavra permanece no diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e reapciada. (BAKHTIN, 2003, p. 356)

Desse modo, as relações sociais, históricas e discursivas que se realizam cotidianamente nas diferentes esferas da sociedade, assim como as que acontecem no universo marginalizado da periferia evidenciam a necessidade humana de ser sujeito do discurso e não apenas objeto dele.
Para observar os procedimentos dialógicos apontados acima, analisaremos os versos de “Fórmula mágica da paz” e “Capítulo 4 versículo 3”, poemas integrantes do disco Sobrevivendo no Inferno (2008); e “Negro Drama”, do disco  Nada Como um Dia Após o Outro Dia (2002);  todos dos Racionais MCs. Com isso, acreditamos consolidar nossa afirmação de que o rap faz uso de um discurso lírico. Entendemos um discurso lírico como sendo aquele que, recorrendo a um discurso denso, expssivo e com musicalidade e ritmo, permite, artisticamente exprimir as emoções, os sentimentos, os desejos ou os pensamentos íntimos que nascem ou se apsentam ao “espírito”, ou seja, ao mundo interior do "eu" numa espécie de auto-reflexão que pode se manifestar de forma interna ou externa seguindo a seguinte fórmula: um eu que pode ter como interlocutor ele mesmo ou um segundo individuo, semp apsentando um discurso centralizado no eu e em suas experiências. Vejamos: 

Essa porra é um campo minado
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui,
Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho
A minha vida é aqui e eu não consigo sair.
É muito fácil fugir mas eu não vou.
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou.
Eu gosto de onde eu sou e de onde eu vim,
Ensinamento da favela foi muito bom pra mim.
(RACIONAIS MCs, 1998, grifos nossos)

O trecho explicitamente apsenta isto que estamos chamando de centralidade no eu. O MC fala de si pra si mesmo, vide grifos. Fala dos dramas, das angústias, das alegrias e ensinamentos que obteve no lugar onde mora, o qual é, ao mesmo tempo, seu “tudo”: “minha área é tudo que tenho/ a minha vida é aqui” e seu “nada”: “essa porra é um campo minado / quantas vezes eu pensei em me jogar daqui”. Muitas vezes, no rap, o lírico chega ao estágio de auto-reflexão, a expssão interior do eu, e se faz psente como podemos ver neste outro trecho de “Fórmula mágica da paz”:

Choro e correria no saguão do hospital.
Dia das criança, feriado indo pro final.
Sangue e agonia entra pelo corredor.
Ele tá vivo! Pelo amor de Deus doutor!
4 tiros do pescoço pra cima, puta que pariu a chance é mínima!
Aqui fora, revolta e dor, lá dentro estado desesperador!
Eu percebi quem eu sou realmente, quando eu ouvi o meu sub-consciente:
"E aí mano Brown cuzão? Cadê você? Seu mano tá morrendo o que você vai fazer?". Pode crê, eu me senti inútil, eu me senti pequeno, mais um cuzão vingativo, mais um  
(RACIONAIS MCs,1998, grifos nossos).

Vê-se configurada aqui a primeira voz da poesia descrita por Eliot.  A voz que fala consigo mesmo. A utilização das aspas dá ênfase ao discurso lírico que centraliza o eu.  No limite, o texto toma proporções de uma espécie de monólogo interior, vide grifos.  
               O texto segue:

Puta desespero, não dá pra acreditar, que pesadelo, eu quero acordar.
[...]
Na parede o sinal da cruz.
Que porra é essa?
Que mundo é esse?
Onde tá Jesus?
[...]
Porra, eu tô confuso. pciso pensar
Me dá um tempo pra eu raciocinar
Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá,
Minha ideologia enfraqueceu
pto, branco, polícia, ladrão ou eu,
Quem é mais filha da puta, eu não sei!
Aí fudeu, fudeu, decepção essas hora...
A depssão quer me pegar vou sair fora
(RACIONAIS MCs, 1998).

Nesse trecho o eu lírico se questiona e questiona a realidade na qual está inserido.  Parece entrar numa espécie de colapso interior em que seus valores e sua ideologia parece não fazer mais sentido. Eis aqui um bom exemplo do discurso lírico do rap, a centralidade no eu.
No poema “Negro Drama”, também é possível observar o aspecto de centralidade:

Negro drama,
Eu sei quem trama,
E quem tá comigo,
O trauma que eu carrego,
Pra não ser mais um pto fudido
(RACIONAIS MCS, 2002, grifos nossos)

O trecho acima é o início do poema. A centralidade no eu novamente está psente, ainda que, num primeiro momento, possa parecer que o texto está na terceira pessoa. Com efeito, a estrutura textual de “Negro Drama” é divida em duas partes, a primeira é enunciada por Edy Rock (integrante vocalista dos Racionais MCs) que apsenta o conflito do jovem negro a partir de uma visão ampla, diríamos mesmo genérica. Ainda que forte e cheia de denúncia, a enunciação desta primeira parte é menos agressiva do que a da segunda parte; esta como veremos, mais próxima da típica enunciação do rap. Eis um trecho da primeira parte que enfatiza esse aspecto genérico de que falamos acima:

Negro drama,
Cabelo crespo,
E a pele escura,
A ferida e a chaga,
A procura da cura,
[...]
O drama da cadeia e favela,
Túmulo, sangue,
Sirene, choros e vela,
  (RACIONAIS MCs, 2002)

Na segunda parte, o enunciador é Mano Brown, que então toma o discurso para si, falando sobre a condição do negro de modo autobiográfico, isto é, usando elementos de sua própria vida na favela para dar caráter ainda mais denso à centralidade do eu, de que falamos. Aqui a entonação é mais agressiva. Eis um trecho:

Crime, futebol, música... Caralho,
Eu também não consegui fugir disso aí.
Eu sou mais um.

Daria um filme!
Uma negra e uma criança nos braços,
Solitária na floresta
De concreto e aço.

Veja, olhe outra vez,
O rosto na multidão,
A multidão é um monstro,
Sem rosto e coração.
(RACIONAIS MCS, 2002, grifos nossos)

 O trecho grifado é apsentado sob a entonação da fala comum, sem a modulação dramática e violenta da voz que caracteriza o rap. A partir da segunda estrofe o relato vai adquirindo um tom mais inflamado, mais cantado, numa crescente retórica cada vez mais agressiva e contundente.  Mais para o fim do poema, outros integrantes do grupo cantam também, acompanhando Brown – evidenciando novamente a tensão discursiva, vista acima, entre o eu- individual e o eu-coletivo que se configura no o rap.  
Essa característica também pode ser encontrada em “Capítulo 4 versículo 3”:

Eu tenho uma missão e não vou parar
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
Minha palavra vale um tiro e eu tenho muito munição
Talvez eu seja um sádico
Um anjo um mágico
Juiz ou réu
Um bandido do céu
E a profecia se fez como pvisto
1 9 9 7 depois de Cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais capítulo 4 - versículo 3
(RACIONAIS MCs, 1998)

Novamente vemos a fórmula lírica configurada. Um “eu” que se manifesta como uma espécie de enviado que ressurge, se autodenomina como “A fúria negra” para terminar uma, já iniciada, missão (busca por liberdade? Direitos iguais? Dignidade?).
Portanto, o que se deve entender no rap é que mesmo apsentando um discurso, como vimos, focado no eu, ele é constituído por um desejo que visa à coletividade, ou seja, é uma ideologia construída para consolidar um lócus de enunciação que ecoa a partir da periferia rumo ao centro, por isso pode-se dizer que a voz que ecoa do rap assim como a da literatura marginal não é focada num “eu-individual”, numa voz isolada, numa única voz, pelo contrário está semp focada num “eu-nós”. Sendo assim, não é um equívoco pensar o rap como sendo uma espécie de manifesto da periferia, o qual é construído, sobretudo, a partir da crença no poder da palavra escrita e cantada como forma de libertação do indivíduo oprimido.