PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

PROCESSOS DE MUDANÇA, TURISMO E DESENVOLVIMENTO RURAL: AS ALDEIAS DO XISTO DO CONCELHO DE GÓIS E O PAPEL DA LOUSITÂNEA

Luiz Rodolfo Simões Alves (CV)
Universidade de Coimbra

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Aigra Velha

A Aigra Velha está implantada numa cumeada da serra, a 770 metros de altitude (a Aldeia do Xisto que se encontra a maior altitude), sendo circundada por alguns terrenos agrícolas e uma vasta área de pastoreio. Esta aldeia avista a Serra da Estrela e vê, a este, elevarem-se os imponentes Penedos de Góis (Figura 87).
O conjunto, sendo pequeno, tem uma malha urbana complexa, em virtude das relações familiares e comunitárias que se estabeleceram entre os proprietários das diferentes construções (Figura 88 e Figura 89). O edificado possui, apenas, o nível térreo e organizou-se num arranjo defensivo contra as condições muito específicas do micro clima local, os intrusos e os animais selvagens (lobos), permitindo comunicação e circulação entre os diferentes espaços, mas mantendo a privacidade de cada família. O material de construção predominante é o xisto, acompanhado por alguns, escassos, elementos de quartzito. As padierias das portas são, em geral, de madeira de carvalho ou castanho. (A. Carvalho; 2013).
Ainda no que concerne à estrutura urbana da aldeia, a Aigra Velha apresenta um modelo de povoamento fechado ao exterior. Na maioria das aldeias verifica-se que as fachadas principais das habitações se encontram defronte entre si, sistema que carateriza e obriga à sociabilidade entre vizinhos, tornando menos recetivo o sentimento de retenção face ao mundo exterior.
Esta aldeia suscita maior interesse ao nível da organização e disposição do aglomerado, sobretudo em termos etnográficos, quer pelo critério estabelecido na sua edificação, quer por deter certos particularismos culturais, ausentes nas restantes aldeias e, ainda, por manter uma imagem etnográfica global menos adulterada do que qualquer outra aldeia mencionada (Santos, 2002).
Pode-se dizer que a Aigra Velha foi construída de uma forma fechada ao exterior, estando assim a população atenta à defesa face aos animais perigosos, como os lobos temidos pela comunidade de pastores, animal esse que, em caso de escassez de presas, atacava nomeadamente os cães, guardadores de rebanhos. Esta disposição teria servido ainda de proteção face a intrusos, ladrões e em jeito de carga simbólica, como sinal de pouca recetividade a estranhos. A ideia de uma aldeia autossuficiente e independente de intervenção alheia transparecia para o exterior através deste tipo de arquitetura.
Para além dos equipamentos anteriormente referidos, esta aldeia é única não só devido à sua implantação concêntrica, com um estreito arruamento rochoso, a meio, que separa a área das habitações a sul da área dos currais a norte, como pelo facto de todas as habitações existentes terem uma porta interior que permite a comunicação entre vizinhos.
Esta forma de implantação, com as aberturas praticamente voltadas para a rua, para além de protegerem o casario das fortíssimas nortadas, permitiria a segurança da aldeia contra intrusos como animais ou mesmo salteadores, uma vez que permitia o encerramento do arruamento nos seus topos (Figura 90). Outro pormenor interessante é o facto de algumas casas apresentarem paredes meãs falsas, que permitem em ocasiões necessárias o esconder dos produtos agrícolas.
Em relação à etimologia da toponímia desta aldeia, como já referimos no caso anterior Aigra é um topónimo frequente em Portugal, com origem no latim ager que evoluiu para agra (como surge na cartografia oficial de 1886 ‒ Agra Velha) que significa “campo” ou “quinta”.
No “Cadastro da População do Reino (1527)” consta no termo da Villa de Goys a existência da então denominada hegra cemejra, onde vivia um morador. O nome de Aigra Velha terá surgido após uma designação como aigra cimeira respeitante a quinta ou a um novo campo de cultivo que foi instalado em altitude superior, quando comparado com a existência de outra aigra (Aigra Nova).
Sem população residente permanente, desde fevereiro de 2013, a aldeia acolhe de forma periódica e relativamente constante (com uma frequência de 3 ou 4 dias por semana) um habitante, do sexo feminino.
No que concerne ao edificado, esta aldeia, tem um universo de 33 imóveis, num património construído com caraterísticas tipicamente rurais, baseados em materiais e métodos de construção tradicionais. Em termos de pisos que compõem os edifícios, com exceção dos espaços destinados a garagem, anexos, arrecadações, telheiros, fornos e eira, bem como dos edifícios em ruínas, todo o edificado apresenta, na sua grande maioria, um piso destinado à função de habitação.
Na Aigra Velha predomina a utilização/função (Anexo X) destinada a habitação e a estruturas dedicadas ao acolhimento de gado e da sua alimentação (currais e palheiros), cada uma das tipologias com 12 imóveis, somando um total de 72,7% dos usos dos imóveis da aldeia. Os espaços ocupados por telheiros/alpendres representam cerca de 9% do total construído (com 3 imóveis). Por outro lado, os dois alojamentos coletivos e a tipologia forno/eira correspondem, cada uma delas, a cerca de 6% dos usos dados aos imóveis (com dois edificados cada). Por fim, o Núcleo do Forno e Alambique da Família Claro (integrante do Ecomuseu “Tradições do Xisto”) (Figura 91) ocupa uma estrutura na aldeia, correspondendo a 3% da utilização/função dos imóveis, tal como se sucede com as infraestruturas, neste caso pela existência de um depósito de água representando, também, 3% do património construído da Aigra Velha.  
Neste aglomerado rural caraterizado, com uma estrutura de povoamento muito débil e praticamente não existente (fruto da inexistência de habitantes permanentes), a classificação das habitações quanto ao tipo de ocupação (Anexo XI) revela que predominam os edifícios devolutos (57,14%, correspondentes a um total de 8 edifícios), patenteando o forte despovoamento que marca a Aigra Velha; destacando-se, também, as ocupações periódicas (42,86%, com 6 habitações), resultado do número significativo de pessoas que, habitualmente, costumam passar os fins-de-semana e períodos de férias (alguns com as suas raízes genealógicas fixadas na aldeias mas, a grande maioria, sem vínculo à aldeia).
O estado de conservação do edificado (Anexo XII) é na generalidade bom havendo, também, um número bastante considerável de edifícios em ruína (Figura 91 e Figura 92). Assim sendo, 54,55% do edificado está em bom estado de conservação, 33,33% encontra-se em ruínas e, por fim, 12,12% do edificado da Aigra Velha encontra-se em razoável estado de conservação.
Dentro do grupo dos edifícios em mau estado são, na grande maioria, currais e antigas construções outrora destinadas a habitação. Os imóveis em bom estado de conservação correspondem aos que, até há pouco tempo eram habitados, aos alojamentos coletivos e às habitações periódicas, em que os proprietários foram recuperando e mantendo a integridade dos imóveis. Analisando os dados quanto ao estado de conservação dos imóveis na Aigra Velha antes da intervenção do Programa das Aldeias do Xisto (mediante a informação que consta nos Planos de Aldeia) podemos verificar que as alterações foram muito significativas. Antes da intervenção do Programa não havia nenhum imóvel em bom estado de conservação. Apenas 3% dos edifícios (duas habitações) se encontravam em razoável estado de conservação (correspondentes às que eram habitadas à data de 2002). Por outro lado, 21% dos edifícios estavam em ruína e, por fim, 26% do edificado tinha o seu estado de conservação classificado como mau.
A leitura das intervenções realizadas com o Programa das Aldeias do Xisto permite constatar que o número de edificações intervencionadas pelo Programa é muito menor do que em comparação com as que não foram intervencionadas (Anexo XIII). Assim, apenas 9 edificações (27,27% do edificado da Aigra Velha) foram alvo de intervenção pelo Programa. Por outro lado (Figura 94), 72,73% dos imóveis (o correspondente a 24 construções) não foram alvo de qualquer tipo de intervenção.
Numa outra vertente, tentámos perceber a origem dos proprietários dos imóveis da aldeia em análise (Anexo XIV). Assim, constatamos que a grande maioria, 84,38% dos imóveis da Aigra Velha são propriedade de autóctones, ou seja, de pessoas que têm as suas raízes na aldeia. Por outro lado, os alóctones (pessoas sem qualquer vínculo familiar ou genealógico a este lugar) representam a restante percentagem, com uma representatividade de cerca de 15,6% do total dos proprietários (1 pessoa), oriunda do concelho da Lousã.
Por fim, analisando se a propriedade dos imóveis sofreu alterações desde de 2002 (data do iníco das intervenções nas Aldeias do Xisto do concelho de Góis), constatamos que o edificado da Aigra Velha não teve qualquer mudança de propriedade (Anexo XV).
Antes da intervenção do Programa das Aldeias do Xisto, os arruamentos da aldeia da Aigra Velha encontravam-se, na sua maioria, em mau estado, quer no interior do povoado quer nos acessos à aldeia. As estradas de acesso à Aigra Velha encontravam-se em terra batida e, junto ao aglomerado, o pavimento era em rocha, irregular. Com a intervenção realizada no decurso do Programa os arruamentos passaram a ser revestidos por calçada de granito, contrariando a opção que seria mais adequada e que foi aplicada em algumas Aldeias do Xisto de outros Municípios: xisto ao cutelo. Os acessos à aldeia foram melhorados, nomeadamente a ligação até à Pena com pavimentação da estrada, em alcatrão (até então era em terra batida).
A nível das infraestruturas, a equipa que trabalhou no terreno considerou que estas marcavam os espaços da aldeia de forma negativa. Assim consideravam que a Aigra Velha, aldeia de cumeada, era marcada pela falta de sensibilidade que pautou a colocação de algumas infraestruturas, criando uma imagem pouco harmoniosa (de modo análogo do que já foi enunciado no caso da Aigra Nova). Por outro lado, identificaram, ainda, que a aldeia sofria de uma grave carência de algumas infraestruturas, daí a preocupação de dotarem a aldeia, para além de mais infraestruturas de apoio às necessidades das populações (de mais conforto e exigência), acompanhando-as de algum cuidado na sua implementação.
Nos Planos de Aldeia constavam, também, propostas de intervenção para cada um dos lugares. Assim, para a Aigra Velha, pretendia-se recuperar, salvaguardar e “perpetuar” a vida de uma comunidade agrícola, pretendendo-se recuperar os equipamentos existentes, nomeadamente o forno a lenha e o alambique comunitário, o tanque de reserva estratégica de água, as arrecadações de alfaias agrícolas e os currais existentes, entre outros, de forma a transformá-la num espaço museológico vivo – o designado “Ecomuseu Agrícola”. A visita à idealizada “aldeia agrícola” teria um objetivo em termos pedagógicos (contacto dos visitantes com a realidade da atividade agrícola e pastoril), mas, também, uma outra preocupação orientada para a componente comercial, com a disponibilização de produtos locais.
Desta ideia, apenas vingou a recuperação do forno e alambique que, atualmente, constituem o Núcleo do Forno e Alambique da família Claro, integrado no Ecomuseu “Tradições do Xisto”, sediado na Aigra Nova.
Uma outra proposta consagrava a recuperação do Largo da Relva, antiga eira, situada à entrada da aldeia, representava uma estrutura circular, orgânica, com pavimento em terra batida. A proposta de intervenção deste largo, considerado como átrio de receção da aldeia, assentou na introdução de uma bancada em toros de madeira, dando corpo a um pequeno auditório ao ar livre, servindo de palco para festividades tradicionais que ali se poderiam vir a realizar (lembrando a descamisada do milho, por exemplo). Com uma área bruta de intervenção de 30 m2, a recuperação deste largo tinha um custo estimado de 2.300 euros.
Já no que concerne às infraestruturas, nomeadamente no que diz respeito à rede de distribuição elétrica, iluminação pública e telefónica, rede de abastecimento público de água, instalação de rede de drenagem e tratamento de águas residuais, instalação de rede de águas residuais de águas pluviais, bocas de incêndio, e restante mobiliário urbano (que à semelhança do que sucedeu nas restantes Aldeias incluiu fontenários, floreiras e papeleira, resguardos para contentores do lixo, e bancos) as intervenções propostas foram todas realizadas, sendo a sua implementação visível em toda a aldeia.
A proposta efetuada pelo Gabinete Técnico Local, que teve a seu cargo a preparação e implantação do Programa das Aldeias do Xisto, previa intervencionar um total de 19 imóveis: todos de grau 1 e 2.
Em resumo, para a Aldeia do Xisto de Aigra Velha, o Gabinete Técnico Local definiu as seguintes intervenções: imóveis particulares (arranjo de fachadas; arranjo de coberturas); imóveis públicos (instalação do “Ecomuseu Rural”); espaços públicos (requalificação do Largo da Relva; regularização do pavimento rochoso de arruamentos; colocação de placas toponímicas (ruas e largos); colocação de placas toponímicas (nome da aldeia); infraestruturas (melhoria da iluminação pública e reformulação da rede de distribuição elétrica; reformulação da rede telefónica, melhoria da rede de abastecimento de água; instalação de drenagem e tratamentos de águas residuais; instalação da rede de drenagem de águas pluviais; instalação de três bocas de incêndio com kit de mangueira extensível).
O Programa de Aldeia definido para a Aigra Velha apresentava custos totais previstos cifrados em 251.554,86 euros. Do total previsto, 125.374.87 euros estavam destinados para as invenções a realizar nos 19 imóveis particulares que se previa intervencionar, correspondendo 84.810,54 euros para a reparação de fachadas e 68.419,94 euros para a recuperação de coberturas. No referido plano previa-se, ainda, um custo total de 16.180 euros para intervenções a realizar em espaços públicos.
As intervenções preconizadas na Aigra Velha revelam um investimento médio de 34.212,8 mil euros por habitante, sendo que, esta aldeia teve uma intervenção profunda com a implementação do Programa das Aldeias do Xisto, num investimento global que rondou os 171.063,81 mil euros, correspondentes a 12,38% do total investido no concelho de Góis e 1,28% do investimento total executado nas vinte e quatro Aldeias do Xisto.
Relativamente à distribuição do investimento executado, segundo as tipologias/categorias de intervenção, na Aigra Velha destacam-se as intervenções realizadas nos espaços públicos e infraestruturas (65,12%, equivalente a 111.390,73 mil euros) (Figura 95), e em imóveis particulares com mais de 59.670 mil euros (34,88% do total).
Nesta aldeia, podemos encontrar e visitar o Núcleo do Forno e Alambique da Família Claro, Núcleo do Ecomuseu “Tradições do Xisto” e, ainda, duas unidades de turismo em espaço rural, um castanheiro (Castanea sativa) que, pela sua idade secular merece aqui destaque (Figura 96).
Embora as intervenções realizadas nas edificações situadas no plano altimétrico inferior da aldeia não tenham sido efetuadas com recursos às alocações previstas e disponíveis através do Programa das Aldeias do Xisto torna-se fundamental relevar e salientar todo um investimento privado que tem sido levado a cabo neste setor da aldeia (fora da malha urbana primitiva da Aigra Velha). Além de toda a parte referente à recuperação dos imóveis afetos a esta área foi feita a reconversão de dois deles para a criação de uma unidade de turismo em espaço rural (dividida em duas casas distintas), de um telheiro com um forno a lenha, um edifício destinado à habitação e um outro telheiro que serve de espaço para estacionar viaturas (Figura 97 e Figura 98). Sob ponto de vista da recuperação do património construído trata-se de um exemplo que merece destaque, não só pela qualidade das intervenções mas, também, por se tratar de um investimento privado o que, para lugares como estes, é sempre uma mais-valia enorme que poderá, no futuro, servir de exemplo e estímulo para outros agentes privados que, assim, invistam nas Aldeias do Xisto, dando continuidade ao Projeto já iniciado há mais de uma década.