FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

Karoline Batista Gonçalves(CV)
Roberto Mauro Da Silva Fernandes
(CV)
Organizadores
Universidade Federal da Grande Dourados

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PERSPECTIVAS DIVERSAS SOBRE A FRONTEIRA: DA PARTILHA DOS ESTADOS-NAÇÕES A PARTILHA DA CIÊNCIA

Vivianne dos Santos Cavalcanti1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
    vianicorao@yahoo.com.br

Resumo
Quando se pensa em fronteira logo se visualiza a delimitação que é posta entre nações vizinhas. O conceito de fronteira, no entanto, sem perder a sua essência adquiriu acepções diversas e que perpassam pelas múltiplas escalas de vivência do homem. Além das fronteiras que se situam na zona de separação entre países, na escala micro, os indivíduos ao se relacionarem uns com os outros acabam impondo uma série de limitações para demarcar seus interesses ou mesmo se defender de possíveis fatores que os ameaçam e que podem trazer danos a sua estabilidade. Além disso, alguns elementos ao serem criados acabam impondo também uma série de limitações a outros pré- existentes pelo fato de considerarem os mesmos como sendo inferiores. Dessa maneira se deu o processo de desenvolvimento e consolidação da ciência moderna, que ao ser criada subjugou os conhecimentos já existentes e ainda limitou a suas pesquisas a objetos específicos, deixando de lado alguns elementos que apresentavam  uma grande relevância para o entendimento de aspectos imprescindíveis da sociedade e suas relações com o meio.

Palavras-chave: fronteira; limite; Ciência Moderna; Geografia.

Abstract
When you think of just viewing the border demarcation which is placed between the neighboring nations. The concept of the border, however, without losing its essence and acquired several meanings that underlie the multiple scales of human experience. Beyond the borders of which are located in the buffer zone between countries at the micro level, individuals relate to each other end up imposing a number of limitations to demarcate their interests or to defend against possible factors that threaten them and can bring damage to its stability. In addition, some elements to be created also end up imposing a number of limitations to other pre-existing because they considered them as inferior. This gave way if the process of development and consolidation of modern science, to be created that overthrew the existing knowledge and further limited their research to specific objects, leaving out some elements that had a great importance for understanding the essential aspects society and its relationship with the environment.

Keywords: border, boundary; Modern Science, Geography.

 

1 – Algumas considerações a cerca do conceito de fronteira

O conceito de fronteira pode ser designado como “o ponto limite de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos, por diferentes grupos humanos” (MARTINS, 1997, p.11), sendo quase sempre visualizado desta forma, como uma zona limítrofe entre duas áreas vizinhas.
Este conceito, no entanto, pode dar margem a uma pluralidade de significações, não se restringindo somente a fronteira geográfica definida acima, mas sim a uma série de limitações criadas pelos indivíduos nas diversas ações, entre si e com o meio, que praticam em seu dia-a-dia.
Assim, essa noção de fronteira que se restringe a retratar a zona de separação entre dois países tem se mostrado um tanto quanto limitada, pois, como já dito acaba não contemplando as múltiplas significações que podem ser extraídas deste termo.
Como nos diz Martins (1997),

[...] fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano (p. 13).
Diz-se então que atualmente a concepção tida de fronteira por vários estudiosos tem adquirido significados diversos que também nos dizeres de Albuquerque (2010) correspondem a “delimitações de territórios ou (...) metáforas da vida social, fronteiras porosas e rígidas, barreiras ou formas de travessias, diferenças e sincretismos, limites e caminhos” destacando ainda que na atualidade “a palavra passa a ser bastante utilizada nos textos e discursos acadêmicos sobre os limites entre as áreas do conhecimento e as formas híbridas de percepção dos fenómenos sociais na atualidade” (p.329).
            A fronteira ainda, como já dito, por suas amplas acepções pode ser visualizada nas relações entre os indivíduos dentro de uma sociedade, de seus conflitos e de suas implicações em geral. Depreende-se então a partir disso que o estabelecimento de limites e, dentro destes, de fronteiras é um fenômeno que pode se apresentar estritamente ligado a nossas relações cotidianas dentro de um determinado grupo humano. Diz-se então que

diariamente, em todas as fases de nossa existência, somos confrontados com a noção de limite: traçamos limites ou esbarramos em limites. Entrar em relação com os seres e as coisas é traçar limites ou se chocar com limites. Toda relação depende da delimitação de um campo, no interior do qual ela se origina, se realiza e se esgota. (RAFFESTIN, 1993, p.164).

Dessa maneira, coloca-se a importância do limite e, derivando deste, da fronteira em nossa existência como indivíduos, não devendo, portanto haver uma simples limitação do fenômeno fronteira como sendo apenas uma zona que separa duas áreas, dois países.
Vale ressaltar ainda que é de fundamental importância que seja feita uma diferenciação entre o limite e a fronteira, sendo que algumas vezes estes conceitos são postos erroneamente como se representassem um elemento comum. Martin (1992), diferenciando estes dois conceitos, nos coloca que “o ‘limite’ é reconhecido como linha, e não pode portanto ser habitada, ao contrário da ‘fronteira’ que ocupando uma faixa, constitui uma zona, muitas vezes bastante povoada [...]” (p.47).
Dessa maneira pode-se dizer que é do limite que se origina a fronteira. A partir da imposição, da delimitação de um elemento específico, de uma área, uma zona de separação entre “este” e “aquele” é criada, sendo esta zona a fronteira. Nos dizeres de Raffestin (1993), o limite é uma classe geral, sendo a fronteira um subconjunto.
A fronteira em todas as suas significações, zona que se situa entre duas áreas, dois elementos, acaba recebendo as influências de elementos de ambos os lados de seu entorno, sendo por isso um fenômeno possuidor de características próprias e únicas. Um local considerado por isso híbrido e que foi definido pelo brasileiro Silviano Santiago nos anos 70 como sendo um “entre-lugar”, um lugar intermediário e paradoxal, onde se mostram e se encontram relações e características únicas (HANCIAU, 2005).
O “entre-lugar” passa então a designar o sentido do que é a fronteira, uma zona que por se situar entre duas regiões, dois elementos, acaba não sendo nem o “eu” nem o “outro”, mas sim uma mescla destes. Esse conceito foi cunhado numa tentativa de explicar os acontecimentos que surgiram nos últimos anos do século XX, quando se mostrou necessário o levantamento de explicações e novas interpretações acerca das relações que se davam entre os indivíduos moradores de regiões periféricas do planeta, buscando-se sobretudo explicações para o sentido de pertencimento que norteavam os mesmos nestes locais (FERRAZ, 2010).
 Em sua origem a fronteira surgiu como sendo a moldura dos Estados Modernos que se constituíram na Europa a partir do século XVI (MARTIN, 1992). Esta delimitação entre Estados ocorreu através do agrupamento, em um mesmo espaço, de indivíduos que eram vistos como possuidores de características semelhantes. Grupos que possuíam um idioma, costumes e modos de vida comuns foram postos como sendo semelhantes e alocados em um mesmo local, sendo este delimitado por fronteiras.
Essa ideia de delimitar um grupo em relação a outro, é apontada como uma delimitação cultural, isto se dando por meio da colocação das fronteiras entre áreas. Dessa forma diz-se que “definir uma cultura seria um exercício de afirmar quais eram os seus limites e o que caberia e o que não caberia nela. Para tanto, era fundamental delimitar o território em que habitavam os portadores desta cultura, estabelecer sua língua, seus símbolos, seus costumes, etc.” (OLIVEN, 2006, p. 157).
De início prevaleceram as fronteiras naturais, estas sendo rios, florestas, desertos, etc. Posteriormente foram construídos limites físicos entre nações, sendo esses mais frequentemente muros (MARTIN, 1992). As fronteiras a princípio, quando da constituição dos Estados-Nações, eram estruturas bem vigiadas, pois tinha-se muito receio de que o território delimitado fosse invadido e tomado por estranhos, vistos como sendo na maioria das vezes bárbaros e inferiores.
A vigilância feita na zona das fronteiras ainda é perceptível nos dias de hoje. Nestes espaços que separam duas nações muitas vezes é mobilizado um grande número de forças armadas na tentativa de impedir a entrada de estranhos, estrangeiros que representam uma ameaça à estabilidade social, política, ideológica, cultural etc. do país.
Nos países ricos que se localizam próximos a países em desenvolvimento esta preocupação em se vigiar as fronteiras se mostra ainda maior, pois a entrada de pessoas com uma orientação ideológica, cultural e principalmente com um nível econômico inferior é apontada como sendo uma grande ameaça a ordem vigente e a “estabilidade” que é percebida dentro dos Estados-Nação.
 A estrutura de fronteira pode ser vista então acima de tudo como um elemento representativo do poder que um grupo de governantes ou um único soberano exerce sobre uma determinada área sobre a qual acaba impondo limites, lançando lhe um projeto social específico e consequentemente uma ideologia, a qual todos, considerados indivíduos “culturalmente homogêneos” devem seguir. Por possuírem este caráter, os espaços delimitados por limites e fronteiras foram denominados por Raffestin (1993) “quadrículas de poder”.
Como já dito anteriormente, fronteiras e limites apesar de possuírem significados diferenciados podem ser vistos, do ponto de vista de sua criação e instauração, sob o prisma do poder já que são postos para atender aos interesses particulares de um grupo de governantes, de um soberano, ou até de um indivíduo que em suas relações cotidianas impõe certos limites para que possa desenvolver e defender seus objetivos, de modo mais tranquilo (RAFFESTIN, 1993; ALBUQUERQUE, 2010).
Apesar de algumas fronteiras, ainda nos dias de hoje, apresentarem uma separação rígida entre duas nações não sendo possível a movimentação entre indivíduos de um local a outro, muitas apresentam estruturas bastante fluídas, permitindo assim a passagem dos indivíduos entre espaços delimitados. Com isso o objetivo principal da instalação das fronteiras que seria o de delimitar, entre outras coisas culturas, acaba sendo deixado de lado já que as pessoas que viajam acabam levando consigo alguns de seus valores culturais, seus costumes e práticas (OLIVEN, 2006).
Ainda nos dizeres de Ferraz (2010),

as fronteiras não são mais tão rígidas e nítidas. As interações de fenômenos, objetivos, ideias, imagens, sons e pessoas de diferentes lugares e escalas de manifestações, ocorrem no lugar, em cada lugar, nesse lugar em que se busca consolidar os sentidos de identidade e existência pessoal. (p.19).

Outro sentido que pode ser atribuído ao conceito de fronteira é o que diz respeito às delimitações que foram impostas pelo conhecimento científico ao longo de seu processo de desenvolvimento e consolidação, quando adquiriu algumas características próprias como um pensar extremamente racional, baseado em definições prévias e delimitações feitas a priori.
Ao se apoiar em uma série de limites na elaboração de seus estudos, tendo estes alguns fatores priorizados como a objetividade, a imparcialidade e a ruptura com o senso comum, tornou-se extremamente racional e objetivo, distanciando-se cada vez mais do que é vivenciado cotidianamente pelos indivíduos.
Tendo sido conduzida pelo paradigma da modernidade, a Ciência 2 entre outros fatores, objetivou uma ruptura com tudo aquilo que não representasse o “puramente científico”, marcando assim uma série de rupturas epistemológicas que a acompanharam por todo o seu processo de desenvolvimento.
Com isso, a Ciência deixou de abarcar em suas pesquisas uma série de elementos que não se enquadravam dentro dos “novos padrões” adotados. Caracterizando-se como sendo uma Ciência Moderna, iniciou uma série de rupturas voltadas ora a conhecimentos já existentes, ora a outros considerados como sendo inferiores, além de deixar de fora de sua área de interesse e análise elementos vivenciados pelos indivíduos e que poderiam ser utilizados para uma maior aproximação entre o homem e a ciência.
 A primeira ruptura epistemológica feita pela Ciência quando de seu surgimento foi direcionada aos mitos, onde houve a separação entre o que era considerado senso-comum - os mitos, no caso - e o científico, o conhecimento que estava sendo elaborado (HISSA, 2006).
            Mostra-se importante salientar que os mitos constituem-se em conhecimentos elaborados por povos primitivos, produzidos no contexto do grupo e utilizados por estes povos como um meio de explicação de sua realidade. Organizam-se em princípios utilizados por estes indivíduos para se manterem estáveis diante do desconhecido, buscando um equilíbrio cultural dentro de sua sociedade (HISSA, 2006).
Além disso, os mitos utilizam-se quando da sua elaboração das sensações e das subjetividades do grupo, manifestando muitas vezes a sua inquietude perante o cotidiano da sociedade, no que diz respeito à disponibilidade de alimentos (caça, pesca, coleta de vegetais), da segurança do grupo em relação aos inimigos, da saúde dos que estão vivos, da paz espiritual daqueles que já morreram etc. (HISSA, 2006). Por possuírem estas características,

os mitos primitivos constituem verdades para o grupo. Tais verdades, de caráter dogmático e intuitivo, não estão fundamentadas no pensamento racional e tampouco são regulamentadas pela investigação e pelo trabalho empírico (no significado moderno que se atribui ao conhecimento construído pelo saber científico). São crenças que não necessitam de comprovação – nos termos regulamentados para a produção do saber moderno – que não admitem contestação. (HISSA, 2006, p. 50).

O conhecimento científico, por sua parte e utilizando de critérios próprios, interpreta o mito como sendo um conhecimento sem valor algum. Faz isso pelo fato de que este pensamento, considerado hegemônico e em sua maior parte produzido pela comunidade científica ocidental, coloca as sensações, as quais são bastante utilizadas na elaboração dos mitos, à margem dos conceitos científicos. Já o pensamento das sociedades primitivas, por sua vez, “calcula, não com dados abstratos, mas com ensinamentos de natureza sensível, odores, texturas, cores” (LEVI-STRAUSS, 1989 apud HISSA, 2006, pp. 50 e 51).
Além de considerar os mitos elaborados pelas sociedades ditas selvagens como sendo inferiores, o conhecimento científico também coloca as pesquisas desenvolvidas por estudiosos originários do Hemisfério Sul como sendo menos relevantes, quando comparadas as que são produzidas na porção Norte do planeta, mais precisamente no continente europeu (SANTOS, 1989; PORTO-GONÇALVES, 2006).
Os povos do Hemisfério Sul por terem sido colonizados pelos países do Norte são considerados atrasados e inferiores em diversos de seus aspectos, sendo que o campo que abarca o conhecimento científico não fica de fora deste processo. Dessa maneira a Ciência que é produzida pelos pesquisadores da linha de baixo do Equador, “as epistemologias do Sul” como nos diz Santos (1989), é praticamente ignorada pelos países ricos, pelo conhecimento produzido no Norte, o qual Santos (1989) também denomina “epistemologias do Norte”.
Ainda como nos diz Santos (2009), o pensamento ocidental é dividido em dois universos distintos: “o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’” (p. 23), sendo que o outro é visto com tamanha insignificância, que chega até ser posto como inexistente. Nos dizeres de Santos (2009) “do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objectos ou matéria-prima para a inquirição científica” (p. 25).
Esta linha que separa o conhecimento produzido do “lado de cá” do que é produzido do “lado de lá” é denominada linha abissal, sendo designada assim pelo fato de suprimir qualquer possibilidade de haver uma realidade digna de ser representada do outro lado da linha (SANTOS, 2009). As epistemologias do Sul são então reconhecidas como sendo inferiores e este discurso de inferioridade é utilizado pelos pensadores do Norte para subjugar as mesmas, caracterizando assim mais uma ruptura epistemológica da ciência.
Outra ruptura imposta pela racionalidade extrema adotada pela ciência moderna, e que também pode ser destacada, foi o esquecimento dentro das pesquisas de cunho geográfico das práticas cotidianas, fazendo com que a Geografia em certa medida se constituisse em uma ciência sem dinamicidade, pautada em pesquisas extremamente teóricas e com métodos e conceitos fechados, elaborados a priori (FERRAZ, 2004).       
Assim, juntamente com a racionalidade da ciência e a colocação dos objetos de estudo dentro de modelos rígidos e fechados, houve com o passar dos anos uma desvalorização das práticas cotidianas na Geografia. No entanto, esta ciência originou- se das práticas dos indivíduos com o ambiente vivido (SANTOS, 2007) e seu relacionamento com o cotidiano e a vivência dos mesmos mostra-se imprescindível na elaboração de pesquisas de caráter geográfico.
 Como nos diz Ferraz (2008): “um saber dito geográfico [...] não pode se restringir a modelos e metodologias que não abordem a dinâmica das relações cotidianas estabelecidas pelos indivíduos na construção de seus referenciais espaciais e paisagísticos [...]” (p.11).
Dessa maneira, partindo dos elementos expostos acima: a falta de importância dada pela ciência aos mitos elaborados pelos povos primitivos, a desvalorização dos conhecimentos produzidos por pesquisadores do Hemisfério Sul e por fim do “esquecimento” das práticas cotidianas dentro dos estudos propostos pela Ciência, percebe-se que a consolidação do pensamento científico fez-se ao longo do tempo a partir da criação de uma série de rupturas que devido a sua essência de subjugar os demais conhecimentos e práticas, podem ser denominadas de fronteiras, fronteiras criadas pela ciência.
Fronteiras estas, que ao apartarem o “este”, “daquele”, podem ser visualizados como instrumentos utilizados pelo conhecimento para apartar de si o que considera estranho e inferior. Essa caracterização da instauração de fronteiras pela ciência atende claramente as características que são ligadas a esta, onde o outro é degradado para viabilizar a existência de quem o considera inferior, o subjuga, explora e domina (MARTINS, 1997).
No caso das fronteiras instaladas pela ciência o “outro” - mitos, “epistemologias do Sul”, práticas cotidianas - são subjugados e desvalorizados pelo conhecimento que se põe como hegemônico. Nessas fronteiras o outro é reconhecido, sendo este reconhecimento utilizado pelos do “lado de lá” para reforçar as suas características diferenciadoras, sua superioridade (OLIVEIRA, 1995; MARTINS, 1997).
A partir daí coloca-se então como a ciência, e no caso específico deste trabalho a ciência geográfica, conhecimento que objetiva, entre outros fatores, o estudo do homem e de seu relacionamento com o meio, havendo a aproximação entre a teoria e a prática da vida social, acabou se tornando um elemento que traz mais estranheza do que conhecimento de fato.
Essa estranheza associada às pesquisas de cunho científico nas quais a Geografia se enquadra se dá pelo fato de que, as mesmas pouco ou nada podem ser aplicadas a realidade dos homens, caracterizando a Ciência Moderna como sendo um elemento que apesar de sua dita importância é encarado como importante ou válido apenas perante a sociedade que lhe deu origem.
Diz-se por isso, que a Ciência Moderna acabou, por uma série de fatores, tornando-se um objeto que mais separa do que agrega o conhecimento, que mais traz estranheza ao homem que conhecimento do real, do mundo em que vivem e se relacionam os indivíduos, um mito elaborado em bases racionais e que se constitui em verdade apenas a sociedade que a criou.

2 – Rupturas epistemológicas: fronteiras impostas pela ciência

            Como já dito anteriormente, o elemento fronteira atualmente denota uma pluralidade de significações, não se restringindo, portanto a simples colocação dela como sendo a zona que separa duas nações vizinhas, ou seja, não se limita apenas a noção de fronteira geográfica.
 Nos dias de hoje uma das discussões feitas acerca do conceito de fronteira é a que diz respeito as rupturas que foram impostas pela ciência ao longo de seu processo de desenvolvimento e consolidação (HISSA, 2006; SANTOS, 1989; 2009).
Todos os ramos da ciência, com o passar dos anos, foram adquirindo algumas características que fizeram com que uma série de limites fossem impostos na elaboração de seus estudos, tendo estes alguns fatores priorizados como a objetividade, a imparcialidade e a ruptura com o senso comum. Estas limitações foram impostas pela ciência pelo fato de reconhecerem os outros conhecimentos pré-existentes quando de seu surgimento como sendo inferiores (HISSA, 2006; SANTOS, 1989; 2009).
 Este caráter da ciência de considerar os outros conhecimentos como possuidores de uma menor relevância caracteriza a imposição de fronteiras feita pela mesma. Os pesquisadores ao elaborarem seus estudos apartam o “este” do “aquele”, utilizando-se de instrumentos próprios para descaracterizar e retirar o cunho científico de práticas e conhecimentos que julgam como sendo estranhos e inferiores.
Essa caracterização da instauração de fronteiras pela ciência atende claramente as características que são atribuídas a esta, onde o outro é degradado para viabilizar a existência de quem o considera inferior, o subjuga e domina (MARTINS, 1997).
A Ciência, então, como já dito, sendo guiada pelo paradigma da modernidade, ao longo do tempo foi estabelecendo uma série de cisões entre o que considerava como não sendo válido de ser visualizado como parte integrante do conhecimento científico, marcando assim uma série de rupturas epistemológicas, verdadeiras fronteiras que a caracterizaram por todo o seu processo de construção.
Com isso, a ciência adquiriu características próprias e acabou se tornando quase que restrita ao pequeno grupo que detém o poder de formulá-la. Assim, acabou se afastando da coletividade, constituindo-se em uma verdade absoluta para os que a elaboraram e um conhecimento estranho para os que observam-na de fora. Mais uma fronteira imposta pela ciência.
A ciência dita moderna edificou-se seguindo os passos de uma sociedade também denominada moderna, baseada em ditames referenciados pelo Renascimento e pelo Iluminismo.  Além disso, outra corrente também marcou fortemente o desenvolvimento desta nova sociedade. Como nos diz Hissa (2006):

na reprodução histórica da modernidade, a ciência desenvolve-se a partir de uma concepção filosófica compatível com a realidade em processo de edificação: o positivismo. Limites são impostos à imaginação, na expectativa de que se construam os pretendidos caminhos do rigor, na indiscriminada procura da objetividade como estratégia de solução de ‘erros científicos’ (p.58).

Assim, de acordo com o fragmento exposto, pode-se dizer que grande parte da objetividade e racionalidade adquiridas pela ciência, e que foram levadas a todas as suas áreas, devem-se aos princípios positivistas, que não enxergavam a subjetividade e a imaginação como elementos favoráveis a realização de um bom trabalho científico. Ainda nos dizeres de Hissa (2006):

as emoções, que permeiam toda a trajetória de vida e de relações dos indivíduos com o mundo, seriam definidas – sobretudo pelos adeptos mais radicais da modernidade que se constitui e se propaga – como um campo de sensações que dificultam e obscurecem o ato científico objetivo e rigoroso, construindo um universo ilusório e ficcional que não conduz ao conhecimento reivindicado pela ciência (HISSA, 58).

Percebe-se com isso que para a elaboração de uma ciência dita moderna seria indispensável a partir daí, a elaboração de pesquisas que seguissem normas rígidas, sendo necessário, entre outros fatores, a adoção de um método, este sendo próprio e sistemático, e apropriado para a elaboração de conhecimentos que serão interpretados como leis. Além disso, a metodologia científica deve ser utilizada – como se representasse uma única metodologia – ilustrando o rigor e a objetividade da ciência (HISSA, 2006).
Os trabalhos científicos a partir de então passaram a adotar esses critérios na elaboração de seus saberes, sendo que conhecimentos que não se enquadrassem dentro destes padrões não eram validados. Havia até certa temeridade entre os pesquisadores de que seus trabalhos a não atender as exigências impostas pelos novos padrões científicos fossem considerados como uma “não-ciência” (FERRAZ, 2008).
 O gradativo desenvolvimento da ciência trouxe concomitantemente consigo a desvalorização dos mitos, saberes das sociedades primitivas (HISSA, 2006). A ciência, adotando a racionalidade para explicar os fenômenos que ocorriam no mundo, fez com que houvesse um desencantamento na explicação dos questionamentos levantados pelos indivíduos, que até então encontravam um grande respaldo nos saberes dos povos tidos como selvagens3 . Dessa maneira

cada pequeno avanço da ciência correspondeu a um recuo no conjunto mítico dos valores éticos utilizados para explicar o mundo. A ciência evoluiu em um processo de desencantamento, correspondente a um desencantamento nas explicações. Através dos modelos racionais a explicação das coisas foi sendo liberada da dependência que a vinculava às crenças que o pensamento tinha. O pensamento científico permitiu às ideias fugirem da ética que norteava as explicações prevalecentes, onde deuses bons e deuses maus provocavam o nascer e o pôr-do-sol, eclipses e terremotos, a criação e o funcionamento do mundo (BUARQUE, 1991, p.11).

Assim, a ciência iniciou o processo de construção de fronteiras entre o conhecimento produzido por si própria e os outros tidos como inferiores. Vale ressaltar aqui que a noção de fronteira perpassa a clássica visão de que consiste em uma área que separa dois Estados-Nação. Para Martins (1997),

[...] fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano (p. 13).

 Como “fronteira do humano” depreende-se então que fronteiras são estabelecidas pelos indivíduos em suas relações consigo e com o ambiente e os fenômenos que vivenciam, assim como dos conflitos ocasionados deste processo. Assim, considera-se a fronteira acima de tudo um fato social nos dizeres de Martins (1997), que pode possuir vários sentidos de acordo com o contexto, as relações e as problemáticas vivenciadas pelos indivíduos.
O estudo realizado por Albuquerque (2010) aponta que na contemporaneidade a noção de fronteira adquire significados diferenciados, sendo utilizada para designar “delimitações de territórios ou como metáforas da vida social, fronteiras porosas e rígidas, barreiras ou formas de travessias, diferenças e sincretismos, limites e caminhos” (p.330).
 Ainda, de acordo com Martins (1997), tem-se que a noção de fronteira nos últimos anos esteve/está muito presente entre os estudos elaborados por autores das ciências humanas, sobretudo entre aqueles que questionam os rumos que os pressupostos científicos tomaram em seu processo de consolidação.
Faz-se então também neste trabalho o uso do conceito de fronteira para designar as rupturas feitas pela ciência, e especialmente pela ciência geográfica, concomitantemente ao seu desenvolvimento e consolidação.
Como já apontado, além da ruptura com os mitos das sociedades consideradas primitivas quando do surgimento da ciência, há uma grande discussão que se acentuou muito nos últimos anos a cerca dos limites impostos pela ciência que é produzida pelos países do Norte em relação à ciência produzida pelos países do Sul. As ciências produzidas pelos dois hemisférios são denominadas epistemologias, designando todas as formas válidas do pensar (SANTOS, 1989).
No final da década de 70, quando começaram as discussões acerca da pós-modernidade, verificou-se o abismo existente entre as ciências que eram produzidas pelos países localizados na porção Norte e na porção Sul do Planeta. Este abismo, distância entre estas formas de pensar foi denominado “pensamento abissal” por Santos (1989; 2009), sendo que como já dito ao invés de unir, separa o pensamento entre o que é considerado válido (pensamento eurocêntrico) e o que não é (demais pensamentos, mais notadamente os originados do hemisfério Sul).
Esta desvalorização do pensamento produzido pelos países do hemisfério Sul parte do sentimento de superioridade que os países do Norte nutrem pelos mesmos, já que foram os colonizadores destes países no advento das grandes navegações iniciadas no século XV.  Apesar de passados séculos da descoberta do Novo Mundo e da colonização dos países do Sul, a dominação imposta pelos países europeus aos mesmos ainda é visível, diferenciada do tradicional saque de especiarias, madeiras, pedras preciosas e produtos agrícolas, mas os mecanismos que põem os países do Norte como superiores ainda persistem (PORTO-GONÇALVES, 2006).
A separação e a desvalorização do conhecimento científico produzido por pesquisadores de países do Sul podem ser postas também como mais uma ruptura epistemológica imposta pela ciência no decorrer de seu processo de desenvolvimento, mais uma fronteira imposta pelo saber.
A ciência geográfica, também refletindo os novos paradigmas adotados pela ciência na pós-modernidade, teve suas pesquisas pautadas em modelos racionais e matemáticos, que elaborados a partir de métodos e conceitos definidos previamente, não se mostraram totalmente eficazes na explicação das relações dos indivíduos entre si e com o ambiente que os rodeia.
Esses modelos gerais e absolutos da Ciência quando colocados de frente com sua área humana e mais notadamente com o saber geográfico, acabam se mostrando um tanto quanto vazios já que muitos destes ramos do saber utilizam-se, quando da transmissão de seus conhecimentos para que haja uma melhor assimilação, das experiências vivenciadas cotidianamente pelos indivíduos que na maioria das vezes não são quantificáveis e nem se adéquam a nenhum modelo científico operacional.
A ciência geográfica, aliás, é um ótimo exemplo de como um ramo do saber se desenvolveu a partir dos saberes já tidos pelo homem. Como bem salientou Santos (2007), a Geografia não foi um campo do conhecimento criado por um sábio específico e nem a partir de pesquisas feitas por um grupo de cientistas, mas sim nasceu como uma atitude social, ou seja, partindo de conhecimentos prévios já tidos pelos homens e reforçados a partir de seu relacionamento com o meio. Assim, ainda de acordo com Santos (2007) a Geografia é “um tipo de conhecimento e, portanto, de um conjunto de respostas que a sociedade constrói para compreender alguns dos aspectos de sua relação consigo e com o mundo” (p.11).
Tendo a Geografia, então, este caráter de relacionar o conhecimento dos homens com sua vivência e suas práticas do dia-a-dia, para que assim tenham um melhor entendimento sobre esta ciência, sobre si mesmo e sobre o ambiente que os rodeia, o estudo de suas práticas cotidianas mostra-se de fundamental importância para o enriquecimento e consolidação do saber geográfico.
Com seus estudos pautados nestas características a Geografia deixou de abordar em suas pesquisas, práticas vivenciadas e realizadas cotidianamente pelos indivíduos e que demonstravam as relações estabelecidas pelos mesmos com os seus espaços de vivência e convivência (FERRAZ, 2004).
O cotidiano sendo aqui visto como um elemento que além de expressar, materializa temporal e espacialmente a realidade vivida e também experimentada e produzida pelos homens individualmente e em suas relações com a sociedade (FERRAZ, 2004), mostra-se dessa maneira estritamente relacionado à ciência geográfica, que se propõe, entre outras coisas, em estudar e analisar a relação da sociedade com o seu meio.
Além disso, as ações realizadas no dia-a-dia têm muito a ver com a ciência geográfica, já que o cotidiano se materializa no espaço e é nele que os homens se mostram como seres humanos em suas relações entre si e como os locais em que vivem e frequentam.
Dessa maneira o conhecimento científico, e nesse caso específico de relação da sociedade com o espaço, as ciências humanas e dentro destas a Geografia, não levou em consideração em suas pesquisas atividades que poderiam ser utilizadas para o levantamento de alguns aspectos imprescindíveis e que dizem respeito ao homem. Nas palavras de Ferraz (2004):

(...) os sonhos, emoções, vícios, sentimentos, gestos, gostos, desejos, loucuras, banalidades e detalhes do dia-a dia [...] foram negligenciados por não serem passíveis de catalogação, manuseio, classificação, controle, rigor e enquadramento em algum modelo científico. (p. 177).

Mostra-se a partir dos elementos levantados - desvalorização dos mitos elaborados pelos povos primitivos e dos conhecimentos produzidos no Hemisfério Sul, assim como o esquecimento das práticas cotidianas - que a Ciência Moderna, e a Geografia inserida dentro desta, foi impondo uma série de barreiras, fronteiras do conhecimento, perante estes conhecimentos e práticas que não atendiam a lógica uniformizante e totalizadora pré-estabelecida seguida pela sociedade científica.

3 – Considerações finais

Desde que o homem surgiu, as noções de limites e de fronteiras evoluíram consideravelmente sem, no entanto, nunca desaparecerem (RAFFESTIN, 1993, p. 165). É sabido que a noção tida sobre o que é fronteira, assim como o significado de outros conceitos analisados pela Geografia, existiu em diferentes momentos históricos, sendo sua significação diferenciada no decorrer destes diversos momentos variando no tempo e no espaço (OLIVEN, 2006).
A fronteira em sua formulação original compreende uma separação feita entre um grupo de indivíduos que se assenta em uma determinada porção espacial e que é considerado coeso no que diz respeito a suas memórias, seus valores, costumes. A delimitação “deste” grupo em relação ao “outro” ocorre então para diferenciá-la dos demais, os de fora que na maioria das vezes são vistos como impuros, por não apresentarem os mesmos valores que o grupo delimitado sendo, portanto, perigosos (OLIVEN, 2006).
São considerados então como elementos de separação entre grupos ora obstáculos naturais, como rios e penhascos, ora obstáculos físicos como muralhas. No entanto, as pessoas não ficam presas dentro dos limites de uma nação, elas ao se moverem, viajarem, levam consigo alguns elementos de sua cultura, fazendo com que muitas vezes haja um intercâmbio entre os seus costumes e os costumes de outros grupos.
Os conceitos de “desterritorização” e “reterritorialização” (HAESBAERT, 2009) podem ser utilizados para exemplificar este fenômeno. Diz-se então por isso que a “desterritorialização é um termo utilizado para designar fenômenos que se originam no espaço e que acabam migrando para outros” sendo que o mesmo só encontra seu sentido “se for associado ao de reterritorialização, pois as ideias e os costumes saem de um lugar mas entram noutro no qual se adaptam e se integram” (OLIVEN, 2006, p. 158).
Por instituir-se entre dois lugares, a zona fronteiriça passa a ser designada como sendo um “entre-lugar”, termo cunhado nos anos 70 representando um lugar situado entre duas áreas e que por isso possui suas especificidades, não podendo ser comparado a “este” nem “aquele” lado. Esta zona possui caraterísticas próprias, denominadas híbridas por associarem elementos de todos os seus lados circunvizinhos.
Por se situar entre dois ambientes, em um entre-lugar, a fronteira se apresenta como sendo um lugar diferenciado dos demais do seu entorno possuindo, portanto suas singularidades. Como nos diz Oliveira (2005) os espaços fronteiriços “são singulares em relação ao território-nação e singulares entre si – cada fronteira é uma fronteira” (p. 380).
Nos últimos anos a noção de fronteira tem se mostrado muito presente entre os estudos elaborados por autores das ciências humanas, sobretudo entre aqueles que questionam os rumos que os pressupostos científicos tomaram em seu processo de consolidação (MARTINS, 1997), em que como já dito, rupturas epistemológicas se deram caracterizando o que é ou não passível de ser visto como parte integrante do conhecimento científico.
  Pode-se dizer que um dos principais objetivos tomados para si pela ciência é o fato tentar levar e explicar ao homem os fenômenos que fazem parte de sua realidade, através da elaboração de conhecimentos que devem ser compreensíveis e acessíveis ao mesmo (HISSA, 2006). No entanto, tornando-se um elemento extremamente teórico e racional, a ciência acabou tornando-se quase que um elemento enigmático o que fez com que muitos indivíduos passassem a de certa forma estranhá-la.
É justamente esta estranheza, a visão do “eu” diferente do “outro”, que constitui uma das principais características do que é tido como um dos “pré-requisitos” para a imposição de fronteiras, entre espaços, entre elementos, entre pessoas (MARTINS, 1997; OLIVEIRA, 2005).
O conhecimento científico, então, ao subjugar alguns elementos e práticas valeu-se de mecanismos utilizados quando da instauração de fronteiras entre países, na concepção clássica do termo, ao reconhecer no “outro” – mitos, epistemologias do Sul e práticas cotidianas – características que as colocavam como sendo inferiores, devendo por isso serem apartados do “puramente científico”.
Além disso, o conhecimento elaborado pela ciência, seguindo os paradigmas que a modernidade ditou como sendo os corretos, “produz um discurso que se pretende rigoroso, anti-literário, sem imagens nem metáforas, analogias ou outras figuras de retórica [...] (SANTOS, 1989, p.34). Contudo, acabou tornando-se “um discurso desencantado, triste e sem imaginação, incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade (SANTOS, 1989, p.34).
Também, no contexto em que a ciência vem se desenvolvendo, em um mundo progressista e que cada vez mais experimenta novas descobertas científicas e tecnológicas, a mesma seguindo os paradigmas já citados, acaba se constituindo em verdade somente para um grupo restrito, o que a aproxima da definição dada de mito, em que determinado conhecimento produzido só possui validade e sentido dentro do grupo o produziu.
 Tornando-se por isso inacessível aos demais que não fazem parte da “sociedade científica”, coloca-se então que, “diante disso, distanciando-se da maioria dos homens, a ciência espontaneamente desvincula-se da ação sob a ótica de uma prática coletiva” (HISSA, 2006, p.53).
Para Milton Santos, durante seu percurso histórico, a Geografia - como reflexo das características adquiridas pelo conhecimento científico - perdeu a filosofia, a arte, a literatura, sucumbindo ao “método do poder científico” (apud HISSA, 2006, p.67). Todo este método, objetividade, racionalidade da ciência, fizeram com que ao longo do tempo algumas características singulares fossem adquiridas pela mesma, sendo repassadas aos seus diversos ramos, estando o saber geográfico aí incluso.
Com estas características, a ciência passou a instituir uma série de rupturas em relação a outros saberes que eram considerados como “não-científicos”, ou seja, que não se adequavam dentro dessas novas normas da ciência racional e objetiva, instituída como verdade absoluta. A primeira ruptura imposta foi a que diz respeito aos mitos, conhecimentos elaborados pelos povos primitivos que se utilizam essencialmente de sua sensibilidade para formulá-los.
Por possuírem principalmente esta característica da subjetividade, os mitos foram desvalorizados pela ciência que como já tido, tinha a racionalidade como um de seus pilares. Além disso, outra ruptura imposta pela ciência foi a que diz respeito a não abordagem das práticas cotidianas em seus estudos, também pelo fato de não atenderem aos novos “pré-requisitos” científicos. 
Voltando-se para discussões que ganharam bastante força nos últimos anos, principalmente com as obras de Boaventura Souza Santos (1989; 2009), tem-se a colocação de outra ruptura epistemológica imposta pela ciência: a separação entre o conhecimento produzido por pesquisadores do Norte e pesquisadores do Sul, sendo estes últimos julgados como inferiores.
Todas estas rupturas impostas pela ciência e aqui no nosso caso específico, pela ciência geográfica, podem ser visualizadas de certa forma como fronteiras impostas para diferenciar um dado elemento do outro, para distinguir o que é considerado estranho, ou no caso dos três elementos citados aqui – mito, práticas cotidianas, epistemologias do Sul – para mostrar que são inferiores e sendo inferiores, são considerados o “outro”, o estranho para o “eu”, devendo ser por isso diferenciado e apartado.
As características adquiridas pela ciência, no entanto, fizeram com que ela contrariasse o seu principal propósito e se aproximasse daquilo que tanto criticou e considerou como não sendo ciência.
Pode-se dizer que um dos principais objetivos tomados para si pela ciência é o fato tentar aproximar o homem de sua realidade, através de conhecimentos que devem ser compreensíveis e acessíveis ao mesmo (HISSA, 2006). No entanto, tornando-se um elemento extremamente teórico e racional, a ciência acabou tornando-se quase que incompreensível o que fez com que muitos indivíduos passassem a de certa forma estranhá-la.
É justamente esta estranheza, a visão do “eu” diferente do “outro”, que constitui uma das principais características do que é tido como um dos “pré-requisitos” para a colocação de fronteiras, entre espaços, entre elementos, entre pessoas (MARTINS, 1997; OLIVEIRA, 2005).
Também, no contexto em que a ciência vem se desenvolvendo, em um mundo progressista e que cada vez mais experimenta novas descobertas científicas e tecnológicas, a ciência seguindo os paradigmas já citados, acaba se constituindo em verdade somente para um grupo restrito, o que a aproxima da definição dada de mito, sendo por isso inacessível aos demais que não fazem parte da “sociedade científica”. Coloca-se então que “diante disso, distanciando-se da maioria dos homens, a ciência espontaneamente desvincula-se da ação sob a ótica de uma prática coletiva” (HISSA, 2006, p.53).
Com isso tem-se então que o conhecimento produzido pela ciência ao se afastar da grande maioria dos indivíduos, que a veem como algo estranho, que não faz parte de suas vidas, de seu cotidiano, não possui nenhuma serventia para explicar as práticas que são vivenciadas, acaba se tornando um mito, mito da razão.
Este mito no qual a ciência vem se transformando representa de certa forma um dos elementos negados pela mesma ao longo de seu processo de consolidação. A Ciência pode ser considerada um mito, já que, como já dito, assim como os mitos elaborados pelas chamadas “sociedades primitivas” só se apresenta como sendo verdade e tendo validade dentro do grupo de cientistas que a produziu. Só que ao contrário dos mitos criados pelos povos primitivos, os mitos das “sociedades científicas” são mitos racionais, baseados nas vivências teóricas e metodológicas de cada pesquisador.
Além disso, ao se constituir em um conhecimento extremamente racional e baseado em definições e conceitos elaborados a priori, deixa de lado na maioria de seus estudos, elementos vivenciados cotidianamente pelos indivíduos que poderiam se mostrar imprescindíveis para a compreensão de fenômenos tanto da ciência quanto do homem em sua relação com o meio. 
Ao adquirir então as características derivadas do conhecimento científico moderno, A Geografia perdeu entre outras coisas a sua dinamicidade, produzindo suas pesquisas partindo de modelos prévios que praticamente não podem ser associados com a realidade vivenciada pela maioria dos indivíduos, destacando-se assim o caráter da estranheza criada entre o homem no que diz respeito aos princípios científicos modernos.
 Por isso diz-se que a Ciência, e no caso específico deste trabalho a ciência geográfica, elemento que se propôs/propõe levar o conhecimento aos homens, acabou por uma série de fatores, tornando-se um objeto que limitou o conhecimento a espaços e grupos específicos, havendo no decorrer dos anos a consolidação de um mito, um mito elaborado em bases racionais e que se constitui em verdade apenas a sociedade que lhe criou, podendo ser designado de “mito racional”, tendo sido este formulado pela sociedade científica moderna, sendo, portanto, compreensível e adequado somente à mesma.

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1 Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – CAPES e integrante do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas, coordenado pelo Profº Drº Cláudio Benito Oliveira Ferraz.

2 Neste trabalho o termo Ciência, seja grafado com a letra C maiúscula ou c minúscula, estará fazendo referência a todos os ramos do saber científico, que em maior ou menor medida foram afetados pelas novas características adquiridas pelo mesmo ao longo do tempo. 

3 É interessante destacar a noção tida pelo senso comum e de certa forma também adotada pela ciência, do que é ser “moderno” e ser “selvagem”.  Pensa-se sempre no moderno como algo novo e por isso melhor, a superação do antigo tido quase sempre como inferior, ultrapassado, sem maiores serventias. A passagem – superação – do primitivo (ruim) pelo o considerado moderno (melhor) é sempre esperada. No entanto, não há nenhuma garantia que algo que é considerado primitivo será um dia superado pelo novo.  Pode-se citar uma dada sociedade, por exemplo, que sendo considerada primitiva, pode conviver durante anos com uma sociedade “moderna”. Não há uma sucessão cronológica padrão ou ideal, que leve uma sociedade considerada “primitiva” a se tornar uma sociedade “moderna”. Uma sociedade pode continuar coexistindo com uma outra sociedade tida como superior, moderna, mantendo os seus costumes e modos de vida primitivos. Diz-se então que os conceitos de “moderno” e “primitivo” tem a função de apenas referenciar os acontecimentos que se dão na história (HISSA, 2006).