DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

CAPÍTULO II

2. A CRÍTICA DE NIETZSCHE AOS FUNDAMENTOS DA CRISTANDADE E AS CONSEQUENTES IMPLICAÇÕES À CONSCIÊNCIA DE SACRALIDADE.

Antes de expor as concepções de Friedrich Nietzche, deve-se entender, em primeiro momento, que a  Europa, na Idade Moderna,  vivia um ateísmo crescente, teoricamente de fontes variadas como a dos filósofos Shopenhauer, Stirner e Marx  que desencadearam críticas gerais à instituição religião e outras direcionadas ao cristianismo. As críticas ao cristianismo, nesta fase,  apresentam-se apenas como afirmação e convicção teórica,  uma constatação filosófica.
As concepções do iluminismo promoveram ao homem a liberdade do pensar, de  vida. Surgiu como proposta de libertação do homem do período sombrio em que vivera durante séculos; a razão seria o caminho seguro que guiaria o indivíduo à saída dos labirintos obscuros da história. O que diferencia Nietzsche dos demais filosófos da época é que este negou não só a ideia da existência do Deus cristão (Deus existe por Deus não existe), mas expressou a importância de negar os fundamentos psicológicos da cristandade e toda a estrutura moral cristã.
O homem perdeu de vista o que Nietzsche chama de vida e experiência, simplesmente porque olhou estas apenas com pretensões morais, estéticas e religiosas numa configuração produzida sob influências do cristianismo, ofuscando-se através de conceitos de verdades eternas, que desencadearam em esperanças de um “além mundo” com conceitos errôneos e vícios que, para Nietzsche não se encaixam neste mundo relativo. Logo, este mundo imutável, para o filósofo alemão, não existe, é apenas fruto da imaginação do homem destinado à decadência.

“Agora ele ousa, pergunta em voz alta e até já ouve alguma coisa como resposta. Tu devias tornar-te senhor de tí, senhor de tuas próprias virtudes. Antes, elas eram senhoras de ti, mas elas não podem ser senão teus instrumentos ao lado de outros instrumentos. Devias ter o domínio sobre teu pró e teu contra e aprender a arte de agarrá-los e dispensá-los segundo teu objetivo superior do momento. Devias aprender a tomar o elemento de perspectiva que há em toda a avaliação - o deslocamento, a distorção e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o que diz respeito à perspectiva; e também a grande a parte da ignorância a respeito dos valores opostos e de todas as perdas intelectuais, com as quais cada pró e cada contra se faz pagar”. (NIETZSCHE, s/d, p. 26)

Seguindo a análise da filosofia de Nietzsche, o homem com sua mente sofredora e empobrecida cria a figura de Deus como meio de fugir dos problemas naturais e de sua própria realidade. Este homem para Nietzsche não passa de um ser inferior que não consegue aceitar sua existência e os ciclos naturais desta, dificultando assim, o alcance da sua libertação em relação aos princípios cristãos. Com isto, o que se observa em tal afirmativa é que Nietzsche abre caminho para a discussão da decadência e da existência humana, bem como a moral vigente.

“Para Nietzsche determinadas formas de vida – “sofredoras improdutivas” – necessitam criar as ficções. Estas ficções regulativas são utilizadas pelo homem para a sua sobrevivência. Acreditar na lógica, nos átomos, nos números, no sujeito, na substância, na linguagem não é acreditar no mais verdadeiro, e sim no que é mais útil para a vida. Não podemos imaginar uma estrutura que pretende captar o em si das coisas baseada no fluxo permanente; a vida, a perspectiva humana necessita criar estas ficções. Com o mundo do ser, portanto da identidade, o homem cria as “ficções regulativas” sempre com propósitos práticos”. (ZATERKA, 1996, p. 89)

Assim, a insistente crítica aos fundamentos da consciência cristã, realizada por Nietzsche, expõe que os sacerdotes cristãos vivem do amortecimento dos males humanos, explorando uma condição beatífica como meio de atingir o céu, o transcendente (o paraíso). Por isso, na compreensão de Nietzsche é preferível ter certa leviandade ou melancolia a uma aproximação com o cristianismo sob qualquer forma que seja, pois o mesmo sujeita a consciência intelectual à opacificação, na ânsia de educar a humanidade num parâmetro distante da realidade humana.
Esta ilusão da idéia de Deus, Nietzsche interpretou-a como uma criação dos sacerdotes, no período em que o cristianismo estava sendo fundamentado, e definiu-os como os culpados pelo aprisionamento da mente humana. Estes são dignos de pena, afirma Nietzsche, pois estão marcados pelo sinal da mentira e dos falsos valores, além de serem prisioneiros daquele que eles denominam de Salvador - Deus. Este homem decadente se torna escravo das doutrinas impostas, as quais determinam que os indivíduos devem realizar sacrifícios e pagar promessas a Deus para se purificarem dos seus pecados.

“Em sua compaixão se havia afogado seu espírito e quando se enchiam e se inflavam de compaixão, sempre flutuava uma grande loucura na superfície. Apressadamente lançavam seu rebanho no caminho, dando gritos como se houvesse somente uma passarela que fosse dá ao futuro! Na verdade, mesmo esses pastores não passavam ainda de ovelhas. Esses pastores tinham espírito pequeno e almas grandes, mas até agora meus irmãos, quão pequena foram essas almas, mesmo as maiores. [...] Na verdade, houve homens maiores e melhor nascidos do que aqueles a quem o povo chama salvadores, esses furacões devastadores. E é preciso, meus irmãos, que sejais resgatados por outros maiores ainda do que todos os salvadores, se quereis encontrar o caminho da liberdade. Nunca houve até hoje um super-homem”. (NIETZSCHE, 2008, p. 106)

É fato, compreendido por Nietzsche, que o cristianismo aniquilou o homem completamente, o submergiu num pântano profundo de culpa para depois, num repente, apegasse-se na misericórdia divina para uma vida além desta, ou seja, a condição da temporalidade existencial por uma vantajosa eternidade do porvir. 
Não é sem propósito que Nietzsche convergirá seus escritos para a interioridade do homem, no espírito humano, nos fundamentos da consciência humana. Pois as intenções e ações do homem foram maculadas pelos conceitos da cristandade, esta impregnou com seu príncipios o modo de ser e de existir do homem. Assim, toda e qualquer realização efetiva do estado de espírito do indivíduo  está corrompida pelos ideais cristãos. Isto tudo se configurou  devido a ausência de necessidade do homem de conhecer primeiro a si próprio, para depois alçar a experiência da vida nas valorações imanentes e extramorais, sem as rédeas da condição cristã, sem o monopólio do pensamento cristão.

“É para este excesso doentio do sentimento, para a profunda corrupção da cabeça e do coração, que concorrem todas as invenções psicológicas do cristianismo: ele quer aniquilar, quebrar, atordoar, embriagar; só há uma coisa que ele não quer: a medida e é por isso que ele é, no sentido mais profundo, bárbaro, asiático, sem nobreza, não-grego”. (NIETZSCHE, s/d p. 120)

São perceptíveis, em seus aforismos da obra Humano Demasiado Humano, as considerações que Nietzsche fez contra as características das virtudes cristãs (Amor, compaixão, perdão) que objetivavam tornar a vida suportável no plano terreno; esta aceitabilidade de uma vida cristã proporciona ao cristão, segundo Nietzsche, a manifestação de um espírito doentio que resulta da contaminação da mente e do coração do homem.
Ou seja, este espírito a que se reporta Nietzsche nada mais é que um espírito alienador que desvirtua a mente humana para que esta não se apegue aos seus desejos internos (carnais). O homem cristão deve conter seus instintos para não pecar contra a vontade de Deus, assim, seu espírito torna-se prisioneiro dentro do corpo. Dessa forma, Jung  analisa a concepção cristã:

“Designa-se por espírito o princípio que se contrapõe à matéria. Pensa-se então em uma substância ou existência imaterial, que em seu nível mais elevado e universal é chamada "Deus". Também imaginamos essa substância imaterial como a que é portadora do fenômeno psíquico, ou até mesmo da vida. Contrariando essa concepção temos a antítese espírito- natureza. Aqui o conceito de espírito limita-se ao sobrenatural ou antinatural, tendo perdido a relação substancial com alma e vida”. (JUNG, 2000, p. 206)

 A vida para o cristão é uma contínua batalha entre os espíritos bons e maus, a qual nada mais é para Nietzsche que uma batalha travada entre o homem e seus instintos naturais, que o ideário cristão considerou como heréticos, pois estes são verdadeiros demônios que se desenfreavam dentro do indivíduo. Assim, conseguia-se suscitar admiração e interesse dos não santos pela vida santa, afinal era de interesse dos santos manter um certo grau de intensidade na luta interior entre os espíritos; as testemunhas, os discípulos cristãos serviam para isto, tanto é que os apetites sensuais foram endemonizados e sufocados, considerados perigosos e condenatórios na busca da salvação.
A idéia de espírito livre de Nietzsche não repousa nas normas e preceitos institucionais cristãos, mas sim no homem, considerado pelo filósofo como “senhor de suas virtudes, não mais servo!” (Nietzsche, Humano demasiado humano, p. 29), liberto dos sentimentos vorazes da culpa, da pressão do dever; da faculdade de conhecer (eterna verdade), livre da interpretação de que o cristianismo, o espírito teria uma compreensão mais apurada do mundo.

“O desenvolvimento correspondente do espírito numa direção inversa hilozoísta, porém, a maiori ad minus, ocorreu sob o signo anticristão, no materialismo. A premissa desse retrocesso é a certeza exclusiva da identificação do espírito com funções psíquicas, cuja dependência em relação ao cérebro e ao metabolismo se tornava cada vez mais clara. Era necessário apenas dar outro nome à "substância una", chamando-a de "matéria", para criar o conceito de um espírito que dependesse necessariamente da nutrição e do meio ambiente e cuja forma máxima era o intelecto ou a razão. Assim, a presença originariamente pneumática parecia ter entrado inteiramente no âmbito da fisiologia humana, e um autor como KLAGES poderia acusar o "espírito como adversário da alma". (Idem, 2000, p: 208)

Desse modo, o espírito humano foi atormentado por uma vontade alheia, advinda de um Deus cristão, inibindo e torturando os sentimentos “in natura” do coração. Estes sentimentos foram dissimulados como indutores dos mais baixos instintos de afronta a santidade, tal gravidade, que evoca o homem a perdição, longe da felicidade e da redenção cristãs.
A experiência religiosa, relatada por Nietzsche, prescinde do exclusivismo do cárater cristão e de seus conceitos, como arquétipo absoluto para a humanidade. Nota-se com tudo isso que a característica do espírito livre abordado por Nietzsche se refere ao espírito psíquico, racional, cujo aspecto esta fundado na razão e no intelecto humano e não na entidade sobrenatural. Para ele, é a própria mente humana quem cria tais conjecturas sobrenaturais, logo, se isso ocorre não pode existir um Ser Superior à humanidade. Tudo não passa do fruto da imaginação humana, daí a ideia do super-homem enfatizada por ele, pois se o homem conseguir perceber que faz parte dele e é sua criação, este poderá superar a idéia da existência de Deus.

[...] “O espírito livre, que até com demasiada freqüência trava conhecimento com esta viciosa maneira de raciocinar e tem dé sofrer com suas conseqüências, tem muitas vezes a sedutora tentação de tirar as conclusões opostas que, de um modo geral, são naturalmente também errôneas: uma coisa não pode se impor, logo é boa; uma. opinião causa pena, inquietude, portanto verdadeira”. [...] (Nietzsche, s/d, p. 55)

Assim, observa-se que para Nietzsche todas as coisas advindas do cristão tornaram-se sacrifícios de tolo, pois se o homem criou Deus, logo, não existe fundamento para o mesmo, a não ser se entregar aos desejos dos instintos. Ao contrário da ideia do sacrifício, o filósofo considerou que se teu inimigo te ofendeu, por que deves tu oferecer a outra face quando, na verdade, o que o teu coração anseia é revidar a ofensa na mesma proporção? A compaixão é, para Nietzsche, sinônimo de fraqueza e decadência humana e jamais uma característica do super-homem.