PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

Luiz Rodolfo Simões Alves (CV)
Universidade de Coimbra

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Alterações dos modos de vida do quotidiano 

"Não podem fazer ideia da vida que eles levam, ali. Uma vida rural simples e dura. Levantam-se cedo porque têm muito que fazer e deitam-se cedo porque têm muito pouco que pensar" (Oscar Wilde, sem data).

Relativamente aos modos de vida das populações destas aldeias, em tempos, passavam todo o dia a trabalhar a terra, de sol a sol. De facto, “a população, acostumada ao viver simples, pedia apenas às terras que produzissem e apelava aos temporais que não destruíssem a sua obra de cultura, difícil, exaustiva e sempre contingente. Os “castelos de xisto”, rodeados de minúsculos tabuleiros de aproveitamento agrícola, são a expressão visível da tenacidade e da astúcia do homem numa luta impiedosa pela sobrevivência, prolongada ao longo de várias gerações que imprimiram aos territórios serranos as mais variadas marcas e influências, transformando-os em ambientes vivos e intensamente vividos, até à exaustão das suas forças, quando a derrocada do frágil equilíbrio agro-silvo-pastoril arrastou o (inevitável) despovoamento da montanha e o abandono de várias aldeias” (Carvalho, 2009: 391).  
A importância do trabalho e a sua dureza no quotidiano das populações marca, também, o seu reflexo na toponímia que designava algumas das aldeias num passado não muito distante. A Aigra Nova foi, em outros tempos, denominada Agra Dura. O árduo trabalho que as pessoas desenvolviam por nos cultivos e nas áreas de pastagem, associado a vida dura, quase despojada de lazeres, terá estado na origem de um dos topónimos atribuídos a esta aldeia. Era, sem dúvida, extremamente difícil viver nesta(s) aldeia(s). As condições de vida, suficientes apenas para sobreviver, não eram as melhores e, como recordam os habitantes, a fartura e variedade de alimentos nem sempre existiu.
Seguindo a imagem da aldeia, e do seu conceito e principais caraterísticas, retratada por Orlando Ribeiro (1991), realce para a entreajuda existente entre “as gentes” da aldeia (uma das grandes mais-valias destes locais era, de facto, o espírito de comunidade e de, quase, vida comum, de interajuda e de proximidade e que, atualmente, é praticamente uma sombra do passado, tendo mesmo morrido em muitas aldeias com a partida dos mais antigos), para a utilização comunitária do forno bem como do “boi do povo”, e de outros elementos como teremos oportunidade de constatar mais à frente. Voltando um pouco atrás, e abordando a temática da entreajuda das pessoas das várias aldeias, importa fazer referência concreta relacionada com a área aqui em estudo. Quando, por exemplo, as gentes da Aigra Velha necessitavam de auxílio em alguma lavoura ou prática semelhante estendiam um lençol branco numa corda na parte de trás da aldeia votada para os Povorais (que dista, em linha reta, de cerca de 4/5 km, da Aigra Velha, com um vale a separá-las) para que os habitantes desta última pudessem saber que era necessária ajuda nas tarefas agrícolas e, portanto, aprontavam-se em vir prestar o auxílio necessário, sendo que, esta forma de comunicação era recíproca.  
Também as práticas festivas locais, ou os tradicionais “bailaricos” (como lhes chamam nestas aldeias), e religiosas demonstravam que as aldeias, da área em estudo, formavam uma rede bastante coesa, sendo que os seus habitantes raras vezes se deslocavam a outras festividades que não as das aldeias vizinhas, exceção feita na deslocação à festa do Santo António da Neve, localizado a sudeste do Trevim. Dentro desta rede de influência, no que diz respeito às festividades, a aldeia dos Povorais era o principal ponto de encontro e a mais frequentada. Embora sendo bastante mais distante do que o “núcleo central” das aldeias, integradas nas Aldeias do Xisto, era a aldeia para onde as crianças se deslocavam para ir à escola, podendo ser esta uma das explicações para que se pudesse considerar esta aldeia como um “pólo atrativo” por via de um serviço, neste caso relacionado com a educação. Inseridos ainda nas festividades ou nos momentos de convívio particularmente intensos e, de certa forma, importantes para estes povos da serra, destaque para o Entrudo e para as desfolhadas do milho, nas eiras, acompanhadas sempre de muitas cantigas soltas e desgarradas.
Também no caso das festividades estava bem presente o conceito de comunidade e de entreajuda. Por exemplo, para que na aldeia da Aigra Nova pudesse haver um dos designados “bailaricos” era necessário que alguns dos seus habitantes se deslocassem à aldeia do Franco de Cima (já no concelho da Lousã), para prestar um ou mais dias de serviço ao concertista lá residente para que este se deslocasse, posteriormente, à Aigra Nova (na qual nenhum dos seus habitantes era dotado da arte de “tocador de concertina”, como por aqui lhes chamam) para que, então, pudesse haver música no tão vivido e intenso baile.
De facto, como temos tido oportunidade de constatar, a aldeia não define apenas a ocupação física e análise quantitativa num plano material. A aldeia define também uma visão imaterial, onde a sua perspetiva social e a vivência em comunidade definem várias outras formas de olhar a aldeia. Uma certa coerência no que diz respeito ao sistema de construção das habitações; as várias formas de exploração do solo e dos recursos; as relações de solidariedade intensas, próprias de um ambiente familiar onde se apresentam formas bastante interessantes de sociedades bastante organizadas refletem essa mesma visão imaterial e que concernem à aldeia uma vivência diferente e muito caraterística.  
Existem no seio destas aldeias, espaços considerados privados, outros coletivos, atuando ambos enquanto palcos sociais. Na falta de igrejas, capelas, tabernas, entre outros, surgem alguns espaços de substituição, a exemplo de largos como a Quintã, na Aigra Nova, espaço de reunião e decisão, estritamente masculino, estrategicamente localizado no topo da povoação. Ali os homens da aldeia trocavam impressões sobre os rendimentos e dificuldades do quotidiano, enveredando, também, esforços para a aquisição de consensos sobre atividades coletivas, nomeadamente no que respeitasse ao rebanho comunitário, ao sistema rotativo das regas, entre outros.
O Largo dos Castanheiros, situada à entrada da Aigra Nova, funcionava como espaço de animação local da população. Atualmente não revela importância ao nível estrito da povoação, mas funciona como cenário de encontros de confraternização entre a generalidade das localidades focadas. A escolha desse sítio deve-se principalmente a uma localização centralizada da aldeia face às restantes. Na Aigra Velha podemos visualizar um pátio comunitário partilhado igualmente por quatro casas. Outra situação notória de partilha seriam os moinhos de rodízio e fornos, propriedades comuns a várias casas.
Aqui a relação do espaço e a significação da comunidade simbolizam a unidade de vizinhança que organiza, comanda, rege a vida individual e é de acordo com esta concetualização de espaço que se estabelecem as redes sociais (Santos, 2001).  
Abordando de forma breve outras estruturas que, embora algumas não sejam propriamente parte integrante da habitação, são “figuras” importantes quer no contexto das técnicas de construção (e do próprio património construído) quer para a compreensão do património imaterial destes territórios e, de certa forma, dos modos de vida das populações.
Assim sendo, destaque para algumas estruturas, tais como: o caniço, estrado situado por cima da fogueira, que serve para secar as castanhas (Figura 70); forno comunitário, importante na gestão de recursos adequando-os às necessidades das populações (note-se que estas populações se alimentavam, essencialmente, com castanhas, utilizadas como o substituto da batata, sendo que esta entra na alimentação base destas populações mais tarde; hortaliça; e, um dos principais alimentos, o pão de milho) (Figura 71); o alambique, utilizado para fabricar vários tipos de aguardente (sendo a mais fabricada nestas aldeias a aguardente de mel); o capril (Figura 72); as queijeiras (Figura 73), utilizadas para curar os queijos de cabra; as eiras (Figura 74); várias alminhas (Figura 75); moinhos (Figura 76); as salgadeiras, utilizadas para conservar a carne (essencialmente de suíno), entre outras.
Atualmente, no que concerne ao quotidiano destas populações, os modos de vida dos habitantes, nos padrões de vivência, são praticamente os mesmos, embora com algumas diferenças: a intensidade do trabalho da terra, hoje muito menor, sendo “apenas” cultivado o fundamental para autoconsumo; a criação de gado, e respetiva venda, é constituída por uma ínfima parte do número total de cabeças de gado que estas aldeias já tiveram (em tempos chegaram às quinhentas cabeças, hoje, raramente passam das cinquenta), sendo a pastorícia encarada, atualmente, como um “entretém”, como frequentemente designam, ou seja, como uma forma de ocupação do tempo, embora seja certo que o “bichinho” do trabalho faz parte da maneira de ser das pessoas destas aldeias; participação em outro tipo de atividades, como o contacto com turistas e a colaboração com associações de desenvolvimento local através de demonstrações do saber de algumas técnicas tradicionais em várias atividades, como a apicultura, por exemplo, fruto da inserção destas aldeias na Rede das Aldeias do Xisto; melhoria substancial dos níveis de qualidade de vida e consequente reflexo no seu quotidiano; períodos, mais ou menos longos, de convívio entre habitantes e, entre estes e turistas (sempre curiosos por conversar com os “antigos” ou os “guardadores da serra”, como por vezes os designam). Ou seja, a grande alteração nos padrões de vivência do quotidiano destas populações é, essencialmente, a intensidade (ou a sua diminuição) da forma como vivem os trabalhos rurais, com maior “tranquilidade” e menos azáfama (mas não os descurando), não esquecendo que contribui também para esse fator a média, relativamente elevada, das idades dos habitantes destes lugares.