FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

Karoline Batista Gonçalves(CV)
Roberto Mauro Da Silva Fernandes
(CV)
Organizadores
Universidade Federal da Grande Dourados

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ENTRE AS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO: ENSAIO SOBRE O PENSAMENTO E A NATUREZA A PARTIR DE DELEUZE, GUATARRI E NIETZSCHE

 

Bianchi Agostini Gobbo
Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD
Membro do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas - GPLG
bgobbo.geografia@hotmail.com

 

Resumo
De forma geral, observa-se que os professores de Geografia tentam ensinar a partir da comunicação de determinadas noções geográficas (lugar, região, natureza, território, etc.) sem que se tenha segurança e domínio quanto aos seus significados. Dessa forma, a aprendizagem dos alunos tem ocorrido a partir da apropriação de alguns conceitos previamente estabelecidos pelos materiais didáticos de Geografia. A comunicação, neste caso, ocorre via sentido único: dos materiais didáticos para professores, e destes para alunos. É o ensino da re-cognição, aprendizado como cópia, sobretudo, via linguagem verbal, ou seja, através do uso de palavras. No entanto, as dimensões da comunicação se ampliam quando consideramos as comunicações não-verbais (sons, imagens, gestos). Logo, neste artigo, desenvolvemos uma reflexão sobre as fronteiras do pensamento, no sentido de contribuir com a ampliação da percepção sobre a riqueza que é o pensar, e ajudar os professores de Geografia e de outras disciplinas a irem além do livro didático como fonte de dados e de conceitos.

Palavras-chaves: fronteiras do pensamento, ensino de Geografia, pensamento e natureza.

Abstract
Generally, it is observed that teachers try to teach Geography from the communication of certain geographic concepts (place, region, nature, territory, etc.), without having security domain and about their meanings. Thus, student learning has occurred from the appropriation of some concepts established by Geography textbooks. Communication in this case occurs via one way: the teaching materials for teachers, and for these students. It is the teaching of re-cognition, learning how to print, especially via verbal, or through the use of words. However, the dimensions of communication are magnified when we consider the non-verbal communications (sounds, images, gestures). Therefore, in this article, we develop a reflection on the boundaries of thought to contribute to the expansion of awareness about the richness that is the thinking, and help teachers of Geography and other subjects to go beyond the textbook as a source of data and concepts.

Keywords: frontiers of thinking, teaching geography, nature and thought.

 

1 – Introdução

Comunicação implica em ligação, em transferência, em relação, em ação. O mundo globalizado é caracterizado pelo avanço das técnicas de comunicação, assim como pela rapidez e volume das comunicações. A cada momento surgem novos objetos que ampliam as possibilidades de comunicação entre as pessoas. Celulares, computadores, televisões, rádios, roupas, pinturas, carros, gestos, sinais, signos, etc. Segundo Ferrara:
A fala e a escrita não são nossos únicos sistemas de comunicação. Telefone, telégrafo, rádio, televisão, imprensa são outros meios de comunicação que marcam a vida moderna e as sociedades industrializadas pelo aparato tecnológico que as caracterizam. Não se trata apenas de comunicação de pessoa a pessoa, mas, graças àqueles meios, as cidades, os estados, os países, os hemisférios se comunicam e transformam o universo em uma “aldeia”, na medida em que ampliam a escala das comunicações humanas (FERRARA, 2007, p. 5).

Esses meios de comunicação são utilizados a partir de sistemas de signos, onde a palavra tem grande importância, sendo largamente utilizada. As palavras são portadoras de significados e conceitos que são passíveis de serem apreendidos durante os atos de comunicação quando seus sentidos são convencionados entre os comunicantes. Segundo Guiraud (1972, p. 22), “a comunicação implica em um locutor (ou sujeito falante), um ouvinte, uma coisa que o locutor quer comunicar ao ouvinte, e signos lingüísticos por meio dos quais ele a comunica”. Fazendo referência a Nietzsche, Abel assim nos escreve quanto ao papel da comunicação nas relações humanas:

Chega-se à constituição da consciência no sentido de tornar-se-consciente e do pensar consciente, segundo Nietzsche, sobretudo porque se tem construído para o homem individual, na relação com outros homens, uma “necessidade”, uma “permanência”, de se comunicar, de chegar rápida e sutilmente a um entendimento recíproco. Trata-se de “necessidade de comunicação”, que, por sua vez, pressupõe uma “capacidade de comunicação”. A “sutileza e força da consciência” de um homem está na relação com essa capacidade de comunicar-se. Não se trata nisso tanto que o homem individual é conduzido, com suas necessidades, a outros homens. Trata-se, ao contrário, da “força e arte da comunicação”. Nesse sentido, conforme a tese de Nietzsche, a consciência “desenvolveu-se em toda parte somente sob pressão da necessidade de comunicação” (ABEL, 2005, 233-4).

Tendo assimilado esse papel da comunicação nas relações humanas quanto às funções da consciência a partir das relações do homem com o meio, podemos vislumbrar a importância da dimensão comunicacional no ensino de geografia.
Nas escolas a aprendizagem acontece, necessariamente, a partir de comunicações. Comunicam-se professores com alunos, alunos com alunos, professores com professores, diretores com alunos, cozinheiras com alunos, alunos com amigos através de celulares; etc.
O conhecimento geográfico se constrói nas escolas a partir de seus próprios espaços: o espaço das salas de aula, dos corredores, dos banheiros, dos saguões, das escadas, das quadras esportivas, etc.; nos contatos entre as pessoas que formam o meio escolar. Cabem aos docentes da disciplina de Geografia coordenar uma série de atividades no sentido de permitir o desenvolvimento de competências e habilidades de leituras e raciocínios espaciais nos alunos.
Para isso, os professores utilizam um conjunto de noções, dados e conceitos geográficos, que advém, sobretudo, das produções científicas da Geografia a partir de academias e universidades. Esses conhecimentos são transmitidos e trabalhados por meio das linguagens geográficas.
As noções a que nos referimos são consideradas por muitos geógrafos conceitos e categorias de análise. O que se vê, de forma geral, são professores tentarem ensinar Geografia a partir da comunicação de certas noções geográficas como, por exemplo, lugar, região, natureza, território, sem que se tenha, os próprios professores, segurança e domínio quanto ao conjunto de significados que essas noções encerram. Assim, a aprendizagem dos alunos tem ocorrido a partir da apropriação dos significados de algumas palavras, significados previamente estabelecidos, geralmente, pelos materiais didáticos de Geografia. A comunicação, neste caso, ocorre via sentido único: dos professores para alunos, isto é, dos materiais didáticos para professores, e destes para alunos. É o ensino da re-cognição. Aprendizado como cópia.
Os modos de comunicação, ou seja, como elas acontecem, caracterizam a cultura de uma sociedade. Em nossa sociedade, as comunicações se dão, hegemonicamente via linguagem verbal, ou seja, através do uso de palavras. No entanto, as dimensões da comunicação se ampliam quando consideramos as comunicações não-verbais, por exemplo, sons, imagens, gestos. Segundo Ferrara (2007, p. 15), o que define um texto não-verbal é o fato de ele possuir “uma linguagem sem código”, ou seja, não possuir um signo convencionado.
A aprendizagem nas escolas ocorre muito em função das comunicações não-verbais e de agenciamentos1 . O aprendizado é um processo contínuo no vivido, onde a comunicação não-verbal requer dos alunos e dos professores a capacidade de comunicação em desenvolvimento, agenciando a criação de novos sentidos. A associação entre uma imagem, um som, uma letra, uma cor, um gesto com um significado ou um sentido precisa ser produzido. A comunicação é um meio pelo qual o ensino se realiza. Ela deve ser facilitada e exercitada em formas diversas para permitir a criação de conhecimentos geográficos que se atrelem ao existir humano, a existência do homem enquanto ser-devir-no-mundo.
Por isso, neste artigo, procuramos desenvolver uma reflexão sobre as fronteiras do pensamento, de modo a contribuir para com os professores de qualquer disciplina e em especial de Geografia quanto à ampliação da percepção sobre a riqueza que é o pensar expressas nos modos de pensamento que produzem o real, logo, que agenciam a aprendizagem.

2 –  Fronteiras entre Filosofia e Ciência

Segundo Deleuze e Guatarri (1992), a Filosofia é produtora de conceitos que se remetem a um plano de imanência, enquanto que as Ciências produzem funções científicas se remetem a um plano de referência onde se atualizam o estado de coisas.
O plano de imanência é uma espécie de recorte não geométrico, no qual os conceitos filosóficos formam uma espécie de campo de transcendência imanente ao vivido. Segundo Vasconcellos (1998, p. 119), é “a pré-condição de existência de todo conceito filosófico, ele é o solo onde os conceitos devem vir à luz. O plano de imanência é a terra do conceito”.
O plano de referência é análogo ao plano de imanência, porém não funciona como pré-condição para a criação de conceitos, mas sim para a criação de funções por meio do estabelecimento de coordenadas que ao desacelerar o real, melhor dizendo, o virtual, atualiza o estado de coisas através de proposições lógicas ou proposições de fato.
O conceito ocorre no seio da imanência do vivido e se forja nos atos de transcendência do sujeito que cria sentidos no mundo. O conceito filosófico é uma totalidade fragmentária 2, é ato de transcendência do sujeito em relação com as variações do vivido.
Os conceitos são errantes, transmutáveis. “O conceito é uma forma ou uma força, jamais uma função em qualquer sentido possível. Em resumo, não há conceito senão filosófico sobre o plano de imanência, e as funções científicas ou as proposições lógicas não são conceitos” (DELEUZE & GUATTARRI, 1992, p. 171).
Já as proposições científicas, muitas vezes confundidas como conceitos, funcionam como descrições lógicas, remetendo-nos a mundos possíveis, pois são proposicionais, e “tornando-se proposicional, o conceito perde todos os caráteres que possuía como conceito filosófico, sua autorreferência, sua endoconsistência e sua exoconsistência” (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p. 164).
Neste sentido, a ciência cria funções que denotam estados de coisas, sendo que estas funções já não podem ser consideradas conceitos. Deleuze e Guatarri nos esclarecem:

A confusão do conceito com a função é ruinosa sob vários aspectos para o conceito filosófico. Ela faz da ciência o conceito por excelência, que se exprime na proposição científica (o primeiro prospecto). Ela substitui um conceito filosófico por um conceito lógico, que se exprime nas proposições de fato (segundo prospecto). Ela deixa ao conceito filosófico uma parte reduzida ou degenerada, que ela se reserva no domínio da opinião (terceiro prospecto), servindo-se de sua amizade por uma sabedoria superior ou uma ciência rigorosa. Mas o conceito não tem seu lugar em nenhum destes três sistemas discursivos. O conceito não é uma função do vivido, nem uma função científica ou lógica. A irredutibilidade dos conceitos às funções só se descobre se, ao invés de confrontá-las de maneira indeterminada, se compara o que constitui a referência de umas e o que faz a consistência de outras. Os estados de coisas, os objetos ou corpos, os estados vividos formam as referências de função, ao passo que os acontecimentos são a consistência de conceito. São esses termos que é preciso considerar do ponto de vista de uma redução possível. (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p. 179).

Percebemos uma importante característica sobre Ciência e Filosofia: é que elas são produzidas de forma diversa, ou seja, ocorrem de maneira muito diferente. Isto serve tanto como uma crítica à lógica quanto uma crítica a se tomar a Filosofia como mera opinião de um sujeito. Isto porque se considerarmos que todo conhecimento se encontra no sujeito, então tudo o que se produz são opiniões diversas; se considerarmos que a realidade está dada, basta apenas que a conheçamos tal qual ela é; então caímos no paradoxo metafísico, no qual ao homem se atribui a capacidade da pura representação do real por proposições logicizadas, tendo como conseqüência ter de aceitar que o mundo possui uma lógica predeterminada. Por isso, os conceitos não formam sistemas a partir de concatenações entre variáveis, pois seus elementos com suas bordas não se encaixam. Eles possuem seus sentidos completos em relação ao seu plano de imanência.
Cada forma de pensamento influi sobre a outra. Filosofia e Ciência agenciando novos elementos que as potencializam para desenvolverem novos conhecimentos, novos olhares e a criarem novos sentidos.
A Filosofia impulsiona o desenvolvimento das Ciências sendo uma estrutura outrem, muitas vezes questionando as pretensas verdades científicas; ela é outro saber que pode condicionar a produção do conhecimento científico, servindo como uma diferente coordenada a compor o plano de referência da Ciência, possibilitando um repensar científico. Granger assinala que:

A primeira marca desta diferença profunda seria justamente o fato de que o conhecimento científico exige e suscita um metaconhecimento que o examina, descreve, critica ou fundamenta, mas que não poderia, sem impostura, pretender-se inteiramente científico; é, ao mesmo tempo, lógica e filosofia da ciência. (GRANGER, 1989, p. 10).

Granger usa o termo metaconhecimento, talvez no sentido de qualificar a filosofia como um metaconhecimento. Um conhecimento além do científico. Isso não quer dizer que a função da Filosofia seja tornar-se Filosofia das Ciências, ou seja, ter nestas suas referências. A Filosofia pode servir de referência para a Ciência e a esta, enquanto acontecimento, por ser uma variação do vivido, pode agenciar os atos de transcendência filosóficos, porém estes atos de transcendência nunca se remetem ao real, ou seja, os conceitos filosóficos não são representações da realidade.
Deleuze e Guatarri argumentam a favor de se pensar Filosofia a partir de um pensamento aberto, que fuja à lógica. O sentido de se colocar contrariamente a lógica não provem da consideração de que o pensamento deve ser ilógico, o que seria um absurdo, mas que o pensamento não deve se prender a uma determinada lógica enquanto a forma correta de se pensar. Eles a pensam em oposição à lógica:

A lógica é sempre vencida por si mesma, isto é, pela insignificância dos casos de que se alimenta. Em seu desejo de suplantar a filosofia, a lógica desliga a proposição de todas suas dimensões psicológicas, mas não deixa de conservar o conjunto dos postulados que limitava e submetia o pensamento às coerções de uma recognição do verdadeiro na proposição. (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p. 166).

Com isso eles chamaram nossa atenção para um aspecto do conhecimento filosófico, que é seu aspecto lógico. O conhecimento científico também é dotado de uma dimensão lógica. A crítica feita por Deleuze e Guatarri encontra sentido quando se entende a lógica por uma espécie de expressão formal, que ocorre em função de regras estabelecidas num jogo de “variáveis”, como, por exemplo, os silogismos e que visa determinar o verdadeiro como um postulado não contraditório, impondo assim uma regra de como se deve pensar.
Quando a lógica tenta suplantar a liberdade do pensamento filosófico acaba por operar um empobrecimento do pensamento. A liberdade de pensar é um dos fundamentos do pensamento que aborda o mundo pela sua diferença. A lógica impõe um reconhecimento do mundo, ou seja, induz o sujeito a reconhecer no mundo aquilo que já está predeterminado pela lógica. Excluem-se neste processo todas as diferenças do mundo e privilegiam-se as semelhanças entre os fenômenos.
Pelo lado da Ciência, considera-se necessário produzir conhecimentos com base em teorias e metodologias que sejam consistentes. Essa consistência funcionaria como a garantia de se obter um resultado, uma verdade. Muitos consideram que o problema da Geografia, por exemplo, tem sido a falta de consistência teórico-metodológica dos trabalhos científicos (PROST, 2009; RODRIGUES, 2009).
A liberdade de se construir ou criar um conhecimento filosófico interessante através da não subordinação deste à lógica pode sinalizar para a Ciência que ela deve rever constantemente as suas lógicas e mesmo, indicar a necessidade dela ser produzida sempre considerando o lógico e o ilógico. O ilógico, neste caso, significa outras lógicas. O que importa então é a tensão entre as formas de pensamento, pois a tensão imprime mudanças.
No entanto, é preciso dizer que não é viável desejar fugir da lógica a todo custo. O pensamento organizado necessariamente é lógico. É impossível produzir Filosofia e Ciência sem lógica, no entanto ambas não se limitam a uma expressão lógica. O que se deve fazer nesse caso, a maneira de Nietzsche, é não absolutizar o termo da razão. Não partir da lógica, mas sim construir uma lógica. O importante seria:

Ao invés de um encadeamento de proposições, valeria mais a pena revelar o fluxo do monólogo interior, ou as estranhas bifurcações da conversão mais ordinária, desligando-as, também elas, de suas aderências psicológicas e sociológicas, para poder mostrar como o pensamento, como tal, produz algo interessante, quando acede ao movimento infinito que o libera do verdadeiro como paradigma suposto e reconquista um poder imanente de criação. (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p. 166).

Uma nuança entre Filosofia e Ciência é a liberdade relativa com que a primeira pode produzir-se. A liberdade em filosofia advém de que ela cria lances infinitos sobre as variações do vivido, sendo que os conceitos são pensamentos puros, no sentido de que não são referenciáveis no real, não se remetem à realidade das coisas, dos objetos, das relações, mas dá sentido ao mundo, forja sentidos. O que importa na Filosofia não é tornar-se passível de classificação enquanto verdade ou falsidade.
Ao contrário disso, o paradigma da modernidade impôs à Ciência a condição de ser expressão máxima da realidade. Tão comum se ouvir em notícias televisivas que foram feitas descobertas científicas ou que algo está provado cientificamente.
O valor do conhecimento científico tem se dado a partir de sua capacidade de representação da realidade, mas, sobretudo, de sua potência enquanto um saber prático ou enquanto fundamento da construção de tecnologias.
O que importa para Deleuze e Guattarri é justamente a liberdade de pensamento, o pensamento aberto, “nômade”, criativo, sem o qual não se produz conhecimentos interessantes.

3 – A Arte como forma de pensamento

Para que a Geografia possa ampliar seus horizontes de forma a sentir e compreender mais de perto o mundo é necessário que ela busque sua ampliação nas formas que se identificam ao vivido, com a existência humana em seus espaços de vida, em seu cotidiano. A Arte, sobretudo a arte nômade, pode potencializar novos sentidos no campo da Geografia.
As obras de arte são produzidas a partir de planos de composições que se identificam com a existência, e que podem, por meio de seus afectos e perceptos, ajudar a Ciência a produzir conhecimentos.
Um plano de composição é análogo ao plano de imanência para a Filosofia e ao plano de referência para a Ciência. O plano de composição é uma espécie de recorte por onde surgirão as figuras estéticas da Arte, ou seja, é uma dimensão do qual surgem criações artísticas, como se fosse um conjunto de matérias-primas e idéias que fundamentam e servem de base para a obra de arte.
Os afectos e perceptos são as idéias, sensações, emoções e mudanças produzidas pelas artes na relação com o sujeito. Elas são capazes de suscitar variadas interpretações, institui uma desterritorialização dos referenciais dos sujeitos e instituem a diferença na medida em que suscitam a projeção de novas formas de pensamento e de ação, bem como de sensações e emoções. Mas, como na Filosofia, ela nunca se remete ao real, ao verdadeiro, mas sim as variedades do vivido. Sendo assim, as Artes são potências que nos impulsionam para a mudança.
Não há nenhum problema em se tomar, em caráter experimental, outras linguagens, outras formas do conhecimento diferentes dos da Ciência, para se produzir um diálogo entre ambas. Dessa forma, buscamos não a racionalização científica dos outros saberes, mas sim compreender quais são os limites que encontramos em cada uma delas e como podemos articulá-los.
Nietzsche tinha grande apreço por Arte e produziu muitos comentários a seu respeito. Nietzsche compreende-a “como contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista”. Concordamos com ele com relação à capacidade de a dela nos proporcionar prazer, estimular a vida, redimir sofrimentos. “A arte... é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida (NIETZSCHE, 1978, p. 28).
Devemos levar em consideração que a Ciência tem trabalhado com generalidades, preocupando-se antes com a similaridade do que com a diferencialidade existentes nos fenômenos. Pensamos que a Arte é, ao contrário da Ciência, preocupada com a diferença, ou ela é totalmente despreocupada. Neste sentido, a Arte não visa uma representação. Ela não visa ser uma cópia exata de um objeto real. Este é sentido de arte nômade.
O diálogo entre os saberes é necessário na medida em que suscita o outro, o novo, o diferente. Por exemplo, a pintura, por atuar mais ao nível das sensações, se aproxima mais de como percebemos o mundo em sua diversidade, daí ser ela potencializadora dessa capacidade de conhecermos o mundo a partir da totalidade de nosso corpo, não apenas com a metafísica da razão tão preconizada pela Ciência.
Segundo Schöpke (2004, p. 172), “todo pensador ou artista nômade é necessariamente um criador. Os que nada fizerem além de reproduzir e retratar as coisas são artistas sedentários”. Schöpke aborda a concepção deleuziana sobre nomadismo e arte, ressaltando a diferença entre criar e reproduzir. Desse modo, consideramos a Arte como criação, como plano de composição:

Trata-se, como já dissemos, da exaltação da arte como potência criadora máxima. Tal como o pensamento, a arte deve estar livre da recognição e da representação para efetuar-se como autêntica atividade de uma alma nômade. A arte representativa, a despeito de sua beleza e de sua magnitude, paga tributos à identidade e à similitude perfeitas, jamais rompendo com um determinado estado de coisas. Neste sentido, a arte corre o perigo de se tornar um simples adorno ou uma mera peça decorativa. Uma arte nômade, ao contrário, causa uma espécie de mal estar e uma desagradável sensação de ignorância àqueles que tentam decifrá-la segundo os códigos do mundo sedentário. É desta arte que Deleuze trata preferencialmente, quer ele esteja falando de literatura, pintura ou cinema. (SCHÖPKE, 2004, p. 179).

Arte é considerada por nós como uma forma de pensamento. Sua produção se dá diversamente da produção da Filosofia e da Ciência, que são outras formas de pensamento. Essas formas de não se remetem a totalidade do real. Elas produzem cortes, traçam planos, estratificações do vivido. São ao mesmo tempo limitadas e infinitas.
A linguagem musical, por exemplo, nos oferece inúmeras possibilidades. Serve como ferramenta para se pensar a cultura de um grupo ou povo, a produção mercadológica musical em determinado contexto, a cidade, o campo, movimentos sociais, o espírito humano, etc. São meios de produção de sensações, perceptos e afectos, já que a música tem o poder de induzir e agenciar os mais diversos sentimentos nas pessoas, tais como a tristeza, a calma, a saudade, o ódio, etc. Serve também como ferramenta didática para o profissional das diversas áreas da educação básica e superior. Não são raros os casos em que professores de Geografia utilizam-se de músicas em sala de aula, de modo a ela ajudar os alunos a entender determinadas questões discutidas por esta disciplina. Porém, muitas vezes a apresentação de uma obra artística não é feita de modo propício, com condições ambientais e técnicas, a potencializar sensações outras, resumindo-se na mera constatação de uma palavra, um objeto, uma forma ou um timbre.
Visando o desenvolvimento de habilidades como observação, raciocínio, percepção, Fernandes (2010, p. 122) realizou experiências com seus alunos do ensino básico utilizando-se da música 4’33” de John Cage. Através do contato com esta música, marcada pelo sons que vão surgindo a partir do silêncio, Fernandes aponta que os alunos puderam perceber que é possível construir um entendimento sobre o conceito geográfico de paisagem, valorizando e trabalhando as habilidades de observação e percepção dos sons e silêncios, através da paisagem sonora da sala de aula, ou mesmo de outros lugares. Ou seja, eles puderam aprender que podemos conhecer melhor os lugares a partir dos sons característicos dos lugares não apenas através das imagens dos lugares.

Ao nosso ver, esse é o trabalho do professor, a eterna busca por novas estratégias de ensino/aprendizagem que possibilitem a melhor forma de se estabelecer a comunicação com os alunos, contribuindo para o desenvolvimento da sua capacidade de refletir e agir, combinando o pensar e o sentir. O resultado disso se reverbera na capacidade dos mesmos melhor observar o contexto dos ambientes em que se encontram, não restringindo à reprodução de conceitos e ideias inerentes à sala de aula (FERNANDES, 2010, p.131).

Para que a ciência geográfica e seu ensino possam ter real valor e sentido, de modo a nos ajudar a melhor nos localizarmos e agirmos no mundo, é preciso o diálogo entre as múltiplas formas de conhecimento, ou seja, entre múltiplas linguagens.

4 – O pensamento de Nietzsche: contra a metafísica da linguagem, o sentido!

Nietzsche tomou parte “no discurso da modernidade” (HABERMAS, 2000, p. 124), alterando a argumentação dos filósofos antecessores de forma radical. Isso significa que ele foi até a raiz do problema por ele considerado. Um grande problema é a fundamentação metafísica do mundo. A vontade de potência negativa. Essa fundamentação implica num conceito de razão no qual Nietzsche discorda. Para ele “a vida não é argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro” (NIETZSCHE, 1978, p. 202).
Os fundamentos dessa razão tão criticada por Nietzsche retiram da vida toda a sua efetividade como devir; dizer que a vida não é argumento é uma forma de criticar toda dialética. A dialética cria uma imagem de natureza como sendo semelhante a um jogo de teses e antíteses que se negam gerando uma síntese. A realização da natureza enquanto negação da negação.
Ademais, essa razão se demonstrou como uma grande vontade de verdade, travestindo-se de um saber cuja marca é a neutralidade da sua efetivação lógica. A vontade de verdade é sintoma de vontade de dominação. Segundo Deleuze (1976, p. 36) “a filosofia ativa de Nietzsche só tem um princípio: um termo só quer dizer alguma coisa na medida em que aquele que o diz quer alguma coisa ao dizê-lo”.
O “caráter geral do mundo é, por toda a eternidade, o caos, não no sentido de falta de necessidade, mas da falta de ordem, articulação, forma, beleza, sabedoria” (NIETZSCHE, 1978, p. 199). A existência não tem significado, nem sentido predeterminado. Se desejarmos imputar sentido ao mundo devemos então criar esse sentido.
Para Nietzsche, o homem e, sobretudo, o seu super-homem são criadores de sentidos. O super-homem ou o além-do-homem nietzscheano é aquele que supera a moral estabelecida, afirma a vida, não segue ninguém a não ser a si próprio e também não deseja que ninguém o siga; é aquele que assume a sua condição de criador da vida.
Encontramos os sentidos das coisas, de qualquer natureza, a partir de quando conhecemos as forças que delas se apropriaram e exploraram. Então um sentido é uma relação entre forças num campo. Segundo Deleuze (1976, p. 5), “a dualidade metafísica da aparência e da essência e, também, a relação científica do efeito e da causa são substituídas por Nietzsche pela correlação entre fenômeno e sentido. Toda força é apropriação, dominação, exploração de uma quantidade de realidade. Esta noção de sentido, portanto, está atrelada a uma noção de relação entre forças de uma quantidade de realidade.
O sentido não se expressa numa relação de necessidade, sistematicamente. Isso equivale a dizer que uma coisa não contém uma essência. Sua essência é plural, pois ela tem vários sentidos e que sempre mudam a cada instante. “A filosofia de Nietzsche só é compreendida quando levamos em conta seu pluralismo essencial” (DELEUZE, 1976, p. 5). O pluralismo é considerado aqui como a forma de pensar filosófica na medida em que estabelece diferenças. Então, equivale a dizer que Nietzsche tem uma posição antiessencialista.
Buscar compreender o sentido das coisas seria a mais alta tarefa da filosofia, a filosofia como uma arte de interpretar. Este é o sentido deleuzeano de filosofia em Nietzsche e a filosofia. Postura que mudou em certo sentido em suas últimas obras conjuntas com Guattarri, onde o sentido de filosofia passou a ser o de produtora de conceitos, como já vimos anteriormente, noção esta que vai além da interpretação.
A noção de sentido em Nietzsche se desenvolveu através dos trabalhos que ele foi realizando sobre o mundo grego, sobre a antiguidade, sobre a cultura contemporânea, na medida em que ele foi se deparando com as grandes diferenças entre os valores de sua época e os valores de sociedades antigas. Percebia que os valores eram contingentes e que mudavam. Os sentidos de uma mesma palavra mudavam conforme o momento, ou seja, conforme a tensão entre forças de diferentes potências e, portanto, conforme a relação entre diferentes tipos de forças. Um mesmo fenômeno com sentidos opostos pode ser exemplificado através da idéias de Nietzsche sobre Dionísio e Cristo. Segundo Deleuze:

Em Dionísio e em Cristo o martírio é o mesmo, a paixão é a mesma. É o mesmo fenômeno, mas são dois sentidos opostos. Por um lado, a vida que justifica o sofrimento, que afirma o sofrimento; por outro, o sofrimento que acusa a vida, que testemunha contra ela, que faz da vida alguma coisa que deve ser justificada (DELEUZE, 1976, p. 10).

Duas formas de enxergar a vida. Duas formas opostas que coexistem. Apesar dos sentidos serem opostos, pois o sentido de dionísio é o de afirmação da vida e o sentido de cristo, ou Apolo, é o de negação da vida, eles não são antíteses um do outro. O sentido é uma noção antidialética, pois que é afirmação diferencial.
A simplificação do mundo tomada a partir da racionalidade metafísica transforma a riqueza em pobreza, o efetivo em ideal, o diferente em igual. Para afirmar a vida em toda sua riqueza, Nietzsche posicionou-se contra toda metafísica, elencando a arte como a grande criação do homem; “já em O nascimento da tragédia encontra-se, atrás da arte, a vida” (HABERMAS, 2000, p. 137).
A vida somente pode ser justificada enquanto fenômeno estético. Nietzsche valorizou o poder do mito e da arte como expressões dos tempos, no sentido do poder que mito e arte possuem de transmutar os valores, ou seja, de afirmar novos sentidos para a vida humana. Em contrapartida, criticou as formas que se pretendem puras, que são tomadas como absolutamente verdadeiros por basearem-se na precisão lógica interna da linguagem. Neste sentido, a verdade científica pode ser uma falsidade, enquanto que uma mentira, um mito, pode remeter-se ao efetivo.
As Filosofias que trabalham no horizonte dos universais identificam-se em alto grau com as Ciências, pois não formam conceitos, mas formam proposições lógicas. Os universais, desse modo, são proposições lógicas, que objetivam ser fidedignas expressões das realidades essenciais inferidas a partir do contato do homem com as coisas.
No universo da linguagem como meio universal, a razão é uma espécie de capacidade que dispomos para conhecermos o mundo em sua essência; para conhecermos o mundo objetivamente. A razão também é a medida das coisas; expressando-se enquanto verdade matematicamente e logicamente. Nietzsche é um crítico da idéia de uma racionalidade pura que se manifesta verdadeiramente nos universais. “Os limites da linguagem, segundo Nietzsche, estão principalmente no caráter de universalidade de suas palavras e de todas as suas sentenças possíveis” (ABEL, 2005, p. 250).
Para Nietzsche, consciência e linguagem são indissociáveis. Não se atribui para a filosofia de Nietzsche a categorização de linguagem como meio universal. A semântica, para Nietzsche, é acessível. A razão não é apenas a forma através do qual pensamos o mundo, ela é também a forma pelo qual sentimos o mundo.
O pensar consciente implica um fundamento lingüístico-gramatical; “Nietzsche mencionou isso numa formulação concisa, a saber, que ‘o pensar racional’ é um ‘interpretar segundo um esquema, que nós não podemos dispensar’” (ABEL, 2005, p. 232).
Outro ponto a destacar, é o caráter público da linguagem e do uso dos signos: as linguagens estão intimamente relacionadas ao existir humano, que é um existir-com-os-outros. A linguagem para além da forma como pensamos o mundo, é um instrumento de sobrevivência, de realização, pois é o meio pelo qual nos comunicamos e nos agenciamos. Por isso, a consciência não se restringe a um eu, mas a um nós.
A linguagem pode induzir o homem a erros de compreensão, na medida em que a crença comum na palavra, pelo homem, condiciona o olhar sobre o fenômeno. A linguagem natural é prática; não é contra ela que Nietzsche escreve. Ele escreve contra a absolutização do valor da linguagem discursiva; contra a dotação de valor de verdade para sistemas interpretativos. Segundo Abel:

Esse caráter de universalidade das palavras de uma linguagem é reforçado decididamente, assim que as palavras se tornam conceitos, que atuam como nomes para um grande número de coisas iguais. “Toda palavra”, notava Nietzsche, “torna-se logo conceito, através do qual ela não deve ajustar-se, como lembrança, à vivência original, única e totalmente individualizada, à qual deve seu surgimento, mas tem de servir, ao mesmo tempo, para inúmeros casos, mais ou menos semelhantes, isto é, rigorosamente falando, para casos nunca idênticos, portanto claramente desiguais. Todo conceito surge por meio da igualação do não-igual” (ABEL, 2005, p. 251).

O sujeito produz corporalmente “metáforas” sobre o mundo. O conceito de essência, por exemplo, para a filosofia nietzschiana é desprovido de significado, assim como o de Deus, pois ele considera que não são conceitos surgidos a partir da imanência, mas sim ideais; estes conceitos carregam valores niilistas, que depreciam a vida. São conceitos que expressam uma natureza de relações de forças negativas e reativas. O conceito não pode confundir-se com os universais; antes, ele funciona como uma espécie de metáfora; Nietzsche3 foi um grande “metaforizador”:

Ferramenta de trabalho do filósofo provê na metáfora construtora de interpretações inesgotáveis um antídoto para a fixação de conceitos. A manipulação proposital da linguagem metafórica ao menos desestabiliza conceitos e revela a natureza do conhecimento como mais próxima da interpretação do que da explicação. (BRAGA, 2003, p. 76).

A linguagem metafórica é uma ferramenta de que Nietzsche dispõe para questionar a concepção do discurso conceitual que visa apenas o universal da verdade em si, apontando os limites desta idéia de verdade universal e resgatando o papel da interpretação artística como forma de conhecer. A metáfora é uma figura de linguagem que se adéqua ao pensamento do múltiplo, dos sentidos, das diferenças. Ela é uma afirmação, não é uma representação como são os universais. As metáforas nietzscheanas não surgem isoladamente de outras. Elas acontecem, sobretudo, nos aforismos:

O poema e o aforismo são as duas expressões metafóricas de Nietzsche; mas estas expressões estão numa relação determinável com a filosofia. Um aforismo considerado formalmente se apresenta como um fragmento, é a forma do pensamento pluralista; e, em seu conteúdo ele pretende dizer e formular um sentido. O sentido de um ser, de uma ação, de uma coisa é o objeto do aforismo (DELEUZE, 1976, p. 17).

Vê-se que a própria forma de expressar o pensamento, através de metáforas, o estilo de escrever de Nietzsche evidencia sua posição filosófica. Pensamento e linguagem indissociáveis em Nietzsche, no sentido de que é necessário ruminar, fabricar, selecionar, organizar as palavras para melhor poder transmitir os conteúdos, isto é os sentidos. Certas possibilidades interpretativas do mundo podem se fechar em função da linguagem. Nietzsche nos chama atenção:

Sempre que há afinidade lingüística não se pode evitar que, graças à filosofia comum da gramática, em outras palavras, graças ao domínio e orientação inconscientes pelas funções gramaticais idênticas, tudo se encontre preparado, desde o início, para um desenvolvimento e uma sucessão semelhantes dos sistemas filosóficos. Igualmente certas outras possibilidades de interpretação do mundo parecem bloqueadas (NIETZSCHE, 2008, p. 50).

Esta é uma questão complexa que nos exige um aprofundamento para podermos tomar um posicionamento mais sólido, porém, a indicação da relação entre as formas interpretativas e estrutura lingüística dos povos é muito interessante. Isso pode servir como indicativo da possibilidade de entendermos como povos diversos, estruturalmente pensam iguais, ou seja, interpretam o mundo de forma muito parecida. Além disso, evidencia uma dificuldade interna de lógica da linguagem que impede que formas interpretativas diversas sobre o mundo possam surgir. Em última análise, parece que linguagem em Nietzsche não se restringe ao campo da expressão racional, mas também de expressão dos impulsos fisiológicos.

5 –  Natureza e cultura: uma perspectiva não usual na Geografia

Uma perspectiva interessante sobre natureza pode ser encontrada na filosofia de Nietzsche. Para Nietzsche, a natureza não é um recurso que está disponível para a realização das necessidades materiais dos homens.
Sobre a dualidade cultura/natureza em Nietzcshe, Frezzatti Jr. afirma que “pensar a relação entre tais pressupostas esferas como um processo dinâmico é, para nós, a principal contribuição de Nietzsche para a discussão. Com a dissolução da dualidade cultura/biologia, dissolve-se tanto o determinismo cultural quanto o determinismo biológico” (FREZZATTI Jr., 2006, p. 294).
Esta questão é de extrema importância para o pensamento na medida em que implica na problematização de qualquer fundamento biológico ou cultural, de superioridade ou inferioridade, como justificativa de qualquer tipo de política de privilégios. O sentido de natureza em Nietzsche não é, portanto, o de oposição em relação ao homem. Segundo Abel:

Tendo em vista uma concepção não dualista da conexão entre o orgânico e consciente, fisicalista e mental, é de grande importância que os ‘elementos’ da natureza e da vida não seja tomados como ‘coisas’, no sentido de ‘corpos materiais’, que ocupam posições no espaço-tempo, mas como ‘eventos’ (‘Ereignisse’), ou seja, ‘processos’.
[...] O conceito nietzschiano de mundo, a saber, de natureza, pode ser caracterizado por meio da figura de efeitos cambiantes dinâmicos, altamente complexos, de variadas organizações de forças ‘vivas’ e ‘inteligentes’. Na nova interpretação da realidade em Nietzsche, essas organizações de forças processuais são qualificadas como forças-da-vontade-de-potência (ABEL, 2005, p. 215).

Isto quer dizer que a natureza em Nietzsche não é algo localizável, no sentido de fixidez dos corpos físicos e rígidos num espaço; ela também não tem sentido de exterioridade em contraposição a interioridade da consciência, como algo essencialmente exterior ao pensamento; a natureza é coexistência de forças caóticas em mudança. A natureza não sendo exterioridade, ordenada e não tendo sentido algum, logo, não podemos atribuir qualquer legalidade à natureza.
A natureza não tem lei alguma. Nietzsche se coloca contrário a todo estabelecimento de fundamentos legais na natureza e, também, de qualquer fundamento legal de valor absoluto para a sociedade. As leis humanas também expressam a hierarquia momentânea de determinada correlação entre forças. De acordo com Frezzatti Jr. (2006, p. 294), “A implosão da dualidade biologia/cultura por Nietzsche está no âmbito das outras críticas realizadas pelo filósofo contra a dualidade metafísica”.
Por isso, toda essa correlação entre corpo, subjetividade, pensamento, linguagem, vontade de potência, devir, consciência, natureza, forças, etc. Esse foi o caminho que Nietzsche percorreu para demonstrar alguns erros profundos da filosofia e das relações humanas. Ele não instaurou nenhuma nova verdade; ele permitiu como afirmou Deleuze, “erguer uma nova imagem do pensamento, liberar o pensamento dos fardos que o esmagam”. Ao não contrapor natureza e cultura, ele quebrou o valor da idéia platônica; do conhecimento desprovido de território.
Esta ausência de distinção essencial entre natureza e cultura ou natureza e consciência no pensamento nietzscheano, implica em afirmar que não há pensamento sem corpo, ou seja, sem territorialização da idéia. Por isso, consciência e corpo são indissociáveis. Segundo Deleuze (1976, p. 21), “como Freud, Nietzsche pensa que a consciência é a região do eu afetada pelo mundo exterior”. Mas esta consciência não é definida em pelos reflexos produzidos pelo mundo exterior, antes se define a partir dos valores que ela produz.
Isto quer dizer que a consciência é algo ativo e não contemplativo. Ela não busca no mundo da Ideia o simulacro para reconhecer no mundo sua cópia. Ele é manifestação, “sintoma” das forças que a compõe. “Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político” (DELEUZE, 1976, 21.). Então, podemos dizer que Nietzsche buscou naturalizar o homem, na medida em que esta era uma forma de romper com os valores metafísicos atribuídos ao homem. O sentido de naturalizar o homem é o de torná-lo profano. O homem como natureza implica em não homogeneizá-los, mas sim em diferenciá-los. De acordo com Cavalcanti:

Na modernidade assiste-se à formação de um valor absoluto do homem, fundado no princípio de igualdade e universalidade dos direitos humanos, independentemente das diferenças entre os indivíduos e de seu poder em dar forma e criar a si próprio. Na interpretação de Nietzsche, a esfera da auto-conservação, a avidez do existir, constitui o critério fundamental da atribuição moderna de valores, conferindo, desse modo, valor em si à espécie humana (CAVALCANTI, 2007, p. 118).

Esse valor metafísico do homem, valor tipicamente atribuído a algo em si, como se isso fosse possível já que nada é em si, é considerado por Nietzsche enquanto um sintoma de um tipo de força. É sintoma do niilismo que marca a modernidade. Esse tipo de valor manifesta o tipo reativo de força, pois é depreciativo. Se o homem já tem valor em si, então, todos os homens são iguais. Isto implica na não superação do homem pelo homem. No entanto, o mundo-natureza é a diferencialidade pura. Esta diferencialidade do devir impede-nos de atribuir valores absolutos quaisquer. Pensar o mundo é vislumbrar diferenças; é estabelecer planos; é agenciar desterritorializações; é encontrar relações entre potências ou entre forças. Neste sentido, de quais relações de forças falamos quando falamos em natureza?  Segundo Deleuze:

a própria natureza tem uma história. A história de uma coisa é geralmente a sucessão das forças que dela se apoderam e a co-existência das forças que lutam para delas se apoderar. Um mesmo objeto, um mesmo fenômeno muda de sentido de acordo com a força que se apropria dela (DELEUZE, 1976, p.5).

O pensamento, em Nietzsche, não pode ser explicado enquanto algo que concorda ou se adéqua aos objetos. Os objetos possuem componentes maquínicos 4, no entanto, o sentido do objeto só acontece no ato, não é, portanto, pré-dado. Da mesma forma, a natureza não tem sentido até que se construa algum. Segundo Nietzsche:

São somente homens ingênuos que podem acreditar que a natureza do homem possa ser transformada em uma natureza puramente lógica; mas se houver graus de aproximação desse alvo, o que não haveria de se perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo, da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica diante de todas as coisas (NIETZSCHE, 1978, p. 96).

Ao naturalizar o homem, imputando-lhe a dimensão do ilógico e dos impulsos, significa atribuir certa irresponsabilidade ao homem. Nossa cultura atribui ao homem uma noção de absoluta responsabilidade por parte deste sobre seus atos. Todos devem ser conscientes de seus direitos e deveres, ou seja, para hipoteticamente termos algum direito, antes somos obrigados a cumprir deveres muitas vezes determinados por forças que se sobrepõe a nossa vontade; forças estas que temos de nos submeter em certo sentido ou nos adaptar para poder subvertê-lo. “Afirmar que as condições culturais e as condições fisiológicas são graus de hierarquização de configurações de impulsos é asseverar que o processo de educação ou seleção é um processo de luta entre impulsos por mais potência, envolve dominação e submissão” (FREZZATTI Jr., 2006, p. 297).
No entanto, nunca na história humana foi tão recorrente a ausência de controle de nós sobre nós mesmos e ainda mais sobre o mundo ou a sociedade. A regra é burlar as regras. Por isso, tantas prisões, escolas, hospitais psiquiátricos, tantas avaliações, etc. O que se tem tentado é burocratizar a natureza e as relações sociais; normatização e vigilância excessiva sobre como devemos nos relacionar com a natureza e conosco mesmos.
Portanto, os sentidos de natureza em Nietzsche são: como vontade de potência; como diferencialidade absoluta; como corpo; como consciência; como linguagem; como caos; como sem sentido, ou seja, esfera do ilógico; como devir; como mundo; como antiessência; como imanência; como vida:

Fatalidade: resultado da luta de impulsos por mais potência! Não há estrutura biológica, não há cultura nem educação que formam o homem. Apenas fatalidade, apenas acaso, apenas luta por mais potência. “A vida mesma não é o meio de algo: ela é apenas uma forma de crescimento de potência” [...]. Não há um mundo biológico ou natural, nem um mundo cultural, apenas luta por potência (o “todo”). Nessa concepção, não há macro cosmo ou microcosmo, nem volta a uma matriz primordial, nem religação com nada, nem caminho à redenção. Criação, destruição, recriação e assim por diante, sem finalidade (FREZZATTI Jr., 2006, p. 296).

A naturalização do homem no sentido nietzscheano não implica em reduzir a existência humana a determinações de natureza físico-químicas, ou seja, não se considera que os fenômenos sociais não tenham distinção qualitativa em relação aos fenômenos, dito, naturais. O que muda é o próprio sentido de natural.
Nietzsche naturaliza o homem porque este não se fundamentaria pela alma ou pela razão, mas sim pela sua diferenciação natural, pela vida, pelo mundo que constrói, no qual a racionalidade do homem nada mais seria que um elemento de sua diferenciação, assim como a asa da mosca é um elemento de diferenciação da mosca.
O sentido desta idéia não é o de justificar qualquer ordem social pela superioridade natural das classes sociais ricas e proprietárias que, por isso, por serem naturalmente superiores, teriam o direito natural (ou divino) de exercer domínio sobre os naturalmente inferiores, ou seja, domínio sobre os pobres do mundo.
Sentido é o de propor a plenitude de vida ao homem; valorização do instinto humano; valorização das realizações triviais como comer, dormir, dançar, fazer sexo, etc.; valorizar o sofrimento não como purgação dos pecados, mas como força criadora; em última instância, o sentido de naturalização do homem em Nietzsche é o de dessacralização do homem, é torná-lo acaso; é abrir caminho para a chegada do super-homem, pois a condição para a criação de novos valores estará aberta; o campo para a criatividade estará fértil.

6 – Conclusão

Reconhecer as fronteiras entre as diversas formas de pensamento, Filosofia, Ciência e Arte, possibilita a compreensão de como elas podem ser mobilizadas no sentido da ampliação dos nossos horizontes de pensamento. Por isso, somos partidários do princípio moderno “da escola que aprende”, pois não apenas os alunos devem aprender nas escolas, mas também os professores e outros profissionais que formam o conjunto escolar. Neste sentido, os professores devem procurar ir além do livro didático como fonte de dados e, sobretudo, de conceitos. No caso da Geografia, tendo em conta que o pensamento nietzscheano não é utilizado em larga escala como referencial de produção do conhecimento geográfico, e observando a riqueza de seu pensamento, trouxemos o exemplo de como ele compreende natureza e problematiza o pensamento. O conceito nietzscheano de natureza pode contribuir para que os professores de Geografia problematizem os conteúdos próprios da Geografia de modo a induzir o desenvolvimento de competências geográficas, fazendo, assim, os alunos perceberem que eles não estão em separados da natureza porque pensam, e que o pensamento não é pura abstração, mas é, antes de tudo, a forma como sentimos o mundo.

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1 Félix Guattarri entende o espaço e corpo como agenciamento de enunciação (1992). Espaço e corpo são conceitualmente inseparáveis: “Ainda aí um outro Agenciamento de enunciação desencadeia outras modalidades de espacialização e corporalidade. O espaço da escritura é, sem dúvida, um dos mais misteriosos que se nos oferece, e a postura do corpo, os ritmos respiratórios e cardíacos, as descargas humorais nele interferem fortemente. Tantos espaços, então, quantos forem o modo de semiotização e de subjetivação” (GUATTARRI, 1992, p. 153). Neste sentido, o espaço não é algo que está dado. O espaço não é algo pronto ou alguma plataforma de shows naturais e sociais. O espaço é algo que existe na relação, pois é algo que está para. Por isso tantos espaços quantos forem o modo de semiotização e de subjetivação. Então espaço é um agenciamento de enunciação.

2 Dizemos que é uma totalidade fragmentária porque os sentidos produzidos pelos conceitos são completos, porém eles não alcançam a totalidade do real, ou melhor, dos acontecimentos.

3 Observem que Nietzsche dava outro significado para a idéia de conceito diferentemente da interpretação de Deleuze e Guatarri. No entanto, os três convergem quando criticam o sentido de universais que os conceitos pretendem carregar. Por isso Nietzsche contrapõe metáforas a conceitos.

4 O agenciamento é maquínico quando as forças de suas linhas intensivas são indutivas de “co-adaptaçãos de conteúdo e expressão num estrato” (DELEUZE & GUATTARRI, 1995, p. 88), ou seja, ele é maquínico enquanto portador contemporâneo de blocos de significados que reafirmam o estado de coisas e quando tenta impor ordem. Segundo Guattarri: “Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação” (GUATTARRI, 1992, p. 158). Os fixos são máquinas enunciadoras. Elas disciplinam, induzem as percepções e as ações. Neste sentido, elas produzem subjetivação parcial. Porém, elas não determinam os acontecimentos. Estes acontecem. Toda disciplina não dá conta do caos.