PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

Luiz Rodolfo Simões Alves (CV)
Universidade de Coimbra

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As Aldeias do Xisto do concelho de Góis: do passado ao presente

“Existe um mundo onde tudo se aproveita: as padieiras das portas e das janelas são de castanho, as lajes de xisto estão nos beirais, por cima das telhas e nas soleiras. Há telhas de canudo e as ferragens das portas são antigas! Dos soutos vêm as castanhas e a sopa de castanha é famosa até hoje. A cabra come-se quando velha e, macerada pelo vinho tinto, torna-se macia e dá sabor à chanfana. Das pequenas hortas vêm grelos frescos que, misturados com a broa e o azeite, chegam a migas deliciosas. Das urzes e com muitas abelhas ainda hoje se faz um excelente mel. O pão faz-se em casa e o seu cheiro perfuma as estreitas ruas. Os cabritos andam serra acima, serra abaixo, e isso faz deles pratos deliciosos quando o tempo próprio chega!
E depois neste mundo, com umas quantas casinhas encavalitadas nas encostas, parecem apenas existir “quartos com vista”! Mas não! Não é verdade! Existem pessoas, em regra com grandes rostos de avó, que partilham toda a sabedoria de um mundo em que tudo é escasso! Esse mundo tem nomes: Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena (concelho de Góis) […]” (Turismo Centro de Portugal; 2007:47/48).

Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena – heranças e sinais de mudança

“O xisto brotava por toda a parte, como grama em jardim abandonado. A rocha negra, com reflexos de chumbo, amarela nas bordas, empinava-se no chão, em camadas compactas, semelhando livros nunca desfolhados. Lascas de lousa cobriam a terra, faziam as paredes das casas, enchumaçavam o corpo dos muros. E até os homens pareciam esculpidos na fraga, tal a rudeza das feições, o escuro dos fatos e da pele curtida do sol…” (Braga, 1955:92, citado por Lourenço, 1996:27).
As Aldeias do Xisto de Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena, integradas num contexto de proximidade e de funcionalidade, fazem parte do concelho de Góis, situadas no setor norte da Serra da Lousã (que alberga a maior concentração de Aldeias do Xisto, com um total de 13) (Figura 63). Localizada no extremo sudoeste da Cordilheira Central Portuguesa, abrangendo os concelhos de Lousã, Castanheira de Pera, Miranda do Corvo, Figueiró dos Vinhos, Penela, Pedrógão Grande e Góis, a Serra da Lousã (denominação, talvez, derivada do nome de rocha ‒ lousa), pertence ao complexo xisto-grauváquico e é atravessada por uma crista de quartzitos que, pela sua maior resistência à erosão, é responsável pelos penedos existentes, com falésias abruptas, como são exemplo disso os Penedos de Góis. A altitude máxima da Serra da Lousã é de 1205 metros no Trevim, local onde “confluem” os concelhos de Lousã, Góis e Castanheira de Pera. “A linha de cumeada principal tem direção E-W e é responsável pela constituição de duas bacias hidrográficas pertencentes ao Rio Zêzere e ao Rio Mondego” (Paul, 2006:104).
Os diferentes materiais geológicos juntamente com diversos processos geotectónicos, são responsáveis pelo tipo de rocha que constitui o complexo litológico da região, de formação sedimentar e metamórfica, que por sua vez constitui o material básico dos vários tipos de solo existentes na região. Impressionantes são também as magníficas formas de pormenor constituídas por vales em garganta, sempre que os afloramentos de quartzito são atravessados por rios, cuja grandiosidade é proporcional à importância dos cursos de água. Ainda sob ponto de vista litológico, destaque ainda para um ou outro filão de rocha básica que atravessam estas aldeias e, em especial, na Aigra Nova e, quase sempre, muito alterados e, por isso, passam facilmente despercebidos, confundindo-se com os xistos que os rodeiam. Na aldeia anteriormente referida é bem visível, em alguns pontos, a disjunção esferoidal, característica de alguns pontos dos filões de rocha básica que, quando está presente, ajuda a identificar.
A Serra da Lousã está incluída na região biogeográfica Mediterrânica e, parte da Serra, está classificada como Sítio da Lista Nacional, de acordo com o Plano Sectorial da Rede Natura 2000, classificada no Grupo 7 (Figura 64).
Analisando a evolução da população residente nestas quatro aldeias, desde 1527 até 2013, são notórios três momentos diferentes. O primeiro período compreendido entre 1527 e 1911 é pautado por um crescimento exponencial do efetivo populacional destes lugares. De facto, é em 1911 que estes lugares atingem os seus máximos populacionais (com exceção da Comareira que apenas atinge o seu máximo em 1940). Mesmo a evolução global das quatro aldeias demonstra que, efetivamente, é 1911 que o conjunto atinge o seu auge demográfico, com uma população total de 160 habitantes. No segundo momento, com um espaçamento temporal compreendido entre 1911 e 1960 há uma estabilização dos efetivos populacionais, embora já com uma tendência de diminuição (com exceção da Pena que a partir de 1940 já começa a perder população de forma acentuada). A terceira fase baliza-se entre 1960 e a atualidade, sendo que, durante estes 53 anos a regressão demográfica é avassaladora e desvastante. De facto, durante este período de tempo o início acréscimo populacional verificou-se de 1981 para 1991 na Aigra Velha, mas não permitiu uma estabilização dos quantitativos demográficos.
O extremo decréscimo populacional que atesta o forte despovoamento que estas aldeias sofrem é ainda mais vincado quando comparamos o número total de habitantes em 1911 e em 2013, passando de 160 para 20 residentes, respetivamente. De facto, analisando a variação da população (Figura 65), por aldeia, entre 1960 e 2013, revela dados extremamente negativos. No período de tempo indicado a Aigra Velha perdeu 100% da sua população, visto que atualmente não tem nenhum residente de forma permanente; a Aigra Nova teve um decréscimo populacional de 90,2%; o efetivo populacional da Comareira regrediu 90% e; por fim, a Pena perdeu 63,2% da sua estrutura demográfica. Por fim, no global, entre 1960 e 2013 as quatro Aldeias do Xisto de Góis tiveram um decréscimo populacional de 81,7%, atestando, de forma inequívoca, o impacto da expressão despovoamento nestes territórios.

Arquitetura rural vernacular

Considerando a arquitetura como o resultado de um conjunto de técnicas de projetar e de edificar o ambiente habitado pelo Ser Humano, a arquitetura popular remete-nos para essa realidade mas sem o cunho científico a ela associada. Assim sendo, a arquitetura popular, é o reflexo dos saberes populares e com uma base cultural muito importante, concebida pela passagem e aperfeiçoamento desses saberes ao longo dos tempos. O resultado da arquitetura popular espelha-se na mestria das técnicas de construção utilizadas, no rigor do saber transmitido pela experiência e numa forte relação de adaptação/”tentativa de controlo” dos elementos naturais dos territórios.
            Em todo o território nacional, as diferentes formas e caraterísticas da arquitetura tradicional espelham a riqueza da mesma, mas também demonstram o “desleixo” e abandono a que muito deste património está votado.   
De facto, “desde o granito e o xisto, até ao adobe e à taipa, passando pelas diferentes soluções arquitetónicas em espaço rural e urbano, é todo um manancial do ponto de vista cultural e patrimonial, o qual é ainda insuficientemente reconhecido e valorizado, sendo quase sempre alvo dos mais diversos atentados, ou simplesmente preterido em detrimento de projetos de gosto mais que duvidoso e sem qualquer enquadramento no espaço e na memória dos locais” (In http://raizes.blogs.sapo.pt/7085.html).
Nas áreas rurais ou nos aglomerados populacionais mais urbanos, nas regiões do litoral ou no interior mais profundo e isolado no país, o Homem soube edificar, com engenho e arte, fruto do saber popular, as suas próprias habitações, construções para albergar o gado e/ou guardar os mantimentos, para conduzir a água desde a nascente até onde era necessária, etc.
“Contudo, o espaço para a arquitetura tradicional deveria ser sempre acautelado, garantido que saberes antigos, como sejam as técnicas de construção, possam ser preservados para o futuro, contribuindo assim para a salvaguarda de um importante objeto do nosso património cultural e para a harmonia dos nossos espaços rurais e urbanos” (In. http://raizes.blogs.sapo.pt/7085.html).
O termo património vernáculo corresponde a manifestações do engenho humano outrora consideradas menores (ou nem sequer consideradas), entre o léxico geral de todos quantos se interessam pela conservação, adquirindo uma importância crescente à medida que a globalização avança, a necessidade de contrapor aos processos de homogeneização cultural a afirmação das identidades e culturas locais progride e se alarga a consciência da importância das técnicas e dos materiais tradicionais de construção na perspetiva do desenvolvimento sustentável.
Importa explicar que o reconhecimento efetivo da importância da arquitetura tradicional iniciou-se em 1964 com a Carta de Veneza, ao aplicar o conceito de monumento histórico quer às grandes criações, quer às realizações “mais modestas” enquanto testemunho vivo das suas tradições seculares, estas seriam mais tarde agregadas no conceito, mais vasto, de bens culturais no qual se englobam quer os bens móveis quer os imóveis. Porém, só na década seguinte é que o valor da arquitetura vernácula se institucionaliza, com a inclusão das aldeias tradicionais, no seu ambiente natural ou construído, no âmbito e conceito abrangentes de património.
Em 1977, no Apelo de Granada sobre a Arquitectura Rural e o Ordenamento do Território, é reconhecida a singularidade do património rural, não só relativa aos valores estéticos mas também ao seu caráter de testemunho de uma sabedoria secular, englobando “todas as construções isoladas ou agrupadas que estejam ligadas às actividades agrícolas, pastoris e florestais, bem como à pesca; apresentem interesse, quer pelo seu valor histórico, arqueológico, artístico, lendário, científico ou social, quer pelo seu caráter típico e pitoresco; e se integrem na paisagem de modo coerente” (Ribeiro, 2010:15).
Alargado o âmbito do conceito de cultura ao conjunto, único e insubstituível, “dos traços distintivos e espirituais, materiais, inteletuais e afetivos que caraterizam uma sociedade e um grupo social e destaca a importância do património imaterial (ou seja, aquele que se inscreve no domínio da intangibilidade), o património vernáculo vê finalmente consagrada, na Carta sobre o Património Construído Vernáculo de 1999, a sua singularidade enquanto expressão fundamental da identidade de uma comunidade, das suas relações com o território e, ao mesmo tempo, expressão da diversidade cultural do mundo, representando o meio tradicional e natural pelo qual as comunidades criam o seu habitat em resultado de um processo evolutivo que inclui, necessariamente, alterações e uma adaptação constante aos constrangimentos sociais e ambientais” (Ribeiro, 2010:15).
A aldeia rural, mais antiga forma de aglomeração e forma social cuja unidade espacial, resulta de uma simbiose profunda entre a paisagem e a obra humana e em torno da qual se constitui a história da sociedade rural, constitui assim um quase prolongamento da paisagem, emanação física mas também simbólica do território a que se vincula e no qual profundamente se enraíza.
Tal caráter está bem patente na forma simples como as populações descrevem o modo como construíam o seu espaço de habitar (espaço esse intimamente ligado aos meios de produção, ou seja, concebido em função da economia agrária), sintetizando, de forma extraordinariamente despojada de artifícios decorativos como a sua própria arquitetura, todos os elementos essenciais configuram a arquitetura vernácula da região da Serra da Lousã, refletindo nessa simplicidade e despojamento a aspereza de um território, ele próprio pobre e agreste, onde os recursos são escassos e difíceis de trabalhar, mas onde se sente o apuro que permitiu ao longo de gerações atingir resultados satisfatórios na resposta aos constrangimentos climáticos.
É curioso notar como se apresentam as habitações na serra, e como o sentido daquele provérbio que diz «o Verão é capa de órfãos» fica bem expresso na escolha do local para a construção das casas.
A habitação serrana, feita de pedra regional (e com inclusão de particularidades locais como o quartzito, com a singularidade de, em alguns casos, as soleiras das portas serem constituídas por blocos que quartzito repletos de Cruziana, o que demonstra bem a importância dos recursos locais para a construção e arquitetura vernácula), que é xistosa, mostra-se, quer no interior, quer no exterior, negra como ela e de aspeto pesado e sombrio.
O telhado, geralmente de duas águas, apresenta-se protegido por grandes lousas, que ao longe dão o aspeto de um estendal negro sob fundo avermelhado.
“As janelas, pouco numerosas e de pequenas dimensões, atestam a abundância de luminosidade e de frio” (Carvalho, 2009:383, citando Espírito Santo, 1954:32).
Mário Braga, por exemplo, na sua obra “Serranos” (1979), chama a esta serra e às suas povoações “castelos de xisto”, erguidos e meio afundados num “mar de serras sobre serras”. A expressão utilizada pelo escritor está relacionada com o facto de as casas se apresentarem como um amontoado, edificadas umas junto às outras, quase sem deixarem entre elas um palmo de terra, ladeando estreitos e tortuosos caminhos (Figura 66). Pequenos logradouros de apoio às atividades agrícolas fazem a separação dos terrenos de cultivo que antecedem a área de floresta e mato do casal; depois alarga-se a vista para o domínio dos antigos baldios serranos (Carvalho, 2009:383).
A simplicidade e a aparente fragilidade das construções explicam-se pela extrema pobreza dos seus habitantes. A utilização dos recursos materiais locais define os traços essenciais da casa serrana. A generosidade da montanha vai pouco além do xisto e do quartzito, embora este último em muito menor quantidade, extraídos em pequenas pedreiras abertas nas suas entranhas. O castanheiro, sobretudo o “portelão” (variedade que melhor resiste às condições climatéricas da montanha) oferecia madeira de excelente qualidade, aproveitada para traves e outras componentes estruturais das coberturas e sobrados, padieiras, portas e janelas. Era cortado no bosque e aplicado com o mínimo de trabalho de transformação. Determinados elementos, como os barrotes, eram aparados em duas faces, de forma manual ou mecânica (através dos antigos mecanismos de serrar, impulsionados por energia hidráulica), para receber tábuas (sobrados), ripas ou “falheiras” (telhado) (Carvalho, 2009:385).
A telha de canudo (também designada por telha serrana) domina a cobertura dos edifícios, numa fase em que praticamente desapareceram os telhados de lousa ou de colmo. Com as casas novas do primeiro terço de Novecentos, introduziu-se a telha Marselha, mais eficaz no resguardo das coberturas, e com ela tornou-se desnecessário utilizar lousas para proteger os telhados dos ventos que na montanha sopram vigorosos (Figura 67).
As casas serranas (Figura 68) apresentam, normalmente, dois pisos, estrutura que acolhe as suas funções primárias: rés-do-chão, com uma ou duas lojas para o gado e arrumo de utensílios agrícolas; e, primeiro andar, composto por uma sala ampla com lareira baixa, onde vivia toda a família (Figura 69). Mais tarde, em alguns lugares, surgem divisões para a cozinha e o quarto de dormir, individualizadas através de tábuas de pinho dispostas de forma vertical. A presença de grandes blocos de xisto, nos quais os edifícios são ancorados e adoçados, reduz, de forma significativa, a área do piso inferior. O xisto é aparelhado em panos de parede e travado nas aberturas e na transição entre os alçados com pedras mais lineares e de maior dimensão (Carvalho, 2009:386).
O interior das habitações (tal como o exterior) conservava a pedra à vista, envolvida numa matriz argilosa. Nos currais, palheiros e arrecadações, por norma, a pedra surge solta, sobreposta, sem qualquer elemento de ligação. Nos primeiros lustros do século XX, com a aplicação dos capitais amealhados através da (e)migração, aparecem os rebocos interiores e exteriores, que inicialmente eram feitos à base de areia e cal. Posteriormente, com a utilização regular de cimento, a matriz ganha nova expressão. Nas divisórias interiores surgem os tabiques, estruturados com tábuas e fasquias de pinho que recebem a argamassa de cal e areia, e numa fase posterior (meados do século) é utilizado o tijolo.
Os sobrados das habitações eram em madeira de pinho (raras vezes de castanho), serrada manualmente, e as coberturas assentavam sobre ripado de madeira, sem forro interior, por onde escoava o fumo das lareiras e dos fornos. As chaminés praticamente não existiam, salvo uma ou outra pequena estrutura triangular de telha utilizada para auxiliar a evacuação do fumo.
O beirado das casas era atapetado com lousas, uma bordadura linear e discreta, mas muito eficaz, para evitar a infiltração das águas pluviais nas paredes (causa primária da sua ruína).
A moldura das janelas combina o castanho na verga, blocos de xisto nas ombreiras (e por vezes também na verga) e uma laje xistosa na soleira. Nos anos 20, do século passado, eram raras as janelas com vidros, note-se que, por exemplo, na aldeia da Aigra Nova foi possível identificar, já no corrente ano civil, o primeiro vidro de uma janela numa das habitações, cuja sua datação é estimada em cerca de 80 anos. Usavam-se de forma quase exclusiva as portas de madeira, e os panos de janela eram de pequenas dimensões, resguardando o interior dos ventos sibilantes do inverno. Como o essencial da atividade dos serranos tinha como palco privilegiado o exterior e o período diurno, a casa também não carecia de muita luz (apesar da tonalidade escura do xisto, acentuada pela acumulação de resíduos derivados da combustão da madeira utilizada na alimentação das lareiras e fornalhas). A iluminação era feita com lamparinas de azeite e candeeiros de petróleo, sendo que, a energia elétrica da rede pública já chegou relativamente tarde.
Os materiais utilizados nas construções típicas destes lugares refletem, de forma inequívoca, a litologia da região: o xisto, em maior abundância e, com menor importância sob ponto de vista quantitativo, o quartzito, sendo que, estas condições naturais fornecidas pela envolvente litológica e geomorfológica, associadas à proximidade geográfica dos materiais disponíveis, foram condição necessária para o padrão da casa típica destes lugares.