DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

1.3  A  Sacralidade no pensamento de Santo Agostinho e Tomás de Aquino

No período da Idade Medieval os filósofos Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino vão se destacar a respeito do fundamento da consciência do ser. Neste sentido Agostinho se afasta da herança platônica a qual nega a idéia de imanência divina, para entender que Deus tomou forma e se encarnou na figura de Jesus de Nazaré.  Agostinho descobre, então, a partir da leitura das epístolas de Paulo que a graça e a verdade são dons gratuitos de Deus e que a sacralidade divina que se tem agora é proveniente da obediência do homem para com Deus.

“Ao percorrer pela vida de Agostinho visualizamos eternas lembranças de superação, percebe-se ao longo de sua história momentos de tribulações em busca de uma verdade que então se encontrava distante de seu entendimento, vários motivos levaram Agostinho a trilhar por caminhos de temeridade visto que, a paciência que leva ao reino de DEUS é uma virtude individual e não coletiva, pois, apresentar uma determinação a terra prometida, é algo superior da vontade ser. Agostinho se voltou primeiramente para as idéias filosóficas do mundo dos homens, racionalmente adotou o maniqueísmo como doutrina para ajudá-lo nessa consciência perdida aos descalces que a vida lhe impunha, depois atravessou tempestades e maremotos nas águas do ceticismo e neoplatonismo. As preocupações existenciais levaram-no a uma crença metafísica de entendimento superior, contemplações que a via do homem era constantes na problemática das consciências, a exegese do seu silêncio ocultava-lhe o aos poucos o renascimento que estava por acontecer, tornar a consciência unicamente remodelada por idéias cristãs”. (Amanajas Pena, R.; Amanajas Pena, M. y Amanajas Pena, H. 2012)

Assim, Agostinho se afasta do maniqueísmo1 para então começar a “interpretar a bíblia numa visão muito mais mística do que literal, descobrindo que o mal não é uma substância em si, mais uma privação do bem”. (TINCQ, 1999, p. 21). Destacam-se como princípios fundamentais da teoria de Santo Agostinho a Conciliação entre a fé e a razão; Conhecimento natural de Deus; Negação do mal; Indispensabilidade da graça para a salvação do homem.  Na concepção de Santo Agostinho o mal não é um ser, mas a ausência do bem. Deus é interpretado como a completa personificação do bem, portanto, Agostinho afirma com isto que jamais o mal seria uma criação de Deus, pois, um ser tão bom como Deus não poderia ter gerado o mal.

“Ao problema da criação está ligado o grande problema do mal, para o qual Agostinho conseguiu apresentar uma explicação que constituiu ponto de referencia durante séculos e ainda guarda sua validade. Se tudo provém de Deus, que é Bem, de onde provém o mal? Depois de ter sido vitima da explicação dualista maniqueísta, como vimos, Agostino encontrou em Plotino a chave para resolver a questão: o mal não é um ser, mas uma deficiência e privação de ser. Escreve Agostinho: “E o mal, cuja origem eu buscava, não é uma substancia, porque, se fosse uma substancia, seria um bem. E, na, verdade uma substancia incorruptível e, por isso, saem duvida um grande bem ou seria uma substancia corruptível e, por isso, um bem que, de outra forma, não poderia estar sujeito a corrupção. Por isso, vi claramente como tu fizeste boas todas as coisas”. (ANTISERI; REALE pg. 455)

 Para Agostinho a origem do mal estaria no livre-arbítrio concedido por Deus, este em sua magnitude e perfeição criou o homem como um ser livre e autônomo para escolher o bem e o mal. O homem, então, é o único ser que possuirá as faculdades da vontade, da liberdade e do conhecimento, é capaz de entender os sentidos existentes em si e na natureza, possuidor de capacidade de escolher entre algo bom (proveniente da vontade de Deus) e algo mau (a prevalência da vontade das paixões humanas). 
 
“Até à Reforma e às Luzes, os escritos de Agostinho sobre a humanidade pecadora (uma massa de perdição) desde o pecado original de Adão e Eva, sobre o resgate apenas possível pela graça de Deus, concretizada na fé e no baptismo, trabalharam as mentalidades ocidentais. Depois de Paulo - e muito antes dos calvinistas e jansenistas, Agostinho foi transformado no porta-voz de um cristianismo pessimista que recusa ao homem a sua soberania e a sua liberdade e que, pela predestinação, o condena à graça - a promessa de salvação - ou ao inferno da danação. Um debate que atravessa a História inteira”. (Idem, 1999.p 22)

 Assim, seguindo esta análise nota-se que há uma tensão da consciência para o fundamento, da qual o homem está embebecido, e que este fundamento é a estrutura material designada por Aristóteles (o logos), a qual orienta a própria consciência, nisto intui-se uma relação da verdade para o fundamento e a consciência do homem, esta pode ser interpretar como única, por meio da manifestação da experiência. Como afirma Voegelin:

[...] “Ainda que o mito e a filosofia, como expressões simbólicas da experiência, maravilhamento e participação no fundamento, sejam equivalentes, nunca alcançam um igual conhecimento da verdade quanto ao fundamento. Porque Aristóteles mantém a crença dos pais (patrios doxa) [...] - de que os corpos celestes são divinos - para ser verdadeira e divinamente inspirado, e incluiu-a no seu próprio símbolo de Primeiro Motor do cosmos. Por outro lado, considera a tradição de que os deuses têm forma humana ou animal uma invenção para a edificação do povo, uma tradição que não deve se aceite (1074 b 1-15). Assim, o filósofo elimina a thaumasia do mito politeísta, mas retém o conhecimento dos philomithoi acerca da divindade do fundamento”. (2008, p. 16)

A base para o pensamento, logos, fruto material da consciência, que revela para a mesma sua existência, elevando-se como verdade e fundamento, o logos se remete a razão, no sentido aristotélico, que funciona quando aplicada pelos humanos para compreender as coisas.  Portanto, tal tensão para o fundamento funda-se com a existência humana, com o fundamento e o noûs; a respeito desta tensão, Vogelin afirma que “o homem encontra-se a si próprio numa condição de ignorância” (gnóia), não podendo reconhecê-la como tal, enquanto não for tomado por um impulso de inquietação para dela fugir, como tal condição a se superar; esta superação acontece quando surge o desejo de alcançar o conhecimento. O que sem dúvida alguma, durante muito tempo direcionou a concepção do homem.

Afirma REALE; ANTISERI 2003

“Os gnósticos davam (talvez mais do que outras doutrinas filosoficas) um sentido a essa angustia e, portanto, estavam em sintonia com certo modo de sentir próprio daqueles tempos. Um dos documentos descorbertos em Nag Hammadi2 afirma: “A ingnorância do Pai causara angústia e terror. A angustia se adensara-se como a névoa, de modo que ninguem pudesse ver...”. Mas, por mais que pudesse responder a instâncias precisas daquela época, a mensagem gnóstica revelou-se frágil e sem futuro”. (REALE; ANTISERI pg. 407)   

Na análise de Tomás de Aquino, o homem tem condições cognitivas de distinguir com naturalidade o conceito de certo e errado, capacidade esta concedida por Deus. Assim, o conhecimento verdadeiro do cosmo é uma soma da inteligência para entender a manifestação do objeto, com a compreensão do objeto em si. Como afirma (AQUINO, 1225 – 1274) “de onde se segue que a essência, pela qual uma coisa se denomina ‘ente’, não é apenas a forma, nem apenas a matéria, mas ambas, embora à sua maneira apenas a forma seja a causa desse ser”.
 Aquino pressupõe que o conhecimento está além do visível, a verdade é o único viés que possibilita a manifestação da coisa como aquilo que é enquanto essência. Logo, a verdade fundamenta-se nas coisas/objetos e no intelecto que assimila, e ambos estão unidos com o ser. O "não-ser" não pode ser considerado verdadeiro, até que o intelecto o torne conhecido. Ou seja, isto acontece quando o objeto ou coisa é apreendido pelo mesmo através  da razão. Com isto, deve-se conhecer primeiro o que é o ser para que a posteriori conheça a verdade.

“Por ser Tomás de Aquino entende não só a realidade em geral, que está na base de todas as possibilidades, mas a plenitude ilimitada de todas as perfeições, o que há de mais perfeito em todas as coisas. (...) Aquilo a que chamo ser é a primeira das perfeições, origem de todas as demais, que ele contém em si prévia e implicitamente. Portanto, todas as outras perfeições são relativas e dependentes desta perfeição primeira, que é o acto de ser”.  (FREITAS, 1992, p. 5)

A concepção de ser verdadeiro ou falso, no que tange a consciência da existência e inexistência da coisa, corresponde ao Ser o que se representar ser e o que deve ser conforme a inteligência que a conhece. É baseado nesta concepção que Tomás de Aquino dá consistência à compreensão da verdade. Logo, pode-se inferir que a verdade que está no intelecto está intimamente relacionada com a relação coisa-intelecto.  É de suma importância frisar que o inteligível, na análise de Tomás de Aquino, não é a coisa entendida, mas sim a representação da coisa, logo não se conhece as coisas enquanto matéria, mas o conhecimento das coisas. Isto acontece devido o inteligível ser considerado o meio pelo qual a mente entende as coisas que encontram-se extramentais.

“Todas as coisas brutas que não possuem inteligência própria existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade (...). Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente, ou qual dirige todas as coisas da Natureza para que cumpram seu objetivo”. (PALÁCIOS, 2011, p.13)

Assim, na tentativa de responder aos problemas filosóficos: Deus, conhecimento, mundo e do homem. Tomás de Aquino escreverá a Súmula Teológica, expondo alguns princípios acerca da existência de Deus; do movimento ascendente dos homens na busca de Deus; Cristo, que, enquanto ser, é para o homem o caminho que leva a Deus.   Assim, a Súmula segue um modo estrutural de ordem, argumentação e desenvolvimento patente no intuito de convencer e refutar os erros dos adversários, e mostrar a possibilidade, a conveniência dos “indemonstráveis” mistérios cristãos e sua harmonia com que a razão antecipadamente pode estabelecer.

“Santo Tomás recebe e admite com clássica humildade o auxílio sobrenatural de uma fonte de conhecimento que Aristóteles necessariamente desconhecia, o auxílio sobrenatural da revelação. Essa falta, essa deficiência que há em Aristóteles, no último ápice em que deveria rematar em perfeição seu conhecimento da realidade, foi remetida pela revelação cristão, que se manifesta nesse sentido como fonte de conhecimento objetivo e complemento decisivo das informações que o homem, por si mesmo e naturalmente, é capaz de obter acerca das coisas”.  

Tomás de Aquino mostra a necessidade de uma Doutrina Sagrada compreendida como revelação divina, pois é preciso que o homem dirija suas intenções e ações para um fim (Deus); sendo que o fim para o qual se dirigem as ações humanas só pode ser analisado através da fé.  No que diz respeito o conhecimento de Deus, Aquino sustenta que a verdade sobre Deus verificada pela razão chegaria somente a um número mínimo (pequena parte), distorcida pelo tempo e, cheia de erros acerca do conhecer a Deus.

Comenta REALE; ANTISERI 2003

“É preciso partir das verdades “racionais”, por que é a razão que nos une. Escreve santo Tomás: “É necessário recorrer a razão, à qual todos devem assentir.” É sobre essa base que se pode obter os primeiros resultados universais, por que racionais, com base nos quais se pode depois construir  um discursos aprofundamento de caráter teológico”.  (REALE E ANTISERI pg. 555)

O homem depende do conhecimento desta verdade, pois nela está a salvação do homem, e essa se encontra em Deus; portanto o homem precisa ser instruído por uma doutrina, tida como revelação divina, e neste caso, não se deve investigar por meio da razão, pois aquela ultrapassa o conhecimento humano, mas sim se deve acolher na fé. Aquino considera a doutrina sagrada como ciência, e assim afirma que a variedade de razões no conhecer determina a diversidades das ciências.  
Desta feita, o filósofo apontará a diferença entre o ser dos seres e o ser subsistente; o ser que funda e permeia todos os seres só pode ser compreendido, na insubsistência da sua pobreza e na riqueza da sua promessa, referido a um ser que se anuncia como o ser subsistente, porque só em si se atualiza a plenitude do ser.  A conclusão inferida ao ser diz que o ser só pode ser real e verdadeiramente ou como ser subsistente ou como ser participado.


1 Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística fundada e propagada por Maniqueu Fausto  que divide o mundo simplesmente entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo.

2 Nag Hammadi é uma aldeia no Egipto, conhecida como Chenoboskion na antiguidade, cerca de 225 km ao noroeste de Assuan, com aproximadamente 30000 habitantes. É uma região camponesa onde produtos como o açúcar e o alumínio são produzidos. Nesta aldeia foram encontrados, em 1945, um conjunto de manuscritos que ficaram conhecidos como biblioteca de Nag Hammadi, contendo textos do antigo gnosticismo, onde possui ligação com o " Evangelho de Judas".