DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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FAZENDO A VIDA NA FRONTEIRA: ECONOMIA “INFORMAL” E CONTROLE EM CORUMBÁ (BRASIL) e PUERTO QUIJARRO (BOLÍVIA) 1

 

Gustavo Villela Lima da Costa (UFMS) 2

 

Resumo: As fronteiras nacionais apresentam grandes desafios aos pesquisadores por suas ambigüidades e complexidades, que impõem um distanciamento do senso comum em relação a qualquer olhar essencializante e naturalizante que se dirija à sua condição. Alguns dogmas, reificados como discursos oficiais, referentes à soberania, ao limite absoluto dos mapas, às divisões totais entre culturas e identidades nacionais, caem por terra diante da realidade empírica observada na vida fronteiriça. Neste sentido, entendemos que algumas localidades situadas nos limites entre Estados nacionais, como é o caso de Corumbá-MS, por conta do diferencial fronteiriço, se tornam lugares propícios aos negócios, sejam eles legais ou ilegais, atraindo mão-de-obra e abrindo oportunidades de capitalização. Neste artigo procuraremos entender alguns desses aspectos sociais da vida fronteiriça, debatendo os limites entre legalidade e ilegalidade, tendo como base as pesquisas etnográficas desenvolvidas na cidade de Corumbá-MS.

Palavras Chave: Fronteira; Economia Ilegal; Controle Social

Resumen: Las fronteras nacionales presentan grandes desafíos a los investigadores por sus ambigüedades y complejidades que requieren un distanciamiento del sentido común en relación con cualquier aspecto esencializar y naturalizar a hablar de su condición. Algunos dogmas reificados como discursos oficiales, relacionados con la soberanía, a lo límite absoluto de los mapas, las divisiones en total entre las culturas y las identidades nacionales se desvanecen frente a la realidad empírica observada en la vida fronteriza. En este sentido, entendemos que algunas localidades dentro de las fronteras de los Estados nacionales, como es el caso de Corumbá-MS, debido a los diferenciales de frontera se convierten en lugares propicios para los negocios, ya sea legal o ilegal, atrayendo mano de obra y proporcionando oportunidades de capitalización. En este artículo vamos a tratar de entender algunos de los aspectos sociales de la vida en la frontera, debatiendo las fronteras entre legalidad e ilegalidad, basada en la investigación etnográfica realizada en la ciudad de Corumbá-MS.

Palabras Clave: Frontera; Economia Ilegal; Control Social

 

INTRODUÇÃO

A cidade de Corumbá, situada na fronteira com a Bolívia, a partir da cidade de Puerto Quijarro, possui pouco mais de 100 mil habitantes (IBGE, 2010) e tem na mineração e no comércio algumas de suas principais atividades econômicas. Corumbá fica a aproximadamente 450km da capital do Estado de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, e está “cercada” pelo Pantanal, maior planície alagada do mundo. O único acesso rodoviário à cidade, do lado brasileiro se dá pela rodovia BR-262 (já que todas as estradas vicinais acabam desembocando na mesma). A ponte sobre o rio Paraguai só foi construída em 2001, e anteriormente era preciso cruzar o rio em balsas, que tornavam a viagem ainda mais longa. A ferrovia que até a década de 1990 levava passageiros opera apenas com trens de carga atualmente, sobretudo para o transporte de minério de ferro das jazidas do maciço do Urucum. Na hidrovia do rio Paraguai, que liga Corumbá à bacia platina, operam basicamente as “chatas” que transportam, principalmente soja, tanto da Bolívia, quanto do Brasil. O rio Paraguai, que outrora fora a porta de Corumbá para o mundo, com intenso fluxo de passageiros e mercadorias há muito perdeu essa função. O porto de Corumbá atende aos barcos que sobem o pantanal em direção às comunidades ribeirinhas esparsas, ao norte, e ao turismo de pesca. A cidade conta, ainda, com um aeroporto internacional, com vôos diários para Campo Grande.
A cidade de Corumbá se encontra em uma área de fronteira seca com a vizinha Puerto Quijarro, na Bolívia, (na verdade há uma pequena ponte sobre um riacho entre os dois países), o que favorece o trânsito entre as duas cidades vizinhas, que é praticamente livre, para os moradores fronteiriços, pois não há barreiras fixas de policiais (a não ser quando ocorrem operações de segurança). A fiscalização acontece, de fato, basicamente na Receita Federal, e nos fiscais de trânsito do lado brasileiro que eventualmente param carros ou pedestres, desde que haja a suspeita de os mesmos possam estar realizando algum comércio considerado ilegal (nem todos os veículos são parados, por exemplo). O trânsito entre as duas cidades é intenso, em função do comércio e das relações sociais intrínsecas que aí se estabelecem. Como a cidade está situada no meio do “corredor bioceânico”, entre os portos de Arica, no Chile e de Santos, no Brasil, são inúmeras as atividades comerciais que aí se desenvolvem, seja a partir de grandes exportadores de soja, minério, gás natural, por exemplo, seja a partir dos pequenos comerciantes que fazem sua vida nesta fronteira. Existe na cidade um intenso fluxo de caminhões e um grande número de transportadoras que trabalham com este comércio binacional, de exportações e importações.
Mesmo, com intenso fluxo de pessoas e mercadorias, os moradores de Corumbá, produzem um discurso sobre o isolamento da cidade, que seria um dos fatores que “emperram” o desenvolvimento econômico da região. Em primeiro lugar é preciso relativizar e qualificar a que “isolamento” a que nos referimos. Embora integrada em malhas de transporte e comunicação, Corumbá fica muito distante de grandes centros urbanos e produtores de mercadorias. Na BR-262, que corta o Pantanal, há uma placa que indica simbolicamente o peso da distância, na cidade de Miranda, que fica há pouco mais de 200km de Corumbá: próximo posto a 150km. Neste trecho, a estrada construída como um aterro, avança sobre a imensidão do Pantanal, ao lado das palmeiras carandás, sob os olhares indiferentes dos jacarés sob o sol. Nesta parte da estrada não há sinal de celular e pouquíssima presença humana e, certamente, são poucos lugares no território nacional tão ermos. Mas não nos enganemos, aí passam caminhões, mercadorias e pessoas, em um fluxo intenso através da fronteira.
Como se depreende da descrição acima, o isolamento da cidade de Corumbá não é apenas físico, mas, principalmente, simbólico, já que se refere mais à sensação de sentir-se longe, isolado, separado do resto do estado e do Brasil pelo Pantanal. Certamente a proximidade com a Bolívia contribui para o sentimento de que se está em “outro lugar”, início e fim do Brasil. De maneira alguma, procuramos reintroduzir em nossas discussões qualquer tipo de determinismo geográfico, porém, há lugares na Terra, como é o caso do Pantanal (e, felizmente, diga-se de passagem) ainda “indomados” pelos processos de transformação urbana e da presença do ser humano. As cheias do Pantanal se impõem ao ser humano, que precisa aprender a conviver com este regime das águas. Neste sentido, a natureza, o clima e a geografia física da cidade de Corumbá exercem uma força sobre a vida de seus habitantes, o que contribui para criar, em alguns momentos, uma impressão de se estar vivendo em uma espécie de ”ilha” (o que é uma ilha, senão uma porção de terra cercada por água?).
Esta cidade sempre conviveu com pólos opostos, comuns nas representações sociais construídas sobre Corumbá: entre o isolamento e a integração (como pode ser tão ‘isolada” assim, uma cidade que é um nó comercial na América do Sul?); entre a presença ostensiva do Estado (forças armadas, Universidade Federal, Receita Federal, entre outros) e sua ausência (falta de médicos, precariedade de serviços básicos, e etc.); entre o mundo da natureza (com a força indomável do Pantanal) e da urbanização e cultura (Corumbá sempre foi uma cidade essencialmente comercial e urbana, integrada de algum modo, portanto, a outros centros); entre o cosmopolitismo (Corumbá teve seu auge no início do século XX quando recebeu diversos imigrantes ávidos por negócios, transformando-a numa “babel dos sertões”) e o provincianismo (Corumbá “já teve” cinema, trem etc. e hoje perde espaço como centrocultural do estado). Neste processo destacamos que paulatinamente, a elite local, herdeira das fazendas de gado, que historicamente foi uma elite “ilustrada”, que estudava no Rio de Janeiro (ligada por navios ao Pantanal), cujo representante mais famoso é o poeta Manoel de Barros, vem deixando a cidade, em função de sua precariedade (contribuindo dialeticamente para esta mesma precariedade). Os filhos dessa elite já não moram mais em Corumbá e nem estudam no Rio de Janeiro, mas em São Paulo ou Campo Grande e muitos fazendeiros optaram por ter suas residências nesta cidade, reinvestindo parte importante de seu capital fora de Corumbá.
O tamanho e o relativo isolamento da cidade de Corumbá contribuem para a formação de um estilo de vida, com regras específicas, assim como dos códigos de conduta e comportamento social, que sofrem intensa coerção e controle por parte dos moradores da cidade. É importante destacar que esses elementos contribuem não apenas para impor limites e coerções às pessoas no nível pessoal, ou seja, nas relações amorosas, de amizade e assim por diante, mas na própria constituição do poder político local, assim como da estruturação das relações econômicas e dos negócios na fronteira. O mundo dos negócios na fronteira, nos quais as relações face-a-face têm preeminência, propicia a formação dos esquemas de fronteira, onde se sobrepõem os limites entre o legal e o ilegal. Além disso, o próprio controle e vigilância na fronteira estão sujeitos a essas regras sociais, construídas historicamente, em Corumbá, em que todos possuem um nome, um cargo, uma posição social, que mantém as hierarquias e as posições de poder bem definidas.
Essa proximidade coercitiva das relações sociais é típica de outras cidades do mesmo porte, porém certamente é amplificada pela distância da cidade, porque não há muitos lugares aonde ir, fica-se em Corumbá. Na cidade prevalecem as relações pessoais, os “conhecimentos” de uns sobre os outros e o controle social a partir das fofocas. Apesar de típicas de cidades de menor porte, essa “promiscuidade” social adquire características próprias em Corumbá, como se as pessoas não tivessem como “fugir” desse convívio, semelhante a lugares de mais difícil acesso, como ilhas, por exemplo. Em grande medida, é como se Corumbá tivesse regras próprias, idiossincrasias e um “jeito” de se sociabilizar muito próprio. Essas regras sociais, entretanto, têm implicações para além de Corumbá, pois esta importante região comercial de fronteira movimenta muito dinheiro, interesses e relações de poder que transcendem a escala local, seja em negócios legais, seja nos ilegais. Esses negócios, por sua vez, são montados e efetivados, justamente, a partir dessas regras sociais e das estreitas relações pessoais que se estabelecem em Corumbá.
Esta característica social da cidade de Corumbá (e de outras cidades pequenas de fronteira no Brasil) abre caminho para discussões futuras muito interessantes em torno dos esquemas locais. As fofocas, boatos e a grande quantidade de informação pessoal à tona nessas cidades, apontam para uma relativização da noção do “segredo” localmente, assim como sobre a participação das pessoas “conhecidas” (agentes estatais, empresários e políticos locais, por exemplo) nos esquemas. Esta relação entre o segredo e a fofoca, nessas cidades, se constrói em uma linha tênue entre a divulgação dessas informações sob a forma de boatos, (pois em geral a fofoca é anônima e difusa e o boato pode sempre ser considerado como uma “mentira”) e seu silêncio (ninguém assume a divulgação dessas informações, sob pena de sofrer sanções).
Neste sentido, as relações sociais com alto grau de proximidade engendram as práticas de controle e possibilitam os negócios sejam eles legais e ilegais, assim como, delimitam o espaço social em que podem ocorrer as operações de controle e repressão ao comércio ilegal, já que os próprios agentes de segurança e do aparato estatal estão inseridos nessa gestão personalizada das regras. Cada pessoa em Corumbá possui um nome, um cargo, um rosto. Nossa hipótese de trabalho neste artigo é a de que os bolivianos (principalmente aqueles envolvidos com o pequeno comércio informal da cidade), embora fazendo parte da vida social da fronteira ficam à margem dos estamentos sociais superiores da cidade (elites históricas de proprietários de terras ou dos membros da Associação Comercial, por exemplo), ocupando os estratos mais baixos da hierarquia social nesta fronteira. Os bolivianos, portanto são aqueles que sofrem com mais intensidade as sanções do Estado em relação às atividades realizadas nas “dobras do legal e do ilegal” (TELLES, 2010), justamente por não fazerem parte das redes sociais de proteção em torno do conhecimento interpessoal, fora da esfera de prestígio e honra social, que protege outros grupos de negociantes da cidade de Corumbá.

FRONTEIRA: ENTRE O LEGAL E O ILEGAL

O dogma da soberania nacional que regula e legitima as operações de vigilância e controle dos mercados informais nas cidades de fronteira se manifesta, principalmente, a partir de discursos de proteção à indústria nacional e ao pagamento dos tributos, no sentido da legalidade. A partir de seu corpo de funcionários, da Receita Federal (vigias dos tributos) e da Polícia Federal e Forças Armadas (vigias do território), o Estado exerce sua dominação, sobre o território, pessoas e fluxos de mercadorias, com efeitos específicos em cidades de Fronteira, como é o caso de Corumbá. Quais seriam então, alguns desses efeitos sociais do controle e vigilância, calcados em um direito de caráter nacional, que ignoram as dinâmicas locais das regiões de fronteira? Como entender as dinâmicas desse comércio informal em uma cidade de fronteira como Corumbá?
A partir do Mestrado em Estudos Fronteiriços, da UFMS, no Campus do Pantanal, em Corumbá, vem sendo produzidas pesquisas etnográficas sobre mercados “informais e ilegais” na fronteira Brasil-Bolívia. Nosso enfoque tem procurado romper justamente com a dicotomia entre o legal e ilegal, compreendendo por um lado o grau de imbricamento entre Estado e ilegalidade, assim como a importância da chamada economia “ilegal”, para a vida econômica da cidade como um todo. A capilaridade das atividades consideradas como ilegais não nos permitem separar de maneira absoluta ou em termos morais e penais os limites do legal e do ilegal. Entender as modalidades de trabalho “ilegal” implica, portanto, em um afastamento de pré-julgamentos que inserem este fenômeno apenas nas esferas judicial e criminal. Neste sentido, a etnografia, como método de pesquisa antropológica, fornece as ferramentas para entendermos o trabalho dos indivíduos envolvidos em tais atividades a partir do ponto de vista dos mesmos, o que permite, por sua vez, uma melhor compreensão das relações indissociáveis entre o que se convencionou chamar de economia “ilegal” e “economia” propriamente dita.
Desde 2009, estamos tentando compreender algumas modalidades de trabalho “ilegal”, ou mesmo “criminoso”, na fronteira Brasil-Bolívia na cidade de Corumbá, em pesquisas coletivas, seja a partir trabalho de taxistas “clandestinos”, comerciantes de roupas sem tributação ou ainda dos comerciantes de drogas. Uma das principais questões que procuramos debater é: é possível separar essas atividades da economia “legal”? Faz sentido, então, continuar chamando essa economia de “ilegal”? Ilegal para quem? Em primeiro lugar entendemos que na circulação de indivíduos pelas fronteiras nacionais também ocorre uma circulação de indivíduos entre as fronteiras de “dentro” do aparato estatal e de “fora”, na vida das ruas das cidades fronteiriças. Os discursos hegemônicos pressupõem uma fictícia separação entre o Estado, representando o Bem e a ordem, de um lado, e os indivíduos que realizam atos “ilícitos”, representando o Mal e a desordem, de outro. Autores como Heyman e Smart (1999) discutem o fato de que a lei estatal inevitavelmente acaba criando zonas de ambiguidade e de ilegalidade e que esses mundos do crime, mercados negros, contrabandistas não estão apartados do Estado, e nem o Estado deles, ou seja, a lei estatal e sua evasão devem ser estudadas juntas, em conexão ou simbiose (HEYMAN e SMART, 1999). Este procedimento analítico nos afasta de uma visão idealizada do Estado, muitas vezes entendido como uma entidade unitária, homogênea, que operaria como ordenador único da realidade.
Ao longo do tempo, a presença dos comerciantes bolivianos e principalmente do comércio das roupas “não tributadas” vêm causando incômodos e fomentando ações do poder público, influenciados tanto por demandas políticas locais, sobretudo da Associação Comercial de Corumbá, quanto por demandas nacionais de segurança na fronteira e que visam coibir a entrada de produtos não tributados no Brasil. Destacamos entre as medidas do Governo Federal, a criação e implantação do Plano Estratégico de Fronteiras (PEF), a partir de 2011, que prevê uma série de ações e medidas no sentido de reforçar a vigilância e monitoramento das fronteiras brasileiras e que tiveram grande impacto local, inclusive com o aumento do efetivo do aparato de segurança, com a presença ostensiva da Força Nacional na cidade.
Além disso, é preciso dar conta, em nossas pesquisas, das peculiaridades da vida na fronteira, sem reproduzirmos preconceitos sobre esses lugares. A partir daí surgiram novas indagações: as fronteiras nacionais são realmente lugares propícios ao crime, contravenção, por sua condição geográfica e pelo diferencial monetário fronteiriço? Ou as modalidades de atividades ilícitas na fronteira é que são peculiares? Quais seriam então essas peculiaridades?
Ao compreender a complexidade da vida nas fronteiras, em que estão em jogo questões como a soberania dos Estados e o controle dos fluxos e das próprias vidas dos moradores da fronteira é que podemos observar claramente a existência de duas lógicas operando nessas regiões: a lógica das populações locais e a lógica do Estado. O comércio de roupas, principalmente, e de outros produtos na feira Bras-Bol, considerado como contrabando e/ou descaminho pelo Estado, é visto e vivido por grande parte dos moradores locais como uma atividade legítima, como parte da vida na fronteira. Este caso nos ajuda a entender como ocorre a construção das relações de poder, tanto a partir da relação entre moradores e o Estado, quanto entre as classes sociais e os vários grupos de status, grupos étnicos e nacionalidades que convivem na fronteira.
Nossas pesquisas refutam também as representações sociais e discursos produzidos sobre a fronteira, afastando-nos dos processos de reificação e de reforço de preconceitos a respeito das regiões fronteiriças, tantas vezes estigmatizadas como “terras sem lei”, lugares onde está ausente o Estado e onde prolifera a criminalidade. Somente na cidade de Corumbá-MS temos as seguintes instituições de controle e vigilância estatais: Exército, Marinha, Aeronáutica; Polícia Militar, Civil e Florestal, que contam com o D.O.F. (Departamento de Operações na Fronteira); a Polícia Federal e a Força Nacional; A Receita Federal e a Anvisa. Ou seja, o Estado não apenas está presente, mas considerando o tamanho da cidade, com pouco mais de 100 mil habitantes, podemos considerar sua presença como ostensiva e abundante, sobretudo a partir de seus órgãos de vigilância e controle. Neste sentido afirmamos que a cidade de fronteira não é um lugar mais propício às atividades ilegais do que qualquer outra parte do território nacional, apenas os esquemas é que variam. O que de fato observamos ao longo de nossas pesquisas é que as cidades de fronteira apresentam condições específicas para atividades “ilegais” específicas, ou como preferimos chamar os esquemas da fronteira.
As fronteiras são de fato lugares propícios aos negócios e é justamente por esta condição é que se costuma confundi-las, como se fossem os lugares por excelência da ilegalidade, sob o efeito de discursos que as caracterizam como “terras sem lei”. No mundo dos negócios, da busca por lucros na compra e venda de mercadorias, pouco importam os limites da lei e do Estado, pois a lei que rege as operações de aquisição de lucro e os esquemas é a lei do mercado. Os preconceitos sobre as regiões fronteiriças recaem principalmente sobre os núcleos urbanos como Corumbá, Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, assim como Foz do Iguaçu, no Paraná e Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, para citar alguns exemplos. As histórias de ocupação dessas cidades estão baseadas justamente no comércio, por serem pontos de integração na América do Sul, integrados por malha de transportes que favorecem a circulação de mercadorias e pessoas. Esta visão preconceituosa sobre as regiões fronteiriças está baseada em uma idealização da lei entendida como uma legitimidade que deve estar em vigência, baseada em uma moralidade universal, associada ao “bem” e, por conseguinte, a um Estado também idealizado, que seria o guardião transcendente dessa moralidade. Para escaparmos às idealizações e ficções em relação às fronteiras do legal e do ilegal, devemos entender o direito e a lei como procedimentos de sujeição, que eles desencadeiam e não como uma legitimidade a ser estabelecida (FOUCAULT, 1979: 182). Não existe tal Estado “ideal” e homogêneo, pois os funcionários de seu quadro administrativo são pessoas de “carne e osso” e não abstrações do sistema. É preciso ressaltar que no mundo dos negócios e para os atores sociais envolvidos nos esquemas que ultrapassam as barreiras do legal e do ilegal, não existe tal visão idealizada, ou seja, a realidade, muitas vezes, é muito melhor compreendida pelos mesmos, sobretudo a respeito do caráter imanente do funcionamento das regras do jogo.

FAZENDO A VIDA NA FRONTEIRA: ESTRATÉGIAS DE TRABALHO E CIRCUITOS COMERCIAIS

 

  1. Os Taxistas

O trabalho dos taxistas que operam entre Ladário/ Corumbá e Puerto Quijarro/ Puerto Suarez apresenta alguns elementos que nos permitem discutir como a fronteira impõe a possibilidade de capitalização e circulação de bens e pessoas de uma maneira diversa de outros pontos dos Estados nacionais. Além disso, a possibilidade de operar com dois câmbios distintos (além de legislações distintas, sobretudo no que se refere ao emplacamento e cobrança de impostos sobre veículos) fornece oportunidades de ganhos econômicos que são vistas por alguns taxistas e passageiros como legítimas, mas que adquirem, aos olhos dos Estados e de grupos rivais de taxistas, um caráter ilegal.
Corumbá e Ladário, no lado brasileiro podem ser consideradas cidades de pequeno a médio porte, com pouco mais de 100 mil habitantes ao todo. Os transportes públicos formais da cidade são oferecidos por uma empresa de ônibus “Canarinho” que possui o monopólio das linhas da cidade; por moto-taxistas, organizados em “cooperativas”, caracterizados por seus capacetes e coletes amarelos e pelos táxis (automóveis), que possuem um atuante sindicato. Como a cidade não possui grandes dimensões territoriais é muito raro ver os táxis da cidade rodando para buscar passageiros. Em geral, há os pontos de táxis fixos pela cidade e os passageiros ligam, ou para o telefone do ponto de táxi, ou para o celular do taxista. Neste procedimento é muito comum que alguns taxistas tenham clientes fixos, estabelecendo relações de confiança pelo serviço prestado. Além disso, existem moto-táxis “piratas” e os veículos bolivianos que operam como táxis no lado brasileiro cobrando tarifas muito mais baixas para transportar passageiros, especialmente para cruzar a fronteira. Os táxis bolivianos estão divididos em três categorias: táxis do sindicato (com placas vermelhas e placas de identificação de táxi), de cooperativas (apenas com a identificação de táxi) e os veículos particulares (sem placa de táxi). Esses carros não podem carregar passageiros no lado brasileiro se estiverem identificados como táxis bolivianos e o mesmo vale para os táxis brasileiros no lado da Bolívia, isto é, oficialmente os táxis cadastrados só podem deixar passageiros até o ponto da fronteira. Entre o centro da cidade de Corumbá e a fronteira com Arroyo Concepción, em Puerto Quijarro é preciso percorrer aproximadamente 8 km de rodovia, o que diferencia essas cidades de localidades como Ponta-Porã – Pedro Juan Caballero (na fronteira Brasil-Paraguai), ou Santana do livramento- Rivera (na fronteira Brasil – Uruguai), que formam as chamadas “cidades gêmeas”, compartilhando o mesmo espaço urbano contínuo. Para chegar à Bolívia, partindo de Corumbá é preciso atravessar um pequeno trecho de estrada, chamada Rodovia Ramon Gomez. Para cumprir esta distância relativamente grande para os padrões da cidade, os taxistas locais cobram um preço fixo de R$ 30,00 (trinta Reais). O ponto de táxis da fronteira do lado brasileiro, portanto, é um dos mais lucrativos da região, em razão do fluxo de pessoas que vão fazer compras no lado boliviano, nos mercados de Puerto Quijarro, dos migrantes e turistas bolivianos que chegam à estação de trem em Puerto Quijarro e pela alta tarifa cobrada para levar passageiros. É justamente por este motivo que há o rodízio oficial de taxistas que trabalham neste ponto. Os carros de placa boliviana, que levam passageiros para o lado boliviano da fronteira, por sua vez, cobram em torno de R$5,00 (cinco reais) para fazer o mesmo trajeto (já que a gasolina na Bolívia é muito mais barata do que no Brasil). Esta prática, obviamente, gera conflitos entre esses motoristas bolivianos e os taxistas brasileiros que já fizeram manifestações em Corumbá reclamando da concorrência, considerada por eles como desleal.
Mesmo com a fiscalização, entretanto, é muito difícil provar que os carros bolivianos estejam, de fato, fazendo o trabalho de taxista, pois não é possível atestar absolutamente que o passageiro tenha pagado pela corrida. O passageiro pode estar pegando carona no veículo com placa boliviana, por exemplo, o que entraria na esfera privada do dono do carro. É preciso destacar também que o trânsito de veículos particulares na fronteira é livre. Entre Puerto Suárez/ Puerto Quijarro, Corumbá e Ladário, os carros com placas brasileira e boliviana podem circular livremente. Este conflito entre taxistas dos dois países passa, em 2010 a ser mediado pelo sindicato de taxistas de Corumbá, por associações bolivianas e por órgãos do governo, a fim de adequar a legislação local à realidade de fato (que tende a se tornar um direito): alguns veículos emplacados na Bolívia, assim como os veículos emplacados no Brasil vão cruzar a fronteira, independente das proibições, em função da própria dinâmica social e da situação de interdependência dessas cidades. Como controlar, então, o transporte de passageiros? Como evitar a concorrência vista como desleal pelos taxistas brasileiros? Em 2010 é proposto um acordo entre as partes para regulamentar a circulação de táxis na fronteira (e é nesse momento que o direito é acionado pelos indivíduos como um meio de solucionar o conflito). Este acordo foi celebrado após reunião envolvendo a Agetrat, o 6º Batalhão da Polícia Militar, o Sindicato dos Taxistas de Corumbá e sindicalistas bolivianos do mesmo segmento. Notamos esta confluência de interesses, conversando com os taxistas sindicalizados bolivianos. Um membro do sindicato de Puerto Quijarro afirmou “é de nosso interesse também, os táxis clandestinos prejudicam nosso trabalho, é preciso trabalhar direito, contribuir com o sindicato”. Neste sentido, a complexidade deste conflito envolve também as relações sociais entre os taxistas dos dois lados da fronteira, que se conhecem pelos nomes e que muitas vezes podem estabelecer pontos de convergência na questão do transporte de passageiros. É muito comum, por exemplo, que os taxistas de um país atravessem a fronteira apenas até o ponto de táxi da fronteira do outro lado, para deixar passageiros (sejam taxistas brasileiros que deixam passageiros no ponto de táxi boliviano, ou vice-versa). Ou seja, em diversas situações há interesses compartilhados, em que taxistas de ambos os lados da fronteira se beneficiam do trabalho em comum.
Esta regulamentação do trabalho dos taxistas na fronteira, embora tenha incorporado demandas dos comerciantes de origem boliviana, atende principalmente aos interesses dos taxistas do lado brasileiro e reforçam os dispositivos de controle do Estado brasileiro. Para o vice-presidente do Sindicato dos taxistas de Corumbá e para a diretora da Agetrat, a intenção não é restringir o acesso dos bolivianos no Brasil, mas sim evitar que alguns motoristas se utilizem desse artifício para prejudicar o trabalho dos taxistas locais, que afirmam ter “déficit em serviços devido a essa ilegalidade”. Além desse selo, a Agetrat aprovou a presença de um fiscal do Sindicato dos Taxistas do Brasil na fronteira, como forma de “coibir o transporte clandestino tanto internacional como nacional”. De acordo com o vice-presidente do sindicato de taxistas de Corumbá, há algum tempo “já haviam colocado uma pessoa para vigiar a fronteira”, anotando as placas dos “suspeitos” de realizarem transporte irregular. Este fiscal já atuava de maneira informal, mas o acordo o legitima aos olhos da administração pública dos dois países e diante dos taxistas que cruzam a fronteira, criando mais um cargo estatal de controle, ampliando o aparato de vigilância na fronteira, que se soma às polícias (Federal, Militar e Civil), à Força Nacional e Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) e à Receita Federal. A Agetrat formalizou o trabalho deste fiscal que foi contratado pela prefeitura de Corumbá, como uma medida temporária. Esta formalização do trabalho do fiscal atende a uma exigência do Ministério Público Federal que exigiu uma maior vigilância da prefeitura de Corumbá na fiscalização dos veículos que cruzam a fronteira, sob a ameaça de pagar multa no valor de um milhão de Reais ao dia.
De acordo com as palavras do novo fiscal: "agora posso ser tratado com respeito pelas autoridades e trabalhar conforme a lei, obedecendo as normas da Agetrat, além de ajudar a classe". Em algumas ocasiões, presenciamos a ação deste fiscal, que utiliza um colete da prefeitura, posicionado na fronteira brasileira logo depois do posto da Receita Federal. Este fiscal, amparado pela polícia, exige que carros bolivianos abaixem os vidros, a fim de conferir se os mesmos levam ou não passageiros fora da nova regulamentação. Este fiscal tem o poder de retirar passageiros de táxis bolivianos, assim que cruzam a fronteira com o Brasil, colocando-os em táxis brasileiros, ou mandando-os de volta para o lado boliviano e também de apreender o veículo para o depósito do DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito). Resta saber como o fiscal procede para verificar se um veículo é clandestino ou não. O critério principal e determinante é a existência de laços de parentesco entre passageiro e o motorista, que não pode levar “amigos” ou “conhecidos”. Além disso, já existe uma lista prévia de veículos “suspeitos”, ou seja, de motoristas que já foram flagrados transportando passageiros de maneira irregular. A partir desta informação, o fiscal deve averiguar se o passageiro é parente do motorista, perguntando seus nomes e exigindo seus documentos de identidade. Se for considerado em situação irregular o veículo é apreendido no DETRAN e é cobrada uma multa no valor de R$190,00 (cento e noventa Reais). Este procedimento de apreensão é necessário, de acordo com um funcionário da Agetrat, pois não é possível multar um veículo boliviano no Brasil. Esta prática de fiscalização causou tensões diplomáticas, pois o Cônsul boliviano em Corumbá chegou a aventar a possibilidade de acionar o Itamaraty para resolver o caso, sob a alegação de cerceamento do direito de ir e vir e de preconceito contra os bolivianos em Corumbá.
Estes novos dispositivos de controle, assim como os postos fronteiriços de vigilância alfandegária e policial demandam, portanto, certos procedimentos disciplinares que acabam sendo incorporados também pelos moradores que cruzam a fronteira diariamente, impondo normas e padrões, gestos, olhares e comportamentos. O próprio comportamento do imigrante ou comerciante “ilegal”, ou do taxista “clandestino” em Corumbá é coagido pela constante sensação de controle e vigilância, ainda que o aparato de coação não esteja fisicamente presente. O poder soberano exercido pelo estado não se impõe somente sobre o território, mas também sobre os corpos e sobre os comportamentos.
É preciso destacar também que, ao longo do dia, os taxistas operam com distintas temporalidades, a fim de obter melhores estratégias de lucro, como se percebe no ponto da fronteira. De acordo com entrevista feita com outro taxista que trabalha na cidade de Corumbá, a cada dois dias haveria um rodízio informal (e proibido) de táxis, que aguardam na fronteira do lado brasileiro para transportar comerciantes, “sacoleiros,debaixo do pano”, que é a categoria usada pelos taxistas. Os táxis ficam na fronteira na parte da manhã, até as 6h30, quando ainda não estão operando os postos de fiscalização da Receita Federal e da Polícia Federal (com o apoio da Guarda Nacional). Segundo este taxista, é este serviço “que garante o sustento dos taxistas” na cidade de Corumbá, pois a tarifa cobrada gira em torno de R$150,00 (cento e cinqüenta Reais). A partir dessa informação, podemos considerar os taxistas como um elo essencial da cadeia comercial fronteiriça na região. Ao cobrar uma tarifa pelo transporte (pois envolve o risco de serem descobertos pelos órgãos de vigilância), os taxistas assumem outra função que não apenas a do transporte de passageiros, mas como transportadores de mercadoria “contrabandeada” ou “atravessadores”, cuja cobrança pelo serviço de frete, certamente se incorpora ao produto final na mão do consumidor. A ação de taxistas transportando migrantes ou mercadorias “contrabandeadas“ os caracteriza como intermediários do fluxo transnacional de pessoas e mercadorias, transcendendo a escala local de atuação. Esta prática aponta para questões complexas do entrelaçamento entre práticas legais e ilegais/ formais e informais para a economia local.

  1. Nas Feiras de Corumbá

 

Como a cidade de Corumbá está situada a cerca de 450 km de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, ao longo do tempo criou-se uma interdependência muito grande em relação às cidades bolivianas vizinhas como Puerto Quijarro e Puerto Suarez. Esta distância, em relação à capital do estado, acaba por encarecer também os preços de vários produtos do comércio formal da cidade, desde supermercados, às lojas, em geral, que tem que pagar fretes caros para receber os produtos, que são repassados aos consumidores e mesmo das contas de luz, que são taxadas pela distância. Tudo isso acaba favorecendo o comércio com a Bolívia, como alternativa de consumo para muitos corumbaenses. Em Puerto Quijarro, por exemplo, em seu distrito de Arroyo Concepción, existe um grande e, cada vez mais intenso, comércio, principalmente de roupas “made in China”, além de free-shoppings como a “Casa China” e “Miami House”, que vendem produtos importados originais (desde eletrônicos às bebidas, por exemplo). Muitos corumbaenses também optam por fazer compras no supermercado de Puero Suarez, o “Tocale”, que oferece preços mais vantajosos. Além disso, compra-se de tudo na fronteira desde material de construção, a utensílios domésticos, alimentos entre outros, além de serviços como médicos, dentistas que são utilizados de ambos os lados da fronteira.
O trânsito de pessoas e mercadorias na fronteira, portanto, é a cada dia mais intenso, e grande parte da população de Corumbá e de Ladário, cidade vizinha, encravada no município de Corumbá, depende deste comércio fronteiriço para adquirir produtos a preços mais acessíveis. Além disso, desde a década de 1990, o comércio de Arroyo Concepción vem atraindo os “sacoleiros”, de várias partes do Brasil, mas principalmente dos estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, o que vem chamando a atenção das autoridades brasileiras, principalmente através da Receita Federal, que reforçam cada vez mais os controles e as operações de repressão ao comércio de roupas chinesas, adquiridas na Bolívia.
As feiras de rua e a Feira Bras-Bol na cidade de Corumbá e o comércio do outro lado da fronteira representam um terreno fértil em que a vida na fronteira se desenvolve, propiciando as condições para as interações sociais e culturais, e em torno dos quais as vidas das pessoas ganham sentido, negociando não apenas mercadorias, mas suas identidades, ou seja, essas feiras não representam apenas a possibilidade de geração de lucros, 

mas jogos permanentes entre planos institucionais diversos que ora regulam, ora desregulam essas atividades; trajetórias sociais de pessoas singulares que levam a vida e desenvolvem habilidades e vocações comerciais em movimento (NEIBURG, 2010: 14).

Para entendermos de que forma os vendedores e consumidores circulam por esses espaços e além de consumirem, constroem suas vidas em torno deles, procuraremos compreender quais relações constituem esse espaço fronteiriço e que o tornam possível, considerando-os como “circuitos comerciais, migrações, ilusões e apostas governamentais sobre os limites e as definições que se atravessam e que se questionam, que se levantam e reproduzem.” (RABOSSI, 2004: 25). Para este autor, a dinâmica social de uma cidade de fronteira não segue as divisões marcadas pelo limite internacional, nem com relação ao trabalho, nem com relação à residência, já que muitos cruzam as fronteiras diariamente, o que configura a fronteira como um lugar privilegiado
para pensar sobre negócios, sobre limites, sobre intercâmbios no limite do regulamentado, sobre as vidas daqueles que ganham sua vida através desses limites (é no aproveitamento dos diferenciais derivados desse pertencimento a espaços econômicos diferentes, que encontramos uma das motivações que mobiliza o comércio). (RABOSSI, 2004: 26).

Como funciona então o comércio de roupas nesta fronteira? Aonde se insere a Feira Bras-Bol neste comércio? O que se vende nestas feiras? Quem vende? Quem compra? Em primeiro lugar, para responder a essas perguntas, podemos dividir o comércio de roupas na fronteira em quatro “pontos” principais, que serão descritos brevemente: O Centro Comercial 12 de Octubre, em Arroyo Concepción, distrito de Puerto Quijarro na Bolívia, a Feira Bras-Bol, as feiras livres de rua de Corumbá e Ladário e o comércio formal do centro da cidade de Corumbá.
Nas inúmeras visitas feitas na feira Bras-Bol entre 2009 e 2012, não apenas para realizar pesquisas de campo, mas para fazer compras, conversei com alguns vendedores que trabalham nas “bancas” da feira. As peças de vestuário, roupas e calçados, são os principais produtos comercializados por essas pessoas e são os produtos mais procurados por consumidores de Corumbá. Neste local é possível adquirir, por exemplo, calças jeans de boa qualidade, com etiquetas de marcas famosas, produzidas na China, por R$ 18 Reais, por exemplo, ou ainda sapatos e casacos por até R$ 35 Reais, preços pelo menos 50% menores do que nos mercados “formais” da cidade. Os preços mais baixos que atraem muitos consumidores geram também uma tensão muito grande entre os vendedores formais, a partir da “Associação Comercial e Empresarial de Corumbá” e os trabalhadores da Feira Bras-Bol, que também estão organizados na “Associação dos Pequenos Comerciantes Bras-Bol”, em uma disputa política pelo comércio e pelos consumidores de Corumbá.
Do lado boliviano, no distrito de Arroyo Concepción, no município de Puerto Quijarro, logo após cruzar a fronteira, está situado o “Centro Comercial 12 de Octubre”, (com mais de 200 bancas) conhecido em Corumbá como “shopping chão”, em uma brincadeira local com o “Shopping China”, famosa loja de importados situada em Puerto Quijarro. Em geral, neste local, se encontram os mesmos produtos vendidos na Feira Bras-Bol do lado brasileiro, porém com preços mais baratos (até 20 % mais baratos). Por exemplo, camisas “Lacoste” no lado brasileiro podem custar R$15,00, e no lado boliviano R$12,00.
Além das lojas de roupas e calçados do Centro Comercial, há pelo menos, mais de 100 lojas nas ruas de Arroyo Concepción, independentes, sem vinculação com a Associação e que vendem, além de roupas, produtos eletrônicos, brinquedos, instrumentos musicais, bebidas e artigos de perfumaria. Há também inúmeros hotéis, restaurantes, bares e mercados de alimentos no entorno da feira. O ritmo de construção de novas lojas e pequenos centros comerciais é muito intenso e a cada ano mais pessoas se mudam de outras regiões da Bolívia para a fronteira, em busca de trabalho. A principal razão da existência deste efervescente e crescente comércio em Arroyo Concepción não é apenas o consumidor corumbaense, mas a “descoberta” deste comércio pelos “sacoleiros”, que vêm de ônibus fretados de outros estados (São Paulo e Paraná, principalmente) e do próprio Mato Grosso do Sul (de Campo Grande, principalmente).
Esta procura por roupas a preços muito mais baixos do que no Brasil, também provocou reações nos controles fronteiriços, além do que toda uma política brasileira de segurança para as fronteiras vem se redesenhando nos últimos anos. Destacamos por exemplo, que desde 2010, toda uma cadeia de produtores, comerciantes e “transportistas” foi afetada pela Portaria 440 do Ministério da Fazenda do Brasil, instaurada a partir de 30 de julho de 2010, que modificou as regras para a declaração de mercadorias adquiridas em viagens ao exterior. Esta medida afetou bastante a vida dos comerciantes de Arroyo Concepción, diminuindo consideravelmente o movimento de “sacoleiros” na região, que são obrigados a levar uma quantidade menor de produtos (apenas três peças iguais por pessoa, em uma cota total de US$ 300,00 - trezentos dólares estadunidenses-, por exemplo) (COSTA, 2011b).
Ao perguntar para as pessoas em Corumbá, porque faziam compras na “feirinha” do lado brasileiro, ao invés de ir à Bolívia, pois os produtos de lá seriam os mesmos e mais baratos, quase todos os entrevistados deram respostas do tipo, “a feirinha é mais perto, é mais fácil ir até lá... não precisa ir até a fronteira”. Arroyo Concepción fica a apenas 5 km do centro de Corumbá e existe o ônibus municipal de Corumbá, “Fronteira”, porém a percepção dessa distância para os moradores da cidade os leva a comprar na Feira Bras-Bol, localizada próxima ao centro da cidade. Moradores de bairros distantes teriam que pegar dois ônibus para ir à fronteira, o que de acordo com os mesmos, não compensaria pela distância e pelo tempo gasto no trajeto.
Outro ponto peculiar do comércio de roupas na fronteira são as feiras livres de Corumbá que vendem, em uma escala muito menor, os mesmos produtos da “feira Bras-Bol”, com preços muito parecidos. Nessas feiras itinerantes, em que predominam produtos de horti-fruti, se vende de tudo, desde peças de bicicleta, a brinquedos e roupas. Nessas feiras de rua também predominam os feirantes bolivianos, que vêm das cidades vizinhas do lado boliviano. A maior parte das hortaliças vendidas nessa feira é cultivada, também, no lado da Bolívia. Outra atração para os consumidores, nas feiras de rua são as roupas usadas, oriundas de doações de ONGs estadunidenses, que também são vendidas nessas feiras a preços atraentes, movimentando ainda mais o comércio informal.
Por fim, temos o comércio “formal” do centro da cidade, em geral dominado por comerciantes sírios, libaneses e palestinos, mas que possui, em sua Associação Comercial membros de famílias tradicionais de Corumbá. No centro da cidade estão lojas de eletrodomésticos, óticas, farmácias, calçados e roupas, entre outros. Nas lojas são vendidas roupas, em sua maioria fabricadas no Brasil e de melhor qualidade a preços muito mais altos do que os vendidos nas feiras citadas. Em geral, essas lojas atraem os consumidores de mais alta renda da cidade e também aqueles que precisam comprar a prazo, pois as feiras populares, do comércio informal, não aceitam cartão de crédito (na enorme maioria das bancas) e, portanto, não podem parcelar as compras. Nessas lojas é comum também que o cliente possa fazer um “carnê” e pagar por mês a compra parcelada, o que é um chamariz para os consumidores de mais baixa renda. Essas são as lojas “caras”, cujas roupas dão grande prestígio a quem as usa na cidade, ao contrário das roupas da “feirinha” ou das roupas adquiridas na Bolívia.
Como os outros pontos de comércio de roupas são comércios populares, existe um certo estigma sobre as roupas aí compradas, que pode ser exemplificado em falas que emanam principalmente das classes média e alta de Corumbá como essa: “Ih, eu não uso isso não! Isso é roupa da feirinha!”, ou então, mesmo quando adquirem roupas das feiras populares, escutam-se comentários do tipo: “viu que legal? Nem parece roupa da feirinha”. Algumas pessoas entrevistadas também reclamaram da qualidade das roupas chinesas ali vendidas, e do que consideram um “mau gosto” por parte dos bolivianos especialmente o público feminino, sobretudo em relação às calças jeans “que não vestem bem no corpo da brasileira... e as roupas ‘dos bolivianos’ são muito coloridas...”.
Grande parte dos vendedores da feira Bras-Bol, distribuídos em 204 “bancas”, é composta por bolivianos que vêm de diversas partes deste país, mas principalmente do altiplano, para Corumbá. Além disso, muitos brasileiros trabalham na feira, como patrões ou como empregados, além de uma minoria de origem palestina, síria ou libanesa. De acordo com o presidente da “Associação dos Pequenos Comerciantes Bras-Bol”, em torno da feira trabalham cerca de 1.200 pessoas. Destacamos que este é um número muito difícil de medir, pois envolve desde o transporte das roupas a partir da rodoviária de Puerto Quijarro ou da estação ferroviária, até os depósitos da mercadoria, no lado boliviano ou no lado brasileiro, passando pelos carros que levam e trazem mercadorias, até chegar ao pessoal que trabalha diretamente na feira. O entorno da feira Bras-Bol também se tornou um local de comércio, a partir do movimento de fregueses e trabalhadores da feira, com depósitos de bebidas, lojas de material de construção, restaurantes, entre outros.
Para entendermos quem são os trabalhadores da Feira Bras-Bol, procuramos saber, a princípio, qual a origem desses trabalhadores e como chegaram até Corumbá. A partir das entrevistas, feitas na “feirinha” percebemos que muitos trabalhadores no local já possuem uma história anterior de migração interna na Bolívia, principalmente do altiplano para o departamento de Santa Cruz. Foi possível perceber, nas trajetórias de vida de alguns desses trabalhadores que há um processo contínuo de êxodo rural no interior da Bolívia, em que as pessoas procuram melhores oportunidades nas cidades, abandonando suas atividades como trabalhadores rurais, para se dedicarem, principalmente, ao comércio informal.
Existe, portanto, uma rota de busca por trabalho que leva grande parte desses migrantes do altiplano a Santa Cruz de La Sierra e depois ao Brasil, tanto para Corumbá, quanto para São Paulo (destacamos, porém que esta migração para a cidade de São Paulo não será abordada neste artigo). Este é o cenário social predominante dos trabalhadores da feira Bras-Bol: pessoas atraídas para a fronteira com o Brasil, que se apresenta como um local propício aos negócios, em função da ambigüidade de valores de moedas e do alto valor do Real em relação ao Boliviano e pelas possibilidades de lucro com a passagem de mercadorias não taxadas pelos governos (re-atualizando a relação histórica entre povoamento de fronteiras e o “contrabando”). Embora seja possível afirmar que grande parte dos produtos vendidos na feira seja trazida diariamente por comerciantes que fazem o chamado “contrabando formiga” a partir de Puerto Quijarro, nos discursos dos comerciantes da feira Bras-Bol, a origem da mercadoria seria a da via legal: São Paulo ou Campo Grande (via Paraguai) e que as mesmas teriam nota fiscal. Alguns comerciantes, de fato comercializam roupas oriundas de Goiânia e São Paulo (especialmente de moda feminina), mas também adotam este circuito comercial legal como uma tática para legalizar parte de seus produtos, apresentando notas fiscais de parte de suas mercadorias.
A feira Bras-Bol pode ser considerada, portanto, como um exemplo típico da complexidade da vida fronteiriça e de sua difícil regulação por parte do Estado. As relações complexas que se estabelecem entre indivíduos e grupos sociais na fronteira Corumbá/Ladário, no Brasil – Puerto Quijarro/ Puerto Suarez, na Bolívia, que interagem sob condições econômicas e políticas específicas, produzem uma configuração social peculiar e complexa nesta região de fronteira. A partir de entrevistas realizadas na feira, notamos que muitos pais bolivianos optaram por ter seus filhos no Brasil, na maternidade pública de Corumbá e que essas crianças e adolescentes estudam em escolas no lado brasileiro. Uma parte considerável desses trabalhadores de origem boliviana mora também no lado brasileiro, adotando Corumbá como seu novo lar, possuindo documentos como identidade ou título de eleitor. Mesmo que suas famílias optem por viver no lado boliviano, esses jovens e crianças, que muitas vezes têm dupla nacionalidade, cruzam todo dia a fronteira para estudar e são totalmente bilíngües, revelando processos de interação social e de “hibridização” cultural muito interessantes. Muitos desses jovens ajudam seus pais no trabalho da feira, que acaba se tornando um espaço de interação social e de circulação cultural.
A feira é então muito mais do que um lugar de comércio, e pode ser considerada como uma espécie de síntese do encontro com o “outro” na fronteira, como um local onde a cultura se “reinventa” a todo o momento. Caminhando por suas "bancas” é possível escutar cúmbias, pagodes, funks, música sertaneja, huaynos (músicas andinas), além de noticiários da televisão boliviana, ou programas como “Caldeirão do Huck” ou “Mais Você”, da Rede Globo. As camisas de times de futebol são as mais diversas desde clubes brasileiros, como Flamengo e Corínthians, aos times bolivianos (Bolívar, Oriente Petrolero) e times de futebol europeu. Perguntando a alguns jovens, muitos dizem torcer por um time no Brasil e por outro na Bolívia. Muitas línguas são faladas na feira também, como o castelhano, o português, o aymara e o quéchua, o árabe, fora as “misturas” de portunhol, utilizadas pelos vendedores para se comunicar com os compradores brasileiros, que por sua vez, não fazem a menor questão de falar o castelhano, o que denota, em grande medida, uma sensação de superioridade e indiferença também por parte dos brasileiros (que mesmo do lado boliviano, não fazem questão de falar o castelhano, ou mesmo o “portuñol”).
A partir da feira Bras-Bol, os bolivianos que vivem e trabalham na cidade de Corumbá também reafirmam sua identidade, a partir de festividades e cultos religiosos realizados no local. Na páscoa, os feirantes celebram ali uma missa, e, em 2012, aproveitaram a data para realizar a posse do novo presidente da Associação, comemorando a data com uma saltenhada (a salteña é um salgado típico da Bolívia). No dia 26 de agosto de 2012, os feirantes de origem boliviana organizaram a festa anual da virgen de Urkupiña, padroeira de Cochabamba e da Integração Nacional da Bolívia, que reúne não apenas devotos bolivianos, mas também brasileiros. Esta santa “boliviana” já encontra adeptos na cidade de Corumbá, como podemos notar nos supermercados da cidade que vendem velas para Nossa Senhora de Aparecida, lado a lado com as velas da Virgen de Urkupiña, revelando processos de circulação cultural e de invenção de novas tradições na cidade.
Na feira Bras-Bol há uma “gruta” onde foi montado um altar, em que ficam lado a lado a imagem da Virgem de Urkupiña, ladeada por Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e pela Virgem de Caacupé, padroeira do Paraguai, ressaltando o caráter fronteiriço da “feirinha”. No ano de 2012, acompanhamos a festa na qual foi celebrada uma missa, na própria feira Bras-Bol pelo padre brasileiro da Pastoral da Mobilidade Humana de Corumbá. Após a missa, os devotos seguiram em um cortejo até a Igreja Dom Bosco, em Corumbá e depois prosseguiram em direção a Puerto Quijarro, onde organizam uma festa em louvor à Virgem de Urkupiña, já em solo boliviano. 
A feira Bras-Bol, portanto, não está dissociada da cidade, do bairro, das ruas de Corumbá, muito pelo contrário, é parte indissociável da paisagem cultural e urbana. Além disso, como a feira existe há 18 anos em Corumbá, podemos considerá-la como um verdadeiro “patrimônio” cultural da cidade. A Feira Bras-Bol já se tornou, inclusive, um ponto turístico de Corumbá, atraindo os turistas que visitam a região e o pantanal, curiosos com a “feira dos bolivianos” e interessados em comprar produtos mais baratos. A Feira Bras-Bol é entendida aqui como um “Fato Social Total”, isto é, como um fenômeno que engloba várias dimensões, sejam elas econômicas, políticas, religiosas, sociais, culturais entre outras e ao estudá-la, entendemos como, de fato, os limites não imobilizam as pessoas, mas são atravessados por elas, e que as culturas estão permanentemente em fluxo. A partir daí, podemos compreender as zonas fronteiriças como locais privilegiados para observarmos que há lugar para a ação de indivíduos e grupos no manejo da cultura, a partir de uma reorganização da cultura e das identidades no espaço. As fronteiras são, portanto, espaços em movimento e os limites, assim, são entendidos como algo através do que se dão os contatos e interações (não marcando culturas isoladas) (BARTH, 2000). A existência de espaços de interação social, como a Feira Bras-Bol, portanto, têm implicações sociais profundas, pois não se trocam apenas mercadorias, mas laços de solidariedade, lealdades e sentimentos, ou seja, são coletividades que se vinculam na fronteira e contribuem para formar a vida social de Corumbá.
Apesar dessa interação intensa em espaços como a “feirinha”, entendemos que a vinculação entre as cidades de ambos os países ocorre em uma área de fronteira assimétrica, pois não apenas o Brasil acaba exercendo uma dominação econômica sobre a Bolívia, mas também, localmente, o município de Corumbá se caracteriza como um pólo de atração para os moradores dos municípios bolivianos vizinhos. Neste diferencial de poder, a presença dos bolivianos no lado brasileiro é vista por alguns segmentos sociais, do lado brasileiro, como um problema social em Corumbá, por diversas razões e existe, tanto no campo do discurso, quanto da prática, uma forte estigmatização em relação aos bolivianos e seus descendentes (que em alguns casos ou são brasileiros, ou possuem a dupla nacionalidade).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esses dois estudos de caso indicam que é apenas a partir da compreensão da ação social dos indivíduos, que se torna possível superar o dogma da soberania, que pressupõe a fronteira apenas como um limite estático e monolítico do Estado Nacional ou como um território totalmente subordinado ao poder central. As cidades fronteiriças se constituem como um campo de disputas por trabalho, rotas comerciais e pelo espaço da rua (como fonte de recursos econômicos e sociais), onde se dão também os processos de integração formal e informal de grupos sociais entre países. Neste sentido, a etnografia, como método de pesquisa antropológica, pode fornecer as ferramentas para entender o trabalho desses indivíduos a partir do ponto de vista dos mesmos, o que permite, por sua vez, uma melhor compreensão das relações indissociáveis entre o que se convencionou chamar de economia “ilegal” e “economia” propriamente dita. È na vida das ruas da cidade de Corumbá e das cidades bolivianas vizinhas que podemos enxergar as relações sociais envolvidas nessas modalidades de trabalho e a capilaridade deste fenômeno na vida dessas cidades de fronteira. Sendo assim, nessas pesquisas realizadas na fronteira Brasil-Bolívia, ressaltamos que as modalidades de trabalho, consideradas ilegais pelo Estado não podem ser subestimadas em sua importância na economia das cidades fronteiriças de Corumbá/ Ladário – Puerto Quijarro/ Puerto Suarez. Para termos a medida real do lugar que ocupam essas economias “informais”, “ilegais” ou “criminais” na economia urbana desta fronteira (e para além dela em seus circuitos de passagem de pessoas e mercadorias), além das formas complexas de sua imbricação na economia dita “formal” e “legal”, devemos estar atentos às formas difusas e mutantes em que essas modalidades de trabalho se apresentam no cotidiano, com grande extensão e multiplicação de atores sociais implicados, que usam o “diferencial fronteiriço” como um recurso (PERALDI, 2007). De acordo com este autor, a economia criminal funciona como um “sistema de regulação e divisão desigual”, em que “todo mundo toca um pouco nos benefícios do comércio”, o que se reflete na possibilidade de promoção social e econômica para numerosos atores sociais, implicados em uma vasta gama de negócios laterais à sua atividade “criminosa” (PERALDI, 2007: 120). Autores como Vera Telles (2009) entendem que as relações que se constroem entre o lícito, o ilegal e o ilícito constituem um fenômeno transversal na experiência contemporânea. Em suas pesquisas esta autora procura compreender de que forma os “representantes da ordem” atuam nos negócios infomais e ilegais através de chantagem e da extorsão, “definindo, em grande medida, os modos como esses mercados se organizam e se distribuem nos espaços urbanos” (TELLES, 2009: 154)
É neste sentido que enfatizamos a necessidade de adotar uma mudança no olhar, para compreendermos as modalidades de trabalho “ilegal” na fronteira, afastando-nos da dicotomia que associa o “Bem” ao trabalho legal/formal e o “Mal” ao trabalho ilegal/informal. Esta divisão absoluta existe, em grande medida, apenas como discurso oficial, distante da realidade empírica observada, na qual atores sociais, em graus variados de participação e aquisição de lucro “ilegal”, estão envolvidos nessas atividades. Somente a partir das pesquisas empíricas e da produção de um novo olhar sociológico diante desses fenômenos é que será possível compreender a complexidade da vida nas fronteiras e os conflitos existentes entre a lógica das populações locais e a lógica do Estado. Além disso, é preciso entender como esses discursos oficiais e de atores sociais interessados acabam por criar reforçar, na cidade de Corumbá, o estigma sobre os bolivianos, que estariam associados às práticas comerciais consideradas como ilegais pelo Estado, revelando conflitos e disputas pelo poder na fronteira.

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1 Partes deste artigo foram apresentadas na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil, com o título “TRAFICANTES, CONTRABANDISTAS E TAXISTAS: ECONOMIA “ILEGAL” E CONTROLE NA FRONTEIRA BRASIL – BOLÍVIA”, em co-autoria com Giovanni França Oliveira e Davi Lopes Campos.

2 Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/ UFRJ; Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Docente do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços, do Campus do Pantanal, em Corumbá-MS.