DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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SEGURANÇA NAS FRONTEIRAS: UMA GEOGRAFIA SOCIAL DO CONTROLE DO TERRITÓRIO

Adriana Dorfman (UFRGS) 1
Arthur Borba Colen França (UFRGS)2

 

Resumo: O texto aborda conceitos ligados à segurança - nacional, humana, cidadã e pública - e às suas manifestações espaciais, para discutir o crime e seu combate da fronteira gaúcha, a partir das políticas federais para a segurança na fronteira brasileira, especialmente o Plano Estratégico para a Fronteira e a Estratégia Nacional para as Fronteiras, lançados em junho de 2011 e hoje em implementação. Dados sobre o denso povoamento, a intrincada infraestrutura de transportes (por onde circulam quase 70% das mercadorias em trânsito pelo RS) e a criminalidade (mais através do que) na fronteira do RS levam a afirmar que a segurança – em todas suas adjetivações – na fronteira gaúcha não se constrói através de sua estigmatização como lugar do crime ou do (impossível) controle do limite internacional, e que na região estão contidos elementos de protagonismo político que permitem conciliar o incremento na segurança pública e humana da fronteira gaúcha. Aspectos da ENAFRON como a organização de grupos de gestão integrada e a abertura da discussão sobre a segurança para a sociedade civil também podem contribuir para a promoção da segurança na fronteira gaúcha.

Palavras-chave: Segurança. Fronteira. ENAFRON. Criminalidade. Estigmatização.

Abstract: The text presents concepts related to national, human, citizen and public security and its spatial manifestations, in order to discuss crime and the fight against it at the border between Brazil and Uruguay and Brazil and Argentina as envisioned by Brazilian policies for security, especially the Strategic Plan for the Border and the National Strategy for the Borders (ENAFRON), launched in June 2011 and today in implementation. Data on the dense settlement, the intricate transportation infrastructure (channeling almost 70% of goods in transit by RS) and crime (more through than) at the border of the RS lead to state that the security – in all its declinations – on the Gaucho border cannot be built through its stigmatization as a place of crime or through the (impossible) international boundary control, and that the region contains relevant political elements for reconciling the increment in public and human security of the border. Aspects of ENAFRON as the organization of groups of integrated management and the opening up of the discussion on security for civil society can also contribute to the promotion of border security.

Keywords: Security. Border. ENAFRON. Criminality. Stigma.

1. CONTEXTO GERAL

A gestão estatal das fronteiras ganhou novos significados, sobretudo após os atentados de 11 de setembro de 2001. O governo americano, justificando suas ações pela gravidade das “novas ameaças” (narcotráfico, terrorismo, tráfico de seres humanos, crime organizado internacional e crimes no ciberespaço), intensificou estratégias de segurança, tendo como uma das consequências a criminalização da imigração (ESTADOS..., 2007) expressa na ampliação dos controles fronteiriços.
A “novidade” das novas ameaças está na natureza do crime e da violência contemporâneos, e não simplesmente em seu grau ou impacto. O crime deixa de ser visto como uma organização muito bem definida, seguindo regras claras e de fácil rastreio, para se tornar um corpo orgânico, de lógica própria e difícil compreensão. Esse corpo frequentemente é transnacional (RAUFER, 1999).
A transformação no entendimento sobre o crime no século XXI leva também a uma transformação no combate ao crime, um debate ainda em aberto. Os países centrais (basicamente, os do Atlântico Norte, como argumentam os teóricos do Sistema-Mundo) têm endurecido o controle migratório, ampliando sistemas de vigilância e aumentando o efetivo de combate ostensivo em áreas consideradas estratégicas, especialmente nas fronteiras, sendo emblemático o caso do Frontex europeu.
            A página oficial da Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operativa nas Fronteiras Exteriores dos Estados-Membros da União Europeia, estabelecida em 2004 afirma que o “Frontex promove, coordena e desenvolve uma gestão das fronteiras europeias em consonância com a carta de direitos fundamentais da União Europeia, aplicando o conceito de gestão integrada de fronteira. O Frontex coordena as atividades conjuntas das autoridades de diferentes países da UE.” As ações da Frontex se concentram em operações conjuntas, treinamentos, análise de riscos, pesquisa, times de resposta rápida, coordenação de operações de repatriação de ilegais, promoção de ambientes de informações e de seu compartilhamento. O Frontex também organiza a colaboração com os administradores dos limites dos países não pertencentes ao Espaço Schengen, mas identificados como origem ou rota de trânsito da migração irregular para a Europa. Em 2013, o orçamento do FRONTEX foi de 85,7 milhões de euros, ou cerca de 285 milhões de reais.  (FRONTEX, 2013).
Além disso, esses países tem procurado estabelecer parcerias com vizinhos e mesmo com países periféricos, origem de migrantes agora indesejados (CHAPRMAN, 2006). Esse caminho utiliza-se da assimetria de poder entre os negociadores da nova forma de enfrentar o crime, e frequentemente prioriza o combate ao crime à sua prevenção pelo desenvolvimento social. Na fronteira, essa tendência se materializa na externalização do controle dos fluxos para pontos longe do limite territorial; a informatização e o videomonitoramento das passagens; e num descolamento entre a fronteira dos direitos dos cidadãos nacionais e a fronteira de controle (muitas vezes murado) dos estrangeiros. As forças de segurança dedicam-se ao chamado inteligence led policing, conjunto de atividades policiais com base na coleta e análise de informações a montante, ultrapassando a função de inquérito criminal tradicionalmente considerada como o coração dos assuntos de polícia (JEANDESBOZ, 2012).
No que tange à política de securitização das migrações e das fronteiras por parte dos Estados Unidos, Juan Manuel Sandoval Palacios identifica três objetivos primordiais:

  1. atender à demanda, nos países centrais, por uma reserva laboral transnacional e flexível, isto é, por migrantes trabalhadores, cuja mobilidade é impulsionada por políticas neoliberais e ajustes estruturais em seus países de origem ao mesmo tempo em que se dá a criminalização da força laboral de imigrantes irregulares, através de legislações mais restritivas e controles fronteiriços mais estritos, vulnerabilizando-a  e sujeitando a todos os trabalhadores aos níveis extremos de exploração desejados pela acumulação flexível;
  2. impulsionar a acumulação de capital vinculado à indústria de segurança privada (sensores e câmeras, centros de detenção e guardas privados e subcontratados etc.).
  3. controlar a região geoestratégica composta pela fronteira entre EUA e México, onde se localiza parte importante do Complexo Industrial Militar norteamericano, denominado por Ann Markusen et al (1991) de “Cinturão das Armas” (GunBelt) e, no lado mexicano, garantir setores industriais de capitais transnacionais automotrizes, minero-metalúrgicos e maquiladoras (frequentemente trabalhando com componentes militares) (Sandoval Palacios, 2011).

Além disso, os viajantes que cruzam as “smart borders” [ou fronteiras inteligentes]. Em resumo, o contexto europeu de gestão estatal das fronteiras aponta para uma ampla tecnificação dos pontos de entrada nos territórios nacionais, voltada para o controle de veículos, pessoas e cargas. No contexto norte-americano, o histórico da relação entre EUA e México, onde se listam perdas territoriais, integração polarizada no âmbito da NAFTA, desigualdade dentro do bloco, vida fronteiriça estancada pela construção de um muro com sobras de guerra e milhares de mortos ajuda a politizar a questão como uma manifestação da oposição norte-sul e dos rumos tomados pela economia mundial.
Frequentemente, a adoção de novas tecnologias se faz sem a necessária discussão sobre seus efeitos em termos de cidadania, e esse parece ser o caso, haja vista a grande ignorância da sociedade sobre a instalação de equipamentos de monitoramento, sobre os sistemas que gerenciam essas informações e sobre o destino a elas dado, seja pelo Estado ou por grupos privados. Uma das razões da despolitização dessas medidas de controle é o apelo à segurança. Para compreender melhor as divergentes proposições para o enfrentamento da criminalidade transnacional é importante, também, analisar os diferentes posicionamentos diante do termo segurança, enfatizando seus aspectos territoriais.

2. SEGURANÇA E ESPAÇO

O conceito de segurança pode ser empregado para se tratar de diferentes escalas, adequando-se a propósitos distintos. Classicamente, ou existe um quadro de anarquia (no sentido liberal do termo, significando desordem em todas as escalas, geralmente acompanhada de guerra) ou de segurança (estabilidade dos Estados e coesão social) (HOBBES, [1651] 1983; WALTZ, 1979). Assim, segurança, ou, mais precisamente, segurança nacional é um termo que faz referência a ações de um ou mais Estados, servindo para legitimar o uso da força. Numa escala mais ampla, tratar um problema como “assunto de segurança nacional” significa permitir a criação e mobilização de capacidades estatais para lidar com ameaças existenciais, como se uma situação de emergência estivesse declarada. Nesse modelo, problemas de segurança geralmente referem-se ao setor militar, à ameaça à própria existência de um Estado, justificando a guerra. No entanto, essas ameaças podem ocorrer também nos setores políticos, econômicos, social e ambiental (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998).
Geopoliticamente, o problema da segurança traduz-se como uma ameaça à integridade ou ao controle do território estatal e localiza-se nas áreas de maior concentração de poder político e econômico (capitais, polos industriais e de produção de energia) e em áreas fronteiriças, dada a proximidade com inimigos potenciais.
No caso brasileiro, a preocupação com a segurança nacional tem seu auge no pós-guerra, quando a Escola Superior de Guerra formula a Doutrina de Segurança Nacional, com diferentes ações voltadas a assegurar a integridade do território nacional. Há 60 anos, o Gal. Golbery do Couto e Silva, discutindo tal doutrina, escrevia que não parecia razoável temer a eclosão de um conflito ou ataque no arco norte da fronteira brasileira. Ele dividia a fronteira em duas bacias, a do Amazonas e a do Prata, articuladas pela “placa giratória superiormente situada nas cabeceiras comuns das duas grandes bacias hidrográficas”, o centro-oeste brasileiro, e colocava a “linha de tensão máxima no campo sul-americano (...) a nossa verdadeira fronteira viva”, na fronteira gaúcha (SILVA, 1981, p.58). Esse entendimento se materializou na Lei nº 5.449, de 1968, que declarou uma série de cidades como sendo Área de Interesse da Segurança Nacional, a serem governadas por interventores nomeados pelo governador do estado, com o aval do general-presidente. É importante ressaltar que, dos 68 municípios atingidos inicialmente, 21 eram gaúchos e se situavam nas fronteiras com a Argentina e o Uruguai (ASSUMPÇÃO, 2013). Recentemente, a segurança nacional do Brasil volta à baila com a publicação do Livro Branco, que traça diretrizes para o reaparelhamento das Forças Armadas, o reforço de sistemas de vigilância remota e o impulso à indústria nacional de armamentos (BRASIL, 2012).
Ter somente o Estado como referência, porém, obscurece a violência e o medo presentes em outras escalas (HYNDMAN, 2004). Em uma tentativa de ampliar o conceito, segurança passa a ser a diminuição de todas as formas de violência, seja ela física, estrutural ou ecológica (TICKNER, 2001). É preciso observar que, além de ampliar o conceito, faz-se necessário reconhecer que existem muitas situações que o clássico binômio anarquia-segurança não contempla. Nesse sentido, forja-se o conceito de segurança humana, que torna visíveis grupos minoritários e vulneráveis, numa tentativa de justificar intervenções internacionais. Segurança humana pode variar desde uma situação em que não se teme pela própria vida até um entendimento baseado em direitos e garantias, compreendendo segurança como a liberdade do medo, das consequências de conflitos e de outras situações degradantes, como pobreza, precariedade de serviços públicos e destruição ambiental (HYNDMAN, 2004). Entram em cena as periferias e espaços segregados como espaços a serem integrados a partir de seus direitos.
A questão da segurança pública tem maior destaque hoje, uma vez que o debate sobre a violência nas metrópoles é incessante. Para o Ministério da Justiça brasileiro, “a segurança pública é uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei” (2007).
Outra acepção coloca em destaque a segurança pública com cidadania, também dita segurança cidadã, traduzida, em termos de políticas públicas em curso, nos “territórios da paz”. A argumentação em torno dessa proposta é que a violência consiste na “supressão do espaço público, da palavra plural, da capacidade de ação”, o que teria que ser combatido com “estratégias capazes de garantir o acesso aos direitos fundamentais da pessoa humana, entre eles a segurança pública, fomentando a reconstrução de redes de sociabilidade e solidariedade rompidas pela violência, pelo medo, pela segregação, pela exclusão social e pelo individualismo exacerbado das sociedades de consumo contemporâneas” (SECRETARIA..., 2012).
É interessante observar a profunda mudança ocorrida nas últimas décadas na expectativa social brasileira quanto à relação Estado - questões de segurança. Em nome da segurança nacional, os governos totalitários que marcaram o período entre 1964-1980 estabeleciam inimigos internos a partir de critérios políticos, bloqueando o debate público e atribuindo-se o papel de definir as medidas repressivas que direcionariam o desenvolvimento social. Hoje, há apelos para que sejam descartados os chamados “óculos dos anos 80”, visões traumatizadas pela repressão ditatorial e que impedem o diálogo com os órgãos de segurança (anteriormente conhecidos como órgãos de repressão). Convivem, assim, a desconfiança na capacidade dos governos para gerirem as questões sociais com justiça e a aprovação de grandes parcelas da população dada às operações de ocupação e conquista de áreas segregadas, em nome da segurança pública.
Como subtexto, constrói-se a ideia de que existiriam lugares dentro do território estatal onde o Estado estaria ausente, e onde o vácuo por ele deixado seria ocupado por grupos criminosos que se encarregariam da proteção da população, cobrando “impostos” na forma de lealdade, soldados etc., conformando pequenos Estados criminosos nas áreas segregadas, favelas e periferias, também chamadas “áreas de descoesão social”, conforme consta nos documentos do PRONASCI (SOUZA; COMPANS, 2009). As estratégias de “ocupação” militarizada podem ser lidas a partir de um deslizamento semântico através do qual a presença do Estado passa a metaforizar controle, vigilância e intervenção nos trânsitos de pessoas e mercadorias.
É interessante observar a importância dada ao espaço nesses argumentos. Marcelo Lopes de Souza fala de uma geopolítica urbana (2010); Maria Julieta Souza e Rose Compans chamam a atenção para o desenvolvimento dos estudos sobre os “espaços urbanos seguros”, em que o espaço passa a ser visto como instância de intervenção direta na promoção da segurança pública e no combate à criminalidade, e não apenas lócus de ocorrência de delitos; e sobre formas de prevenção de crimes através do Crime Preventions through Environment Design (CPTED), no qual a prevenção de crimes passa por medidas urbanísticas de qualificação do espaço urbano em termos de frequência e diversificação de atividades, iluminação, instalação de câmeras de vigilância etc. (2009).

3. O PLANO ESTRATÉGICO DE FRONTEIRAS E A ESTRATÉGIA NACIONAL DE FRONTEIRAS

A política de construção do Estado em curso nas fronteiras do Brasil ganha uma dimensão em que se aborda diretamente a segurança pública nas fronteiras com o decreto que institui o Plano Estratégico de Fronteiras (PEF), no qual se prevê a articulação das ações e da troca de informações com países vizinhos, das Forças Armadas, da Receita Federal do Brasil e dos órgãos de segurança pública, além de investimentos para equipar esses órgãos (BRASIL, 2011).
Segundo o PEF, a segurança nas fronteiras tem como foco a repressão de delitos transfronteiriços (ações ilícitas cuja organização e resultados extrapolam os limites territoriais e envolvem nacionais de dois ou mais países) “que prejudicam o Estado como um todo, mas que materializam suas mazelas na forma de homicídios, circulação de entorpecentes, aliciamento de menores justamente nas áreas fronteiriças, tornando básica uma intervenção direta e articulada de órgãos de segurança pública” (André Overbeck, comunicação pessoal, dez 2012).
Para a realização do PEF, a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP, a mesma que impulsionou a política dos “territórios da paz”) estabelece a Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON). A ENAFRON tem como objetivo central “intensificar o controle e a fiscalização nas fronteiras, de forma a fortalecer a prevenção, o controle e a repressão dos delitos transfronteiriços e outros delitos praticados nas regiões da fronteira brasileira, em parceria com estados e municípios”. O PEF prevê o estabelecimento de grupos gestores integrados em cada estado fronteiriço (GGI-F), reunindo os interessados em segurança pública e defesa nacional dos países vizinhos com estados e municípios situados na fronteira brasileira e cria os centros de operações conjuntas (COC). O GGI-F possui um caráter decisório, enquanto os COC se pautam pela execução de operações na faixa de fronteira do Brasil. A ENAFRON age diretamente através do financiamento do equipamento e do fomento à ampliação do contingente dos órgãos de segurança pública nos estados da faixa de fronteira do Brasil.
É interessante notar que a mudança na escala geográfica da política de segurança provoca uma oscilação entre as várias estratégias identificadas com a atuação na segurança pública em espaços urbanos e estratégias de contenção na fronteira. Ainda que se declare reiteradamente que a atuação esteja voltada a um incremento da segurança cidadã na área de fronteira, há tantos ou mais indicativos de que se trata de (1) conter a entrada de drogas e armas com destino às regiões mais povoadas do Brasil e (2) dar vazão à indústria da segurança/bélica. Entre tais indicativos, listam-se
- a prioridade dada ao Arco Central, ao mesmo tempo importante rota de drogas em direção ao Sudeste do Brasil e escassamente povoado;
- os investimentos em controle informatizado, seja no Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), na instalação de câmaras do Sistema Nacional de Identificação de Veículos em Movimento (SINIVEM), na aquisição de veículos áereos não-tripulados (VANTS ou drones) ou na instalação de centros de informação para a interpretação desse material; e
- as operações pontuais (Ágata, Fronteira Blindada etc.) que performatizam a presença dos controles estatais, mas não implicam mudanças significativas na organização da sociedade local.
A justificativa - desnecessária - para a intervenção na faixa de fronteira se constrói através do reforço às paisagens do medo animadas por estrangeiros suspeitos (terroristas na Tríplice Fronteira, chineses e africanos e as redes que os traficam), além dos fronteiriços usualmente suspeitos. Esses são os personagens em cena numa campanha midiática particularmente intensa, onde se reproduzem imagens da fronteira como lugar do crime, “a chapa da chapa”, o “epicentro dos problemas sociais no Brasil” (citando, por exemplo, JÚNIOR, 2013).
O crime e os criminosos são também territorializados “do lado de cá” da fronteira, inclusive em documentos oficiais do governo brasileiro. A fronteira e seus habitantes são frequentemente retratados como responsáveis por crimes, e, portanto, carentes de ações securitárias.

4. A FRONTEIRA GAÚCHA

Todo esse quadro se apresenta especialmente problemático na fronteira brasileira no Rio Grande do Sul. Com 1.730 km de extensão – 724 km com a Argentina e 1.003 km com o Uruguai, suas principais características são o trânsito facilitado pela fronteira seca que ladeia o limite e pelas estradas que ligam a região ao centro do país, a relativa densidade demográfica, a rede urbana significativa, a riqueza institucional representada pela malha municipal e a importância cultural e simbólica para o estado (DORFMAN, 2009) (figura 1).

Mais de 3 milhões de pessoas vivem na faixa de fronteira do RS, em regiões onde os problemas de dinamismo econômico e perda da população vêm se agravando, segundo as avaliações de órgãos estaduais de planejamento. Dos 497 municípios que formam o Rio Grande do Sul, 197 fazem parte da faixa de fronteira; destes, 89 são fronteiriços, ou seja, são adjacentes ao limite e possuem suas sedes junto à linha.
Idealmente, cidade e limite opõem-se: a cidade seria o lugar das trocas, enquanto o limite representaria um corte nos fluxos (PIERMAY, 2005). Não é o caso gaúcho, onde se contam 11 cidades-gêmeas com manchas urbanas integradas e cotidiano compartilhado. Portanto, as cidades fronteiriças gaúchas são especialmente importantes para as zonas ou regiões de fronteira, bem como para o conjunto do estado. Os processos e contradições vividos nessas cidades “apresentam grande potencial de integração econômica e cultural, assim como manifestações ‘condensadas’ dos problemas característicos da fronteira” enquanto periferia das redes nacionais (MACHADO, 2004).

4.1 Perfil demográfico e características socioeconômicas

De acordo com as análises que embasam o Plano de Desenvolvimento Integrado da Faixa de Fronteira do RS – PDIF/RS (GOVERNO..., 2012), os níveis de desenvolvimento econômico e social acompanham a clara distinção entre as regiões norte e sul de todo o estado: enquanto no norte predominam as atividades agropecuária e industrial, diretamente ligadas às cadeias produtivas de fumo, suinocultura, avicultura, soja, milho, trigo e fabricação de máquinas e implementos agrícolas, no sul, as atividades de referência são a pecuária e a rizicultura. Isso se reflete na grande partição municipal no norte, e nos extensos municípios ao sul.
Os municípios da faixa de fronteira abrigam cerca de 30% de toda a população riograndense e apresentam históricos problemas de dinamismo econômico e evasão populacional, intensificada com a redução da taxa de fecundidade do Rio Grande do Sul. Embora os padrões de atividade econômica, principalmente no que toca ao setor industrial, venham passando por um processo de descentralização nos últimos anos, o esvaziamento populacional das regiões oeste e noroeste do estado são evidentes (GOVERNO..., 2012).
Para além do desequilíbrio entre as atividades econômicas dentro do próprio estado, tem-se a situação das fronteiras internacionais com Argentina e Uruguai, que também apresentam diferenças relevantes entre si. A fronteira com a Argentina é caracterizada pela atividade agrícola concentrada na produção de grãos, o que ganha uma boa perspectiva de investimentos em função do biodiesel, e pela atividade pecuária. O bom índice de mecanização do campo e a existência de muitas pequenas propriedades familiares (possibilitando a produção diversificada) são fatores positivos que, aliados a uma efetiva assistência rural aos produtores e a uma logística adequada dos transportes, podem garantir a fixação da população na região. Além disso, uma maior valorização de patrimônios histórico-culturais e naturais, como as Missões Jesuíticas, o Salto do Yucumã e o Parque Estadual do Turvo, eleva o potencial turístico da região.
A fronteira com o Uruguai, por sua vez, é pouco relevante no que toca à atividade industrial, ganhando maior destaque no processamento de produtos de origem animal e vegetal. A região apresenta alto índice de fragilidade social, com indicadores abaixo da média estadual, devido em grande parte à baixa diversificação das atividades. Os entraves ligados à pecuária encontram-se na heterogeneidade das criações, a falta de integração da cadeia e o descontrole em relação ao abigeato. Quanto à produção vegetal, a predominância da rizicultura vem cedendo, nos últimos anos, cada vez mais espaço à fruticultura, em especial à vitivinicultura.
Embora a situação econômica da metade sul seja menos favorável que a da metade norte do estado, os municípios de Rio Grande e Pelotas colaboram consideravelmente para um maior dinamismo. Iniciativas do Governo Federal levando ao desenvolvimento do polo naval e à multiplicação de instituições de ensino superior tendem a expandir as atividades ligadas ao setor terciário.
Ainda que apresentem um bom potencial para o desenvolvimento, ambas as fronteiras internacionais no Rio Grande do Sul são marcadas por grandes latifúndios, baixa densidade demográfica e falta de dinamismo econômico. Essa situação é espelhada nas áreas de fronteira em território argentino e uruguaio, o que evidencia uma necessidade básica de integração para o desenvolvimento regional.
 
4.2. A infraestrutura de transportes

Os fluxos de mercadorias que percorrem o Rio Grande do Sul podem ser mapeados através de sete rotas de transporte, conforme o Plano Estratégico de Transportes realizado pela Secretaria dos Transportes do Rio Grande do Sul em 2004. Das sete, cinco rotas têm como extremidade cidades-gêmeas (Uruguaiana, São Borja e Jaguarão) enquanto as outras duas têm como extremidade Iraí, município da faixa de fronteira. É através dos municípios fronteiriços que essas rotas se ligam às malhas ferroviárias e rodoviárias da Argentina e do Uruguai. A importância dessas rotas é evidente, uma vez que, mesmo representando apenas 27% da malha de transportes do Rio Grande do Sul, correspondem a 67% do fluxo de produtos através da mesma. Na tabela seguinte, destacam-se os fluxos legais que percorrem essas rotas e, em negrito, destacam-se as cidades situadas na faixa de fronteira (quadro 1).

Rota

Ponta 1

Ponta 2

Modal

Produtos exportados

Produtos em trânsito

% da malha do RS

% do fluxo total de produtos

1. SE - Argentina

Torres

Uruguaiana

Rodo

trigo, óleo de soja, arroz

veículos, papel

5

13

Vacaria

Ferro

2. SE – Uruguai

Vacaria

Jaguarão

Ferro

cimento, adubo, fertilizantes, farelo e óleo de soja

-

4

22

Hidro

3. N do RS - Argentina

Erechim

Uruguaiana

Rodo

arroz, ração, máquinas agrícolas

-

4

4

4. N do RS – P. Alegre

Porto Alegre

Iraí

Rodo

soja, milho, trigo

combustível, adubo, farelo de soja

2

10

Cruz Alta

Ferro

5. N do RS – Rio Grande

Rio Grande

Iraí

Rodo

soja, fumo

fertilizantes

4

7

Cruz Alta

Ferro

6. S. Borja – Rio Grande

S. Borja

Rio Grande

Rodo

soja

calcário, adubo

4

7

7. Uruguaiana- Rio Grande

Uruguaiana

Rio Grande

Rodo

soja

calcário, farelo de soja, adubo

6

6

Ferro

TOTAIS

27

67

Quadro 1: Rio Grande do Sul – Tabela com as principais rotas de transporte legal de mercadorias – 2006
Fonte: Elaboração de DORFMAN; FRANÇA, 2013, a partir de SECRETARIA..., 2006.

O que se conclui da análise das rotas é o protagonismo da região fronteiriça. Além da produção agrícola de destaque, que se conecta fortemente ao Porto de Rio Grande em demanda dos mercados das regiões Sul e Sudeste do Brasil, a fronteira é ainda importante ponto de ligação entre as produções e mercados brasileiros, uruguaios, paraguaios e argentinos, sendo extremamente relevante nessa rede de transportes.
Evidentemente, os grandes fluxos de mercadorias contrabandeadas e descaminhadas também se servem dessas rotas. Ainda que a passagem do limite possa recorrer aos numerosos “corredores”, estradas vicinais e acesso não-controlados, eventualmente as grandes cargas convergem para as principais rotas. Essa organização corrobora a ideia de que o contrabando é um fenômeno geográfico que se vale da fronteira, mas absolutamente não se restringe à mesma, haja vista a localização dos mercados consumidores no centro do país.

4.3. Criminalidade na fronteira: crimes não-letais

As duas díades fronteiriças no Rio Grande do Sul apresentam características físicas distintas, como se sabe, em função do Rio Uruguai, que separa o Brasil da Argentina, e da prevalência de fronteira seca, na divisa entre o território nacional e o território uruguaio. Embora não determinante, a questão fisiográfica influi no tipo e na intensidade das atividades ilícitas. Da interação das condições de passagem com atividades econômicas, intensidade de fiscalização e formas de povoamento podem-se traçar padrões que marcam as especificidades dos crimes das áreas fronteiriças gaúchas e compará-los a outras áreas não-fronteiriças do estado.
A maior parte das informações a seguir foi obtida com a colaboração de fontes da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul. Relatam elas que as peculiaridades da travessia do rio Uruguai alteram as possibilidades de tráfico, contrabando e descaminho: onde a correnteza é mais veloz, há maior dificuldade de travessia de barcos ou balsas com mercadorias ilegais; onde a mata ciliar for menos densa, a fiscalização pode atuar mais sobre os portos clandestinos. A presença de postos da Receita Federal e Polícia Federal ou de órgãos estaduais de segurança não é impeditiva dos delitos, uma vez que sua capacidade de fiscalização é limitada.
O noroeste do estado, limite com Santa Catarina e fronteira com a Argentina, é considerado uma fronteira estendida do Paraguai, por ser o acesso mais curto desse último mercado à região noroeste do Rio Grande do Sul ou à Região Metropolitana de Porto Alegre. As rotas convertem-se em caminhos para o narcotráfico e, na direção inversa, canais para a saída de carros roubados no Brasil, moeda de troca nessa transação. Por via terrestre ou fluvial, o abigeato aparece com frequência, bem como o contrabando de cigarros e agrotóxicos. Uma relação das atividades ilícitas mais comuns nos municípios fronteiriços gaúchos encontra-se na tabela abaixo (quadro 2).

Fronteira

Municípios

Atividades Ilícitas mais comuns

Brasil (RS) – Argentina

Porto Mauá, Porto Lucena, Porto Xavier e São Borja

Contrabando (cigarros e agrotóxicos), tráfico de drogas e abigeato

Uruguaiana

Tráfico de drogas e armas, contrabando, roubo de cargas

Brasil (RS) – Argentina – Uruguai

Barra do Quaraí

Entreposto de contrabando e drogas vindos de Uruguaiana

Brasil (RS) – Uruguai

Quaraí

Abigeato, contrabando (agrotóxicos) e tráfico de armas

Santana do Livramento

Abigeato, tráfico de armas e munições, contrabando (cigarro, mídias e agrotóxicos) e delitos urbanos

Bagé e Dom Pedrito

Abigeato, tráfico de armas e contrabando

Aceguá

Tráfico de drogas e munições e descaminho (ouro, prata, pedras preciosoas e semi-preciosas)

Municípios ao longo do Rio Jaguarão

Abigeato, tráfico de armas e munição

Chuí

Clonagem de cartão de crédito, estelionatos, crimes via internet, evasão de dólares e pedras preciosas e semi-preciosas, furtos de veículos, contrabando e descaminho (armas, drogas, agrotóxicos e perfumes)

Quadro 2: Rio Grande do Sul – Tabela descritiva dos ilícitos nos municípios fronteiriços
Fonte: Elaboração de DORFMAN; FRANÇA, 2013 a partir de dados da SSP-RS.

Importante ressaltar aqui o abigeato: o roubo de gado é um crime comum em propriedades rurais, ocorrendo mais frequentemente na divisa com o Uruguai. O abigeato pode ser chamado de crime fronteiriço, pois se torna possível pela combinação das práticas econômicas com a fragilidade da fiscalização e a estrutura fundiária que comporta propriedades rurais que se estendem em ambos lados da fronteira. Dados da Polícia Civil apontam que, só no primeiro semestre de 2012, foram registrados, na metade sul do estado, cerca de dois mil casos de abigeato, quase o mesmo número registrado ao longo de todo o ano de 2010 na região (JUNIOR, 2012). Cabe pontuar o risco representado pelo abigeato para as exportações brasileiras, dada a dificuldade em comprovar a qualidade sanitária desse gado.
Uma observação dos delitos acima elencados mostra a diferença entre as escalas postas em contato na ação delitiva. O abigeato é aqui um crime fronteiriço, posto que funciona com uma lógica de alternância de territórios para elidir controles fiscais e sanitários, o que só tem sentido nesses campos contínuos situados sobre territórios estatais diferentes. Na maioria das vezes, no entanto, o ponto de passagem é um nó que articula transportes e comunicações entre regiões diferenciadas por descontinuidades legais (como nas leis mais liberais aplicadas a agrotóxicos e armas no Uruguai), produtivas (como na produção de maconha e coca nas áreas a noroeste do RS) e de mercado (a demanda nos grandes centros urbanos do Brasil), em parte instauradas pela territorialização do Estado, em parte colocadas em relação pelos fluxos transnacionais de longo alcance, de mercadorias produzidas na Ásia e transportadas em grandes volumes para consumo global.
Observa-se também que a tabela acima ignora crimes que foram repetidamente mencionados pelos informantes durante trabalhos de campo. Ocorrências de Lei Maria da Penha e abuso e exploração sexual de menores pouco ou não aparecem na síntese anterior, mas, como em todo o território nacional, são crimes cotidianos e de pouca visibilidade. Sua estratégia de combate, é claro, não passa pelo videomonitoramento ou maiores entraves no cruze do limite internacional.

4.3.2 Criminalidade na fronteira: homicídios

Com base na experiência e nos dados fornecidos pelos órgãos de segurança pública em atuação no RS, pode-se encaminhar algumas conclusões a respeito dos homicídios na faixa de fronteira e no Rio Grande do Sul em geral. Os dados apresentados comparam o total de homicídios dolosos, aqueles em que há intenção de matar, ocorridos em 2012, com a população estimada pela FEE para os municípios em 2011.
A criminalidade é medida, usualmente, pelas ocorrências de homicídios dolosos. A ONU estima que, em 2010, a média global de homicídios foi de 6,9 para cada 100 mil habitantes, sendo as médias brasileiras e sul-americanas maiores do que 20. Tomar a taxa de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes como ponto de corte revela dois grupos de países: aquele com taxas de homicídio acima de 10 reúne países em desenvolvimento, e aquele com taxas abaixo de 10 agrupa os países do Atlântico Norte e da Oceania (UNODC, 2011). Tomando esse índice como base, o índice de homicídios na faixa de fronteira não é relevante: 9,3 homicídios para cada 100.000 hab., comparados com os 15,4 ocorridos no conjunto do RS. Entre as cidades-gêmeas, apenas Aceguá (22,6 hom./100.000 hab.) e São Borja (13 hom./100.000 hab.) apresentam índices acima de 11 para cada 100 mil hab.
Esses dados podem ser mais bem avaliados pela recuperação dos números absolutos: em Aceguá, trata-se de um homicídio numa população de 4.419 hab.; já em São Borja, foram 8 mortes violentas em uma população de 61.669 hab. O dado para Aceguá exemplifica uma distorção frequente nessa faixa de fronteira plena de cidades de menos de 10.000 habitantes, onde um homicídio representará valores relativos muito elevados. Já o dado de São Borja representa outro comportamento recorrente: as taxas que chamam atenção aparecerão justamente em municípios sobre as rodovias, como Encruzilhada do Sul (28,9), Ijuí (15,2) ou Rosário do Sul (15,1).
Na verdade, os homicídios no RS estão concentrados na Região Metropolitana de Porto Alegre, com índices de 29,1 homicídios/100.000habs. Ainda assim, o controle dos trânsitos fronteiriços se mostra importante para a redução das mortes, uma vez que as armas utilizadas são produto de contrabando e furto. Destaca-se que as armas se originam frequentemente no Uruguai, onde sua venda é muito menos regulada que no Brasil.
Conforme dados fornecidos pela Divisão de Estatística da Secretaria da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a grande maioria das vítimas e dos autores de homicídios está ligada às drogas; drogas essas que o estado do Rio Grande do Sul não produz, e que entram através da intrincada malha viária que liga a fronteira à Região Metropolitana, ao porto de Rio Grande e ao Centro-Sul do país.
Assim, a criminalidade não parece ser um problema gerado pela fronteira, mas pode ser melhor administrado a partir de um controle que conte com a adesão da comunidade, uma vez que temos fronteiras altamente integradas. Para diminuir os índices de criminalidade, ou seja, de homicídios, o tráfico de drogas e armas deve diminuir, e para tal, a participação da sociedade local é indispensável.

5. CONCLUSÕES

Será o caso de propor a presença do Estado numa escala 1:1 nessa linha de mais de 1.700km de extensão, historicamente povoada e com uma densidade política significativa? Ainda que uma análise dos pontos de fiscalização das forças policiais na fronteira mostre dezenas de acessos sem vigilância, tornando a fronteira muito suscetível a passagem de produtos contrabandeados, parece ser mais operacional concentrar as barreiras de controle nas sete grandes rotas já mencionadas.
Ainda assim, cabe discutir amplamente a instalação de sistemas de vídeo-monitoramento e vigilância remota, dados os custos e a importância de garantir as liberdades e a privacidade da população. E cabe lembrar que um sistema de vigilância só terá sucesso se de fato integrar os diferentes órgãos de segurança e gestão do território, as informações por eles geradas e as propostas de intervenção.
Diferentemente dos casos de securitização de fronteiras nos países centrais, a população em questão está do lado de cá da fronteira, e tampouco deve ser objeto de campanhas que a submetam ao estigma da criminalidade, criando a possibilidade de medidas de exceção, que “externalizem” a faixa de fronteira dos direitos cidadãos ou que justifiquem a criação de medidas de contenção territorial (HAESBAERT, 2008).
Além disso, “ao contrário das organizações legítimas, o negócio ilegal exige integrar a visão desde baixo, pelo motivo óbvio de estar sujeito a uma maior exposição ao risco no terreno. A exploração, e eventual êxito, dos negócios ilegais são fortemente dependentes de conexões locais, tendo em vista que operam com complexas e instáveis redes de informação e comunicação” (MACHADO, 2007). Diante da urgência de desenvolvimento econômico e social na fronteira, parece importante recuperar a amplitude do conceito de segurança humana como alternativa a ser construída com os fronteiriços. Um documento da Brigada Militar do RS já aponta como ações relevantes o atendimento aos cidadãos dos países vizinhos, a prevenção a acidentes de trânsito, o combate ao tráfico de pessoas (principalmente aliciamento de mulheres para a prostituição), bem como ações voltadas aos delitos ambientais (BRIGADA, 2012). Algumas dessas ações já se institucionalizaram, por exemplo, no Decreto Federal 6.731/2009, que “trata de Cooperação Policial em matéria de investigação, prevenção e controle de fatos delituosos na fronteira com o Uruguai” (BRASIL, 2009).
Estruturalmente, as regiões de fronteira encontram-se na periferia dos Estados, de modo que a cobertura de serviços públicos é precária ou atendida por redes que não se limitam ao território nacional. No caso da fronteira gaúcha, é frequente o recurso aos “jeitinhos” e “trampitas”, mas há situações em que a relação com a institucionalidade é indispensável, na forma de certificações (de estudos, por exemplo), reconhecimentos legais ou pagamentos de serviços (como é o caso da saúde), impulsionando a resolução desses problemas a partir de “diplomacias que partem do local”. Também na área da segurança pública, a interação de facto ocorre, ainda que isso represente certos riscos assumidos pelos agentes públicos no afã de bem cumprir com suas tarefas (como ocorre com a integração entre os bombeiros na fronteira).
Esse quadro corrobora noções de baixa infraestrutura da região, o que também confirma a relevância da integração regional para esses municípios, especialmente para as cidades-gêmeas e para aqueles localizados no limite internacional. Apesar da “cooperação descentralizada” na maioria das vezes não estar objetivada, isso não significa que ela é ineficaz, e não deva ser reconhecida. Não raramente, a sociedade se organiza mais por regimes regulatórios não-oficiais, mas eficazes, do que por cartas-mortas, leis sem eficácia ou reconhecimento (LITTLE, 2009). Essa particularidade é muito relevante no Rio Grande do Sul, e deveria ser entendida como potencialidade no processo de desenvolvimento e construção da segurança pública e humana, e não como ameaça.
Por fim, é preciso se perguntar a quem serve ao ENAFRON. Ainda que admitamos que sua boa aplicação e gestão pode diminuir o contrabando de drogas e armas, não é assim que ele se justifica perante a sociedade brasileira – e fronteiriça. Conter estes crimes nos espaços fronteiriços significa também transpor a violência da repressão e a complicada relação polícia-comunidade dos grandes centros, muito noticiados e visibilizados, para espaços que são a periferia do território nacional. Será que o que as metrópoles podem ganhar compensará o que a fronteira perderá com sua estigmatização como lugar do crime?
Os problemas da fronteira, com atenção para a fronteira gaúcha, passam pelo desenvolvimento social e pelo empoderamento das minorias. Essas são as políticas públicas eficientes para conter os índices de violência doméstica e exploração sexual de menores. Essas medidas, porém, além de serem efetivas apenas no médio-longo prazo, não impulsionam a indústria bélica e da segurança, não empoderam as redes já estabelecidas. Responsáveis pela produção de armas, equipamentos militares, câmeras de videomonitoramento e outros equipamentos, essas indústrias veriam suas fábricas serem fechadas sem a constante criação de ameaças e demandas por segurança. A ENAFRON, portanto, parece desenhada para os metropolitanos e para os “industriais da segurança”. Os fronteiriços, nessa Estratégia, quando muito, apenas a justificam.

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1 Professora adjunta do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: adriana.dorfman@ufrgs.br

2 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e  Bolsista FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul). E-mail: arthurborba@outlook.com