O PROCESSO DE ENTRADA E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR EM MACAPÁ

O PROCESSO DE ENTRADA E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR EM MACAPÁ

Christian De Lima Cardoso
Tatiani Da Silva Cardoso
Yuri Yanic
Roberto Carlos Amanajas Pena
(CV)

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CAPITULO 1

TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA INCLUSÃO SOCIAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

1.1 DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XX

A historiografia nos mostra como as sociedades enfrentam dificuldades em lidar com as diferenças. A ameaça à normalidade faz com que a exclusão predomine, distinguindo os mais aptos à integração ao processo produtivo. Podemos constatar isto no surgimento de manicômios, prisões e conventos que, na maioria das vezes tinham como função não somente dar atendimento humanitário às pessoas com deficiência, mas de proteger a sociedade da ameaça representada por pessoas que não se adaptavam às regras estabelecidas.
Uma análise de como o ser humano constrói sua existência através da busca da satisfação de suas necessidades básicas (alimentação, vestuário, moradia, transporte, educação e etc.) é capaz de nos dar uma compreensão da construção cultural que possibilitou o processo de exclusão das pessoas com deficiência, desde as sociedades primitivas até as sociedades capitalistas, segundo afirma BIANCHETTI:

Como o atendimento das necessidades estava totalmente na dependência do que a natureza lhes proporcionava, como, por exemplo, a caça, pesca, as cavernas para abrigar-se etc., uma das características básicas destes povos era o nomadismo. Ora, a natureza é cíclica, está totalmente fora do controle dos homens e isso vai exigir deles deslocamentos constantes, razão pela qual é indispensável que cada um se baste por si e ainda colabore com o grupo. É evidente que alguém, portador de alguma deficiência natural ou impingida na luta pela sobrevivência, acabe se tornando um empecilho, um peso morto, fato que o leva a ser relegado, abandonado e sem que isso cause os chamados sentimentos de culpa. (1995, p. 08-09).

Na Antiguidade e entre alguns povos primitivos, era comum a prática de extermínio, pois pessoas que apresentavam qualquer tipo de necessidade especial eram consideradas como um empecilho para a sobrevivência do grupo. Na literatura greco-romana e também nos registros bíblicos, as necessidades especiais eram interpretadas como fenômenos metafísicos1 . Na Bíblia, as pessoas em tais condições, em quase todos os casos, eram ilustradas como mendigos, abandonados pela família, à margem da sociedade. Gaio (2004) relata que na Grécia, aquilo que
fugia ao padrão de beleza lá estabelecido e que influenciou quase todo o ocidente, era considerado feio, repudiado, deficiente.
Na Roma Antiga, a Lei das Doze Tábuas2 , permitia que os pais matassem seus filhos defeituosos; de tal forma, ocorria também em Esparta, onde os recém-nascidos que apresentavam desvios em relação à normalidade eram lançados do abismo Taigeto3 . O povo hebreu via como uma punição divina a deficiência física ou sensorial, por isso impedia também que qualquer pessoa nesta condição realizasse a liderança nos serviços religiosos. Nos casos menos graves, embora reveladores da significação estigmatizada da pessoa com deficiência, os loucos, mancos serviam as cortes como bobos para entreter a nobreza.
Com o domínio do Cristianismo, na Idade Média, promovido com a ascensão da Igreja Católica ao poder, a visão a cerca das pessoas com deficiência começa a mudar. Se antes  tais pessoas eram negadas a humanidade, agora elas passaram a ser vistas como seres humanos. Sob a ótica da sociedade de então, o deficiente deixou de ser concebido como “coisa” para assumir a condição de “pessoa”, fato que se contrapôs à prática do extermínio, no entanto, continuou à margem da sociedade, sendo visto como necessitado da caridade das outras pessoas, e de libertação das influências demoníacas que lhe acarretaram as deficiências, permanecendo, portanto, as práticas paternalistas que evidenciavam sua condição e que resultavam de uma visão equivocada, segundo a qual as pessoas com deficiência são incapazes por si próprias.

A própria religião, com toda sua força cultural, ao colocar o homem como ‘imagem e semelhança de Deus’, ser perfeito, inculcava a idéia da condição humana como incluindo perfeição física e mental. E não sendo “parecidos com Deus”, os portadores de deficiências (ou imperfeitos) eram postos à margem da condição humana. MAZZOTTA (2005, p.16).

A origem desta concepção, predominante na Idade Média, pode ser explicada através de estudos dos evangelhos, nos quais a imagem construída das pessoas com deficiência estava sempre associada à idéia de pecado, como é possível verificar na passagem bíblica (Lucas 11:14)4 : “E estava ele expulsando um demônio, o qual era mudo. E aconteceu que, saindo o demônio, o mudo falou; e maravilhou-se a multidão”. Assim, a perfeição do ser está intimamente relacionada à interação deste com o ser absoluto (Deus) e é a partir deste contato com ele que o ser humano transcende em bondade e perfeição, que na visão tomista da metafísica, Deus não é apenas o Ser supremo, mas o Demiurgo5 que é conhecido a partir das experiências a posteriore. Logo, Deus é a causa perfeita do ser como tal.

Em Deus reside a plenitude da perfeição do ser e, através desta, a plenitude de qualquer outra perfeição. Ele, causa primeira de todo ente, comunica às suas criaturas verdades, realidade, bondade, beleza e valor. BOLDA (2006, p.95).

Nos séculos XV e XVI, auge do Renascimento, a Europa experimenta uma renovação cultural que irá trazer mudanças na concepção de homem, suplantando gradativamente a cultura teocêntrica6 , dogmática e mística imposta pela Igreja Católica, por uma cultura baseada no racionalismo, no experimentalismo e em estudos relativos aos assuntos humanos, concebendo o homem como centro de sua história. Com seu caráter humanista, racionalista e naturalista, o período renascentista significou um marco na conquista dos direitos e deveres das pessoas com deficiência, pois se configura o reconhecimento do valor humano através de ações pautadas em políticas assistencialistas e paternalistas. Desta forma, a partir de 1554, surgiram leis de arrecadação, com fins beneficentes para auxiliar os pobres, idosos e deficientes.
Assim, nestes espaços (orfanatos, manicômios, prisões, abrigos e hospitais) eram internados, indiscriminadamente, velhos, criminosos, pobres, deficientes mentais, sem qualquer tipo de tratamento especializado, o que passará a ser implantado entre o final do século XVIII e início do século XIX, configurando o germe da Educação Especial. O valor dado ao conhecimento experimental possibilitou que fossem realizadas pesquisas em busca de cura de algumas doenças, logo:

A fatalidade hereditária ou congênita assume o lugar da danação divina, para efeito de prognóstico. A ineducabilidade ou irrecuperabilidade do idiota é o novo estigma, que vem substituir o sentido expiatório e propiciatório que a deficiência recebera durante as negras décadas que antecederam a medicina, também supersticiosa. O médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele salva, ele condena. PESSOTTI (1984, p. 68).

O avanço dos estudos sobre o corpo humano, aos poucos, contribuiria para a concepção do corpo como uma máquina, assim, sob a influência do mecanicismo de Isaac Newton, o coração será chamado de bomba, o rim de filtro, o pulmão de fole. No entanto, se na Idade Média, a deficiência estava associada ao pecado, agora seria associada à disfunção de uma peça, um defeito. A Idade Moderna desencadeia em uma nova maneira de conceber a pessoa com deficiência. Nos séculos seguintes (XVII e XVIII), houve certo avanço no que diz respeito ao tratamento dispensado às pessoas com deficiência nos hospitais, onde se iniciou um atendimento especializado com ortopedia aos mutilados de guerra e para pessoas surdas e cegas. É neste período que surge o código de comunicação de pessoas surdas desenvolvido por Gerolamo Cardomo, que mais tarde foi aperfeiçoado pelo monge beneditino Pedro Ponce de Leon (1520-1584) para um método de educação para ensinar as pessoas surdas a escrever e ler.
Na Alemanha, no período de 1655, surge uma cadeira de rodas que possuía duas rodas a trás e uma na frente, a qual era impulsionada por duas manivelas giratórias proporcionando as pessoas com deficiência física locomoverem-se; esta criação foi Stephen Farfler que era paraplégico. A França preocupada em manter a segurança do país solicita a um de seus capitães do exército para elaborar um código para ser usado em mensagens transmitidas no período da noite entre eles durante as batalhas. Assim, o capitão Charles Barbier (1764 -1841) elaborou um sistema onde cada letra do alfabeto era representada por combinações entre seis pontos distribuídos de forma semelhante entre duas colunas, obedecendo a regras de combinações de uma tabela. Estes pontos deveriam ser feitos em alto relevo para serem lidos com as pontas dos dedos, mas este foi rejeitado pelos militares, pois consideraram de alta complexidade.
Com isso, Barbier apresentou seu invento no Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris. Dentre os alunos que assistiam a sua exposição estava Louis Braille (1809-1852) que, ao verificar o sistema, sugeriu algumas modificações para o aperfeiçoamento do invento criado por Barbier; este se recusou fazer alterações em seu sistema, proporcionando a Louis Braille, com apenas quartoze anos na época, as devidas alterações, o qual modificou o sistema totalmente, transformando o sistema de escrita noturna para um sistema de escrita padrão, o sistema Braille, usado na alfabetização de pessoas com deficiência visual até os dias atuais.

Tu foste, Braille, o guia mais perfeito que já se tenha tido ou desejado; com vida e morte iguais às de um eleito, muito pudeste ver sem ter olhado. Ao que jeito não tinha, deste jeito; grande herança deixaste ao deserdado, levando-o com glória do teu feito, do mundo negro ao mundo iluminado. CONSTANT (2007, p. 32).

Contudo, a França ainda marcada com as idéias humanistas da Revolução Francesa, marca sua história ao perceber que as pessoas com deficiência não só precisavam de hospitais e abrigos, porém necessitavam de cuidados e atenção especializada, assim nesse período inicia-se a constituição de organizações para estudar as causas e os problemas da deficiência. Esta atenção decorre do fato de muitos soldados serem mutilados nos confrontos em batalhas, com isso Napoleão, preocupado com a reabilitação desses soldados, determina que fossem formados grupos de pessoas que pudessem trabalhar em torno da reabilitação dessas pessoas.
Com esta idéia de reabilitação, em 1884, o Chanceler alemão Otto Von Bismark constitui a lei de obrigação à reabilitação e readaptação de pessoas mutiladas durante atividades realizadas em período de trabalho. Somente após a Guerra Civil Americana e a 1ª guerra mundial, dá-se início a produção de cadeiras de madeiras com quatro rodas, duas na frente e duas atrás, assentos de palhas e apoios flexíveis para os braços e pés.
Em meados do século XIX e início do século XX houve o predomínio de instituições, onde pessoas, com vários tipos de deficiências, eram internadas em hospícios, albergues, asilos, sem qualquer tipo de acompanhamento para tantos casos diferentes de deficiências, caracterizando a relação sociedade - deficiência como Paradigma da Institucionalização. Apesar de essas instituições existirem desde o século XVI, até a década de 60 ainda não havia acontecido estudos sobre os efeitos da segregação nesta parcela da população que vivia, na maioria das vezes em lugares distantes da família e da sociedade, durante um longo período de tempo, senão até a morte, sob regime de clausura, o qual impunha ao internado um estilo de vida difícil de ser revertido.
Na década de 60 vários autores publicaram artigos que teciam duras críticas às Instituições Totais, dentre elas a inadequação e ineficiência para realizar aquilo que seria o objetivo delas: fazer dos internados, pessoas associáveis, aptas para o social. No entanto, o que se verificou em alguns, foram distúrbios de personalidade como baixa auto-estima, desmotivação para a vida e distúrbios sexuais, entre outros. A partir de então, o Paradigma da Institucionalização revelou-se inconveniente, pois além de muito criticado por pensadores e pela academia científica, passou a ser custoso manter pessoas na inatividade e ainda ter que criar

novos espaços para atender a demanda. Diante das críticas, o Paradigma da Institucionalização foi cedendo espaço para a ideologia da normalização, segundo a qual, a pessoa com deficiência deve ser introduzida na sociedade sendo ajudada a atingir o máximo possível dos padrões de normalidade estabelecidos socialmente.
No âmbito da educação, surgem as escolas especiais e as classes especiais; no âmbito do trabalho, surgem os centros de reabilitação, no entanto, apesar de o processo de integração significar um avanço se comparado ao tratamento dispensado pelas Instituições Totais, o que se verifica é que as atenções e as expectativas de mudança estavam centralizadas no sujeito com deficiência, atitude tal que revelava ainda uma imagem preconceituosa acerca das pessoas com deficiência, pois, tais expectativas revelam certa intolerância à diferença, uma visão comparativa inferior de tais pessoas em relação às pessoas não deficientes, buscam também um objetivo impossível: estabelecer uniformidade sobre a diversidade.
A experiência de dois longos conflitos mundiais, dos quais resultou uma grande população psicológica e fisicamente afetada, convergiu os olhares para a necessidade de se desenvolver políticas que reintegrassem estas pessoas à sociedade. Neste sentido, merece destaque a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada por várias nações, em 10 de dezembro de 1948, onde se lê: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...] e têm direito à educação”.
Em 1955, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) elaborou a recomendação n. 99, que trata da Reabilitação Profissional de Pessoas Deficientes; vinte e oito anos depois, esta mesma organização estabeleceu a Convenção n. 159, que trata da Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. Em 1975, foi aprovada, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. No início década de oitenta, foi declarado o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981) e a Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência (1983-1992).
No aspecto educacional, foi realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em Jomtiem, Tailândia (1990), a Conferência Educação para Todos, a qual foi confirmada por dois eventos mundiais seguintes: a Conferência Mundial da UNESCO sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, que foi realizada na cidade de Salamanca, Espanha,
em 1994, ocasião em que foi elaborada a Declaração de Salamanca, documento afirmativo das escolas inclusivas como o meio mais eficaz de se atingir a educação para todos; e o Fórum Mundial de Educação, realizado em Dakar, Senegal, em 2000.
O século XX, portanto, configura-se como um período de construção de discursos de cunho humanitário, como o respeito às minorias, maior tolerância à diversidade étnica, superação das desigualdades sociais, merecendo lugar neste debate as pessoas com deficiência. Todavia, o processo de inclusão destas pessoas, que é o reflexo da observação dos seus direitos enquanto cidadãos, ainda está em vias de se efetivar, pois se percebe ainda o forte legado cultural estigmatizante que atravessou os séculos e que se constituindo um amálgama com a realidade sócio-cultural brasileira, torna a vida das pessoas com deficiência ainda cheia de dificuldades.

1 É fenômeno exclusivamente humano, mediante o qual o homem, por ser diferente do resto dos animais, ultrapassa todos os horizontes imediatos que condicionam a viver a situação de circunstancialidade e a de meio, para abrir-se à totalidade do real, por isso o homem é o único animal metafísico.

2 Constituía uma antiga legislação que está na origem do Direito Romano. Formava o cerne da Constituição da República Romana, leis não escritas, mas com códigos legais e regra de conduta.

3 Monte maciço montanhoso do Peloponeso; 2404 m de altitude.

4 Bíblia de Estudo Plenitude Tradução. (ALMEIDA, 2005. p. 1044).

5 No pensamento grego principalmente de Platão, o Demiurgo é um deus ou um princípio organizador do universo.

6 Que tem Deus como o ponto de convergência de tudo.