DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

1.2  A Difusão de sacralidade nos pensamentos  pagãos e cristão

O novo cenário do mundo mediterrâneo (romanizado) influenciado, séculos antes, pelo processo histórico do ideal de formação de um império universal, foi conhecido sob a direção de Alexandre – O grande (356 a.C. – 323 a.C.), através de suas expansões. A cultura helenística suscitou os intercâmbios culturais no Mediterrâneo Antigo. Com a morte de Alexandre, o extenso império helênico é abalado pelas disputas de poder, o que conseqüentemente desfalece a unidade política.  Não obstante, a hegemonia helênica grega estava no fim, pois desde o século IV a.C. Roma organizava políticas de caráter expansionista. O século II a.C. é caracterizado pelo domínio romano, após o esfacelamento do domínio helênico, abrangendo a estrutura grega, alargando este ideal de universalidade.
Os romanos começam a expressar um drama cósmico que os atormentavam, o mito alardeado pelos “oráculos sibilinos” 1, o qual relatava a queda iminente de Roma, que se sucederia conforme um “número místico” relacionado com sua idade, revelado pelas 12 (doze) águias vistas por Rômulo, fundador de Roma; e o “grande ano”, que se referia a duração de Roma a um determinado ano em que se sucederia uma ekpúrôsis2 universal. O que expressa um simbolismo próprio da identidade religiosa.

“Mais tarde, quando o reinado de Augusto pareceu ter realmente instaurado a idade de ouro, Virgílio esforçou-se por tranquilizar os romanos quanto à duração da urbe. Na Aeneis (1, 255S.), dirigindo-se a Vênus, Júpiter afiança-lhe que não fixará para os romanos nenhuma limitação espacial ou temporal: “O império dei-lhes sem fim” (imperium sinefine dedi). Depois da publicação da Eneida, recebeu Roma o nome de urbs aeterna, sendo Augusto proclamado o segundo fundador da urbe. Sua data natalícia, 23 de setembro, foi considerada “o ponto de partida do Universo de que Augusto salvou a existência e mudou a face”. Difunde-se então a esperança de que Roma pode regenerar-se periodicamente, ad infinitum. Assim é que, liberta dos mitos das 12 águias e da ekpúrôsis, Roma poderá estender-se, como anuncia Virgílio (Aeneis, VI, 798), até as regiões “que jazem além das rotas do ano e do Sol” (extra anni solis que uias). (Eliade, 2011, p.317)

Tinha-se a concepção de que, o rei era responsável pela renovação do mundo, conseqüentemente a cada sagração de um soberano recomeçava um ciclo cósmico. A Sophia grega empreenderá diversas tentativas de romper com a concepção da lei dos ciclos cósmicos, tentando explicar um processo histórico sem ciclos. As grandes modificações instauradas pelo Imperador Augusto foram conduzidas como modelo da expressão manifestadora da criação religiosa tradicional; vistas como difusão da sacralidade romana, houve a reconstrução de templos, santuários e revalorização de corporações sacerdotais, que mais adiante libertar-se-iam do mito, primando pelas manifestações dos deuses, revalorizando as práticas da pietas3 em relação às divindades e aos homens. Esta retomada da consciência sacra significava uma renovação na atitude religiosa e nos ideais romanos.
Na tradição romana a religião era pública e constituída da leitura dos livros sibilinos, que estavam sob a guarda do Colégio Especial de Sacerdotes. Assim, para adotar novas divindades as autoridades romanas tinham que consultar o Senado e o Colégio de Sacerdotes, pois as divindades só poderiam ser adotadas se fossem para promover o sucesso de Roma. E, além disso, existia um rito de anexação, chamado de euocatio, ocasião em que as autoridades de Roma convidavam as divindades dos povos estrangeiros a deserdar o povo a quem ela pertencia para favorecer Roma e fazer parte de seu panteão de deuses.

“Lembramos aqui que os romanos tinham um colégio especial de sacerdotes, denominado “os dois homens para os sacrifícios” (duoviri sacris faciundis, mais tarde aumentados para quinze), responsável por aconselhar o Senado sobre o conteúdo dos Livros, em caso de prodígios ou desastres. De um modo geral, este colégio parecia ser responsável pelo controle dos cultos de origem estrangeira na vida religiosa romana. Sob o Império, encontramos alguns documentos que mostram que se dedicavam a este controle, entre comunidades de cidadãos romanos em outras partes da Itália”. (Ibidem, 2008 p.16)

Um componente elementar para compreender a flexibilidade do sistema religioso romano é que todas as atividades políticas formais ocorriam baseadas em um contexto religioso e os sacerdotes não eram considerados pessoas intermediárias e exclusivas entre as divindades e os seres humanos, como os sacerdotes judeus. Assim, a religião romana esteve sempre aberta à introdução de novas divindades, rituais e cidadãos de outras religiões.    
Neste período, havia uma animosidade entre as crenças não oficiais e aquelas que tinham permissão para realizarem seus cultos. Taciano e Tertuliano (que eram apologistas)4 incitavam o paganismo e a cultura helenística assiduamente, mas acabaram fracassando com a pressão das autoridades pagãs. Para a elite pagã, a fundamentação da teologia cristã - a encarnação do filho de Deus (o salvador), seus sofrimentos e sua ressurreição - era ininteligível. Deste modo, esta nova religião de salvação era vista como ilusória para os pagãos, assim como a esperança de uma coexistência harmoniosa com as religiões politeístas.
A religião greco-romana não mais atendia os novos anseios que perpassava o cidadão da época, assim a apatia e o desespero dos camponeses e escravos - citadinos pobres com a situação em que viviam proporcionou abertura do pensamento cristão; este encontrou nesta situação seu sustentáculo, pois esta nova crença era vista como uma resposta moral e escatológica a um mundo movido pela desilusão e falta de esperança.   
O fenômeno cristão tem suas ascendências com Jesus de Nazaré, judeu que viveu durante o período romano. Foi atribuída sua pessoa à imagem do Messias na tradução do hebraico, e Cristo na tradução do grego. Suas mensagens tinham como pressupostos frisar que a justiça de Deus não é a mesma dos homens.  A fé em Jesus Cristo ressuscitado constituiu o elemento primordial do cristianismo. Paulo de Tarso 5 inicia a propagação desta nova fé como crença religiosa, difundindo-a pelo império romano, o qual ainda preservava a crença pagã, que mantinha sua sacralidade baseada na devoção a várias divindades.
Seguindo esta análise, constata-se através de informações dos textos bíblicos, que a fé em Cristo proporcionaria uma aproximação entre o homem e Deus.
A nova crença num redentor, primeiramente anunciada aos judeus, elenca princípios essenciais como o ato do batismo nas águas para remissão dos pecados; era preciso que o povo eleito (os judeus) aceitasse o reino de Deus por meio do plano salvítico.
 Concebia também o batismo com o espírito santo; tendo como exemplo o dia de Pentecostes que marcou o ápice da nova crença. Neste dia, estavam reunidos os apóstolos e o povo de Jerusalém, estes receberam o “espírito de Deus” como sinal do batismo pelo Espírito Santo, este fato simbolizou a manifestação de Deus entre os homens. Observa-se que os elementos citados no texto bíblico dos Atos dos Apóstolos, como língua de fogo, vento impetuoso lembram certas tradições judaicas do Antigo Testamento, a teofania.
A santa ceia foi instituída como memorial do sacrifício feito por Jesus na cruz e também um ato de despedida e recomendações deixadas pelo mesmo. Assim, esta expõe de forma objetiva a encarnação e a morte expiatória de Jesus de Nazaré, logo, traz a ideia de júbilo, alegria, festa, pois Jesus representa a libertação dos pecados e a vida eterna.     
Os primeiros judeus convertidos ao cristianismo se reuniam em Jersusalém nas catacumbas para estudar e analisar as questões de ordem política, econômica e social do período romano. O cristianismo primitivo se constituía de adeptos oriundos das camadas populares, provindos do judaísmo; estes não se preocupavam com as incoerências da nova crença. A cidade de Antioquia é considerada como primeira comunidade dos convertidos de origem pagã. É nesta mesma cidade que pela primeira vez se utilizará o termo cristão e, a partir daí, se irradiará para o mundo helenístico.
A expansão do cristianismo começa a incomodar os romanos, assim, nos dois primeiros séculos, o cristianismo sofre perseguições por parte do Império Romano. As razões que impulsionaram os romanos em investidas contra os cristãos são de ordens diversas. No aspecto religioso, percebe-se que a repulsa dos pagãos em face aos cristãos está no fato da absolutização da fé cristã, pois esta não tolerava nenhum outro culto religioso, confrontando desta forma com a religião de Roma. No que tange ao aspecto moral, os cristãos não participavam da vida pública romana, pois aqueles se reuniam secretamente nas catacumbas, em comunidades distantes, como Antioquia, para celebrarem seus cultos, despertando suspeitas quanto ao seu comportamento moral.       
   A partir do século II d.C, surgem os primeiros escritos cristãos, denominados “apologéticos”; estes foram escritos na língua grega e não se limitavam em expor apenas as ideias do plano salvítico, como fizeram os primeiros judeus-cristãos, mas se caracterizavam como textos objetivos, de maneira a serem entendidos e interpretados pelos mais cultos e intelectuais do mundo helênico, como forma defender a crença cristão perante as autoridades pagãs. Neste período se destacam também as defesas do Justino 6 ao cristianismo, explicando os valores cristãos como forma de afirmar a moralidade do ser cristão, o que retificaria a ideia do cristianismo como algo puramente especulativo.

“O mais importante, Justino (martirizado por volta de 165), empenhou-se em demonstrar que o cristianismo não desprezava a cultura pagã; fez o elogio da filosofia grega, mas lembrou que ela se inspirava na revelação bíblica. Retomando os argumentos do judaísmo alexandrino, Justino afirmou que Platão e os outros filósofos gregos conheceram a doutrina professada muito tempo antes deles pelo “profeta” Moisés”. (ELIADE, 2011, p. 320)

 O ponto central da teoria apologélitica de Justino consiste em demonstrar que Jesus de Nazaré (Cristo) é o logos feito carne, inferindo que este elemento seria o que os primeiros filósofos buscaram para entender a existência das coisas. Justino designa também o domingo como “primeiro dia” relacionando este com a ressurreição e a criação do mundo.  A teoria de Justino tem como virtude do cristão a temperança, o amor universal, a paciência, o apreço pela verdade, a adoração a Deus como forma de testemunhar a conduta e a ética cristã.

Comenta REALE; ANTISERI 2003

“O homem não é eterno e o corpo perenemente unido à alma; quando essa harmonia se desfaz, a lama abandona o corpo e o homem não existe mais: “Assim, a alma deve deixar de existir e então o espírito de vida separa-se dela: a alma não existe mais, retornando para onde viera.” Desse modo, Justino abre caminho para doutrina da ressurreição”. (REALE; ANTISERI, pg. 409)

Desta feita, segundo Justino, o cristianismo se fundamenta no mundo, neste período, quanto sua racionalidade prática, construindo um arcabouço moral que direcionaria o homem à sua plenitude de vida, isto é, o fazer o bem, este se caracterizaria como uma virtude do cristão. Pode-se inferir que o elemento essencial que perpetua o cristianismo e as demais religiões é justamente a memória, isto pode ser constatado ao lembrar-se de Jesus de Nazaré, fato que constitui o exemplo (arquétipo) de todo cristão. A crença projetou Jesus de Nazaré como o Messias a um universo de estruturas (protótipos), e esta dá força e criatividade à mensagem de Jesus. Contudo, é devido a esta mitologia e simbologia universais que a expressão e linguagem religiosa do cristianismo tornam-se ecumênicas e de fácil acesso para além do seu foco de origem.


1 Eram Livros Sibilinos que tinham um papel central, mas difuso, na história religiosa do povo romano. De acordo com a tradição, estes consistiam em um grupo de oráculos gregos tidos pelos romanos como um de seus mais sagrados textos (CANDIDO, 2008, p. 15)

2    Significa “destruição ou conflito pelo fogo.

3 Pietas é normalmente traduzida como "dever" ou "devoção," e simultaneamente sugere um dever para com as divindades e com a família - particularmente como pai.  (Idem, 2008, p. 27)

4 (ELIADE, 2011, p. 318).

5 Paulo, de procedência da diáspora judia, nasceu em Tarso de Cilicia, onde seu pai era fabricante de selas, ofício este que aprendeu também. Contudo, uma antiga tradição conta que seus antepassados procediam da Galiléia. Porém, possuía o direito hereditário de cidadão romano, cujos privilégios pôde apelar diante do tribunal romano. Em sua cidade, Tarso, Paulo conheceu uma rica manifestação cultural e comercial da vida helenística, principalmente a Koiné, língua que havia se imposto como universal, bem como o aramaico de sua tradição familiar. Apesar de sua convivência com a cultura helênica, foi fiel às suas tradições judaicas, tanto que, pertencia ao grupo legalista dos fariseus. (JEDIN, 1966, p.167.)

6Justino não é de origem judaica. Embora nascido na Samaria, não conhece o hebraico e nem era circunciso. Acredita-se que tenha nascido por volta do ano 100 d. C. e se converteu aos 32 anos de idade ao Cristianismo. (MARQUES, 2006, p. 58)