FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

Karoline Batista Gonçalves(CV)
Roberto Mauro Da Silva Fernandes
(CV)
Organizadores
Universidade Federal da Grande Dourados

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CONSTRUINDO BRASILIDADES – O DESAFIO DE OLHAR, ENTENDER E PERCEBER O SERTÃO E AS FRONTEIRAS “PARA DENTRO”1

 

Ana Cristina Yamashita
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
anacyamashita@hotmail.com

 

Resumo
Ao refletir sobre a fronteira vista como trajeto de evolução da sociedade nacional, esse trabalho considera o período da construção da capital brasileira e da ocupação da região da “Grande Dourados”, Mato Grosso do Sul. Ao trazer uma discussão sobre sertão e fronteira tendo como viés o discurso geopolítico brasileiro a partir da mudança da capital do país e a “marcha para o oeste”, busca-se apresentar elementos da consolidação do espaço de Brasília e de Dourados como espaços de representação do poder. Releva-se também que interferências sociais, econômicas e culturais, evidenciadas pelo discurso de segurança nacional e pelo processo de unificação do país, justificam a criação e o desenvolvimento de áreas no território brasileiro. Assim, sugere-se um olhar sobre a formação da fronteira tendo como significado o desdobramento de um mesmo imaginário: o sertão e a brasilidade. Isso leva a fomentar o debate sobre o diálogo entre Brasília e Dourados.

Palavras-chave: sertão, fronteira, discurso geopolítico brasileiro, Brasília, Dourados.

Abstract
Thinking about the frontier seen like the way’s evolution of the national society, this study considers the period of the construction of the Brazil’s capital city and the occupation of Grande Dourados’s region, Mato Grosso do Sul. Bringing the discussion about backland and frontier, taking the Brazilian’s geopolitical discourse starting from the change of the country’s capital city and the “Marcha para o Oeste”, the aim is present elements of spacial structuring
of Brasilia and Dourados like power representational spatial. Social, economical and cultural interferences are also relieved, evidenced through the national security discourse and by the unification process of the country. These are justified into the creation and development of the áreas of the Brazilian territory. Thus, it suggested a glance on the frontier formation taking the ramification of even imaginary as a meaning: the backland and the brasilidade. Thus, this leads to foster a discussion to consider the dialog between Brasilia and Dourados.

Keywords: backland, frontier, Brazilian’s geopolitical discourse, Brasília, Dourados.

 

1 – Introdução

Brasil, brasileiro, brasilidades... país, povo, representações... Estado, nação, reprodução ou espaços em construção?!!!
Olhar, entender, perceber e compreender como produzimos e construímos relações e paradoxalmente como as (re)produzimos através do espaço é um desafio instigador... nossas leituras, nossos olhares diferenciados vão produzir novas idéias, e nesse processo, o desafio maior é fazer com que pessoas entendam e acreditem nestes conteúdos. O dialogar com saberes e a contribuição a partir de um olhar diferente criam e permitem novos significados!
Não é novidade alguma de que o espaço geográfico é produzido e reproduzido pelos homens em suas relações e, nesse processo, a relação espaço-tempo são sistemas sociais onde conceitos e pré-conceitos direcionam à novas leituras do território.
Uma vez considerando que o território é essencialmente um instrumento de poder: quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como? (SOUZA, 2007, p. 79)
Foucault (1996) ao falar sobre o conceito de acontecimento corrobora para a reflexão sobre essas indagações apontando que:

Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não tem o mesmo alcance, [...], nem a mesma capacidade de produzir efeitos.
O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que engendrem, uns a partir dos outros. (p. 6).

Então, podemos pensar que a resposta não permeia apenas sobre o território e as relações de poder em um determinado período, mas caminha pela busca de leituras com relação aos “sujeitos2 ” que constróem e reconstróem esses territórios. Nesse sentido é que essa reflexão, pautada no panorama da construção do território brasileiro, buscará mostrar interações de poder, ora do estado, ora de elites representativas na sociedade, que cooperaram para a urbanização do território brasileiro. Assim sendo, utilizar-se-á como metodologia para este estudo a apresentação desses “objetos” e “sujeitos”, para então, identificar “os fios que os ligam e que fazem com que engendrem, uns a partir dos outros”. (FOUCAULT, 1996)
Torna-se necessário dizer que, neste estudo, a construção acerca do termo território permeará pela idéia de “território nacional”, Estado, soberania e que é compreendido pela idéia de “segurança nacional” e “objetivos nacionais permanentes”, o que, na verdade, refere-se ao território quenão é simplesmente uma variável estratégica em sentido político-militar; o uso e o controle do território, da mesma forma que a repartição real de poder, devem ser elevados a um plano de relevância também quanto da formulação de estratégias de desenvolvimento socioespacial”. (Souza, 2007, p. 100)
Identificamos que, na construção da história brasileira, a instrumentalização de poder influencia e se utiliza do Estado para construir relações.
Nessa busca de compreender o evento brasileiro, insere-se a discussão de fronteira vista como trajeto de evolução da sociedade nacional, cujas condicionantes se dão a partir do período de construção da capital do país e da ocupação da “Região da Grande Dourados3 ”, Mato Grosso do Sul. Essas transformações, nesse estudo, foram denominadas por “construção de brasilidades”, ou seja, a partir das relações entre espaço e poder, em uma temporalidade específica, se propõem identificar elementos e referenciais que possam colaborar para o entendimento da reprodução espacial no Brasil.
Esse caminho se tornou claro à medida que o debate sobre “fronteiras para dentro” e sertões apresentou uma linha de raciocínio norteada pela intervenção do Estado, o que se mostrou como ponto comum entre a interiorização da capital do país e a ocupação do sertão decorrente de uma proposta de territorialização denominada “Marcha para o Oeste”, que nos permitiu eleger como objeto de estudo a cidade de Dourados.
Demarcando o campo discursivo considerado, vale também ressaltar que a questão inicial sobre fronteira a ser discutida, será primeiramente evidenciada a partir dos estudos de Vidal e Souza (1997), que toma fronteira não como limites com outras nações, mas como índice de ocorrências transformativas dentro da área interna de um país, tendo como contribuição a investigação da representação do que é dito por sertão (grifo nosso). Esta afirmação se consolida ao observarmos a primeira abordagem desse estudo que envolve a mudança da capital do litoral, numa condição resultante de urbanizações e construções europeizadas, para o interior do país, num diálogo que permeia pela busca de referências nacionalizadoras, ou seja, pela consolidação de um Estado-nação representativo e de poder. Nesse processo, a fronteira “para o interior” não se apresenta como limite geográfico com outras nações, mas como um “objeto” que envolve condicionantes que serão abordadas no discorrer deste trabalho e que, teoricamente, justificariam a ocupação do sertão. Por outro lado, inserida nesse processo, será também analisada a cidade de Dourados e suas peculiaridades, que também, em função de vários fatores, nos permite perceber evidências, como a sua “vocação agrícola”, que até nossos dias se manifestam na integração e ocupação do sertão.
Em síntese, busca-se construir um raciocínio a partir da proposição de que “a narração da formação da fronteira passa a significar o desdobramento de um mesmo imaginário: o sertão e a brasilidade” (VIDAL e SOUZA, 1997, p. 131), o que, a priori, nos permitiu construir esse diálogo entre Brasília e Dourados, tornando possível olhar, identificar e traçar elementos que apresentam essa condição de sertão e de fronteira nesses contextos, processo esse que, em ambos os casos, conota-se a presença do Estado e do capital nas relações de poder e, portanto, pode ser percebido na reconfiguração do território brasileiro.
Os impactos a partir desse diálogo pretendem apresentar uma reflexão sobre o modo de ver o Brasil, mostrando transformações descritivas e valorativas na interpretação de como se constrói brasilidades, ou seja, ao falar de fronteiras comparadas, intenciona-se olhar e perceber como se organizar a percepção de “coisas” brasileiras, isto é, “nossas brasilidades”! 

2 – Sertão e fronteira... construindo referenciais

As noções de sertão e fronteira são elementos essenciais para a análise que se pretende desenvolver, e, nesse sentido, vale ressaltar que a condição de fronteira-sertão teve como papel crucial o modo como a região foi simbolicamente incorporada no imaginário geográfico da nação. Isso é retratado quando, no cotidiano de nossas vivências, nos deparamos com pessoas que se estabeleceram fisicamente e geograficamente em áreas fronteiriças ou sertanejas.
Na maioria das vezes, ao traçarmos uma análise sobre quais as representações que o não-fronteiriço ou o não-sertanejo faz de cada região a que se refere, identificamos uma política de identidades, apontado por Hobsbawn (1997, p. 9 a 23) como a condição que nos permite inventar símbolos e identidades, enquanto que o “processo” inventa os povos.
Nesse “processo de invenção”, o imaginário é muito mais forte que os fatos, visto que o imaginário é construído historicamente, as referências são passadas de gerações em gerações, como pode ser observado em questionamentos que persistem em abordagens de pessoas que são inerentes as realidades de fronteira-sertão, como, por exemplo: Como é morar aqui? É perigoso?
Diante disso, podemos identificar algumas provocações que irão auxiliar na compreensão dos referenciais científicos que irão delinear a discussão desta temática. Inicialmente, ao nos posicionarmos a partir da primeira indagação, podemos pensar que, se existe a busca de maiores informações de como é morar, se fixar e conviver com as condições de fronteira-sertão, isto provavelmente implica que há o “desconhecimento desse espaço e das relações que nele são construídas. Mas, quando ocorre a próxima indagação subseqüente a primeira, percebe-se que a partir do “desconhecimento”, ou melhor, do “reconhecimento” desse contexto espacial como diferente é a condição comum para a maioria que, automaticamente associam a outra condição construída pelo imaginário de quem não pertence ao lugar, a condição de isolamento, de perigo, de violência, de ilegalidade, de ausência de elementos singulares ao cotidiano de quem vive na centralidade espacial e urbana da sociedade “moderna”, entre outros significados que se constroem.
Assim sendo, tanto a discussão sobre fronteira como a de sertão permeiam por observações científicas desenvolvidas por vários autores. Para a consecução desse debate, define-se alguns autores que, de uma forma ou de outra, abordam os tema aqui levantados de uma maneira que “uns a partir dos outros” sejam construídos.

Sertão... o que é sertão?!!!

De modo geral, partindo dos estudos de Galetti (2000), a autora recorre à história do Brasil, principalmente no momento de colonização, apresentando que,

[...] países de passado colonial, que possuíam territórios que se figuravam como vazios, como fronteira histórica de expansão para o capital e a civilização européias, descobrem a sua própria fronteira: lugar privilegiado onde o discurso se detém para diagnosticar o atraso da nação e aferir suas possibilidades de encurtar distâncias que a separam do modelo europeu de progresso e civilização. (p.26 – grifo nosso).

A condição de atraso da nação abordada pela autora supracitada refere-se aos países dominantes e aos dominados no contexto da colonização, onde se considera que os países dominantes em sua maioria se localizavam na Europa e detinham altos níveis de civilidade e progresso. Em contrapartida, os países que eram colônias, pela sua condição de submissão e exploração, eram considerados atrasados, tanto nas relações sociais quanto econômicas e culturais. Vale ressaltar nesse momento que, diante do período das grandes navegações e da descoberta de colônias, as nações colonizadoras buscavam um mercado e um comércio forte baseado nas Índias, o que refletia na relação que as colônias poderiam oferecer enquanto riqueza e construção de bens. No então “mundo conhecido, o processo cultural e civilizatório nos padrões culturais vigentes já estava sendo construído há pelo menos dezesseis séculos, enquanto nas colônias recém descobertas essa referência temporal e cultural estava “estagnada e atrasada” em relação ao que seria um dos padrões de “moral e bons costumes” para a época.
Já nesse período, a própria relação colônia/colonizador era construída a partir das definições de “nós e o outro”, onde a conotação de “nós” refere-se a Portugal (e Europa) enquanto nação que faz parte do mundo civilizado e “o outro” é subentendido a colônia brasileira, o que fica do lado de lá, sem reconhecimento enquanto nação e civilização.
Nessa leitura, o Brasil era um território a ser desbravado, cujos limites precisavam ser demarcados, principalmente no que se associava a condição de “o que a colônia tem a oferecer”. Expedições aqui chegaram, se instalaram e foram estabelecidas no modelo europeu de progresso e civilização.
Ao apresentar este contexto de Brasil-colônia, Galetti (2000), dando continuidade a construção de referenciais, diz que “na história das representações sobre o território colonial, nos primeiros tempos da colonização, o sertão foi por muito tempo, em múltiplos sentidos, a negação do espaço já conquistado pela Metrópole”. Complementando essa afirmação, a autora ainda explora o tema apresentando representações de vocabulários e significados que delineiam o termo sertão, tais como: espaço bruto, primitivo, deserto, terra de incultos, lugar que está fora de ordem e que acolhe o desertor, etc. Ainda acrescenta que, como palavra mutante, “o sertão de agora, pode não sê-lo de amanhã e o que significa para uns, pode não fazer sentido para outros”. (GALETTI, 2000, p. 48)
Sobre essa abordagem da autora, referenciando à discussão anterior, essa “mistificação” foi e, ainda é, em nossos dias o significado mais singular sobre sertão. Por esse viés, percebe-se que espaços de outrora eram considerados como sertão por se adequarem à estas características, principalmente na condição de vazio, despovoamento, de “lugar fora de ordem” entre outros, a partir do momento que foram “civilizados” (ou não), passam a serem vistos de outra maneira.
Para uma melhor compreensão do significado que se apresenta, pode-se pensar que, enquanto as pessoas estão do “outro lado”, desconhecem a vivência e as relações desse espaço criado como sertão/fronteira no seu imaginário, cujos referenciais são relacionados à desordem, insegurança... por outro lado, quando o conhecem mais intimamente e interagem nas suas relações cotidianas, na maioria das vezes, os “pré”-conceitos e referenciais são (re)vistos e os significados anteriores passam a não fazer mais sentido. Um exemplo é apresentado por Galetti (2000), explicitado na fala de Tollenare4 ao aludir sobre a dificuldade de definir exatamente o que era sertão a partir das várias referências que ouvira dos naturais da terra, onde se percebe que nenhuma delas foi capaz de indicar uma posição geográfica claramente definida:

A dez léguas daqui, perguntava eu, o que encontro? Os sertões. E depois? Ainda os sertões. Esta palavra significa o interior do país. Designa-se vagamente com ela as florestas, os desertos, as montanhas. [...] Estas expressões vagas satisfazem a tudo5 . (TOLLENARE, 1840 apud GALETTI, 2000, p. 166).

Sob o depoimento de um estrangeiro, podemos construir olhares voltados para o sertão, que vão além do mito teórico-conceitual que fora construído, mas como condição de subjetividade encontrada nos elementos intocados da natureza (florestas) e do território não-civilizado (desertos, montanhas), que invadem o país “para dentro”, que para o estrangeiro significava o interior do país.
Por outro lado, para o brasileiro que aqui nasceu e cresceu, o sertão significava (e ainda significa em muitos “Brasis” pelo país) tudo aquilo descrito pelo estrangeiro e muito mais, na medida em que as percepções desses brasileiros, nas dimensões simbólica, geográfica e/ou social, incorporavam o imaginário construído sobre o sertão em todo o processo colonizador português, ao mesmo tempo em que afirmavam uma visão particular dos espaços interiores do território nacional. (GALETTI, 2000, p. 167)
À essa particularidade, o sertão traz consigo significados pertinentes as vivências e aos interesses próprios de cada olhar e percepção que, ora são construídos por aqueles que o fizeram território de peregrinação, palmilhando a pé ou em lombos de animais os seus percursos, ora é o sertão dos que o demandaram em busca de terras para se estabelecer e que ali se fixaram, vivendo em diferentes condições sociais, como vaqueiros, fazendeiros, posseiros... Por outro lado, temos também o sertão dos brasileiros cultos, que o observa de fora, e que, por algum motivo, precisa interagir e “passar” por ele, por muitas vezes a serviço do Estado, como as comissões demarcatórias de limites, expedições de exploração de recursos naturais, de estudos de geografia do país, de civilizar indígenas, entre outras atividades. Outros percorreram sertões em viagens imaginárias, através de relatórios político-administrativos, de narrativas de viagem de estrangeiros e brasileiros, ou até mesmo por obras de ficção ambientadas nos sertões do país (GALETTI, 2000, p. 167).
Sabe-se que tais atividades faziam parte de um contexto político e intelectual profundamente marcado pelo empreendimento de construção do Estado e da nação brasileira, e, neste momento, a questão territorial do país era um dos pontos de importância, visto que a soberania nacional exigia um efetivo controle sobre o território e, sobretudo, o domínio sobre as populações (GALETTI, 2000, p. 168). Por outro lado, não podemos desconsiderar que no contexto de construção da unidade política e territorial brasileira pós-independência dá-se relevância à maneira como as elites dirigentes lidaram com o desafio de gerir um território de dimensões continentais, principalmente porque a maior parte ainda se encontrava como espaços “vazios” ou pouco povoados, o “sertão” do país.
Mesmo diante do século XIX até meados do século XX, o termo sertão esteve sempre atrelado ao conceito de grandes áreas do interior do território brasileiro, como áreas “desconhecidas”, habitadas por nações indígenas arredias ou com baixo índice de povoamento, e, até mesmo, pelo fato de não estarem completamente integradas às dinâmicas do capital moderno. Portanto, a percepção dos espaços sertanejos, ainda nesse período, traz consigo os sentidos de deserto e de barbárie presentes na tradição colonial.
Sabe-se que é a partir desse momento, no ideário de se construir uma nação grande e rica, o sertão, em sua condição espacial, passa a ser visto como patrimônio territorial não explorado. O Brasil, delineado por um pensamento de unificação e ocupação do território traçado na vertente capitalista, encontrará nestes espaços as possibilidades de projeção para um país em desenvolvimento. Nesse contexto, os obstáculos não são empecilhos para o desenvolvimento de uma marcha para a “civilização”, ao contrário, no ideário nacionalista acreditava-se (ou se fazia acreditar) que esse espaço poder-se-ia encontrar genuínas expressões da cultura e das tradições nacionais.
Por fim, em seu discurso Vidal e Souza (1997), considera que o sertão é o terreno para a formação da fronteira no Brasil, cuja ocupação interna para acontecer com segurança deve passar pelo sertão. Com isso, para ela, a partir do pensamento social, a “marcha para o sertão” não totaliza as regiões imaginadas para serem fronteiras, pois essa região imaginária persiste na denominação de sertão.

“E a Fronteira? Como pode ser entendida?!!!”

Ao traçar um raciocínio a partir da historicidade do Brasil que se apresenta mediante o empenho do colonizador em transformar o sertão em uma região colonial, Vidal e Souza (1997), nos mostra que a fronteira é uma pista de uma renomeação para significados constantes na tradição sociográfica de imaginação do Brasil, numa condição proposta por um contexto de simbolização do espaço e de seu povo (grifo nosso). E, nesse processo de simbolização, a fronteira pode ser construída a partir de vários significados, visto que a sua espacialidade pode ser entendida a partir de vários “sujeitos”.
Assim sendo, a princípio estabeleceremos que a condição de fronteira seja diferente de limite, visto que limite é um referencial fixo, estabelecido por relações de ordem e poder.  Em contraposição, a fronteira pode ser entendida como móvel e indefinida, justamente por “não respeitar limites estabelecidos”.
Raffestin (1993) apresenta os temas: limite e fronteira, sob a ótica de que os limites são sêmicos, como comunicadores de um sinal, e que, geralmente o limite pode ser considerado como “toda linha que divide dois ou mais territórios”, informando uma forma, ou seja, indicando a maneira como se estrutura um determinado espaço. Já a fronteira, ela não comunica, mas emite um sinal, dizendo a todos nós quais são nossos limites! Portanto, todo limite é limite, mas nem toda fronteira é limite!
Pode-se entender também que a fronteira é bem definida a partir das relações de ordem e controle do Estado sobre o território (RAFFESTIN, 1993, p. 167), pois na organização deste território existem dispositivos de controle. Assim, podemos dizer que as fronteiras são “dispositivos de organização do espaço social”, muitas vezes subentendidos em processos de urbanização, formação de cidades, programas de comunicações, estratégias militares, entre outras. Um dos “sujeitos” que compõem esse contexto de fronteira é o Estado, que possui poder somente dentro de suas fronteiras; detentor de uma condensação material de forças (em uma época) e que passa a definir o que está dentro, assim como o que está fora, ou seja, “a construção material e simbólica da fronteira”. (grifo nosso)
Assim, o Estado capitalista estabelece as fronteiras ao constituir o que “está dentro”, ou seja, o povo-nação, o que Foucault (2004) retrata com o conceito de “Panóptico, ou seja, os espaços de controle6 . Para ele, o efeito mais importante do Panóptico é “fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos”, e complementa com a idéia de “quem controla vê tudo, mas os controlados ou quem não controla, não vê nada, assim como o “Panóptico pode constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos”. (FOUCAULT, 2004, p. 165-168)
Por outro lado, as fronteiras garantem a nacionalidade, o que na visão de Foucault, nos atrevemos a chamar de “panoptismo nacional”, em que por esse raciocínio, podemos entender que a fronteira também é para “vigiar e punir”, mantendo um poder sobre o conjunto, a população – nacional, regional, municipal, local -, que por vezes pode ser acionado e, por outras, não. Por esta ótica, Foucault, em “A razão do Estado7”discute que a arte de governar é se manter como Estado, que por conseguinte, mantém a fronteira como estrutura territorial para manter a estrutura do Estado.
Vale destacar que o Estado surge a partir da formação dos Estados-nacionais, fruto do capitalismo. Nesse sentido, torna-se necessário compreender qual é o papel das fronteiras no interior do capitalismo. Adam Smith nos auxilia nesse olhar para o Estado, quando insere na discussão as “funções” do Estado (século XVIII) e que, com a mudança para o capitalismo, o Estado passa a se adequar à uma condição de capitalismo empresarial.
Para tanto, se voltarmos às abordagens iniciais desse trabalho, retomando que o espaço é fruto das relações humanas, primeiramente podemos entender que existem fronteiras naturais, mas que mesmo assim são estabelecidas de uma demarcação que não se dá somente pelos elementos físico-naturais, mas sim por acordos políticos construídos a partir de disputas territoriais de poder. Então, podemos considerar que “toda fronteira é uma construção humana e política”.
Contraditoriamente, a fronteira também pode ser vista como “espaço de encontros e desencontros, continuidade e descontinuidades” e isso implica na “construção de novas relações e na anulação do outro”! Essa visão pode ser explicitada por Turner (2004, p. 23-47), ao abordar que a fronteira criou a democracia 8 e, em conseqüência, torna-se uma condição socioterritorial e sociopolítica em um determinado momento. Ideologicamente, paradoxos e contradições são deixados de lado no texto, quando, por exemplo, entende-se que existe uma harmonia da sociedade vigente com a sociedade indígena americana... é a questão do “mito fundador”, ou seja, cria-se um significado político-ideológico, onde a evolução e o progresso tem como destino desbravar fronteiras e civilizar o outro.
No Brasil, “Marchar para o Oeste” surge com a conotação de “fronteira móvel”, e, por outro lado, sinaliza a presença firme de gente povoadora no território do Brasil. “Para dentro”, o país começa a crescer, evidenciando a expansão da fronteira, muitas vezes sendo também intermédio entre um Brasil “cultivado” pela civilização e outro ainda bruto, o “sertão”. Nesse sentido, estender a nacionalização por meio da posse de terras de interior, sem a marca de pertencimento ao Brasil, torna-se a missão dos agentes fronteiriços. E por assim dizer, por meio do pensamento social, é “nesse ocupar de si mesmo que está o profundo sentido de construção da nacionalidade”. Assim, espalham-se fronteiras onde era sertão, relevando-se que com a substituição de um por outro é que faz o movimento coletivo gerador do ideário da nação, esclarecendo diferenças e distinguindo valores. (VIDAL e SOUZA, 1997, p. 135)
Nesse sentido, a fronteira é apresentada como transportadora de significados úteis, que aparece nos relatos e revela enorme interesse para a excursão na imaginação da nação brasileira. Essa condição de significação tem relevância nesse estudo pelas análises da reconfiguração do território e das áreas urbanizadas, de modo particular, perceber como se posiciona a especificidade nacional de Brasília como capital geopolítica e a especificidade de Dourados como cidade-pólo para a exportação de produtos agrícolas e agroindustriais, pois é a respeito de “seu lugar” que as pessoas se identificam, por meio de suas brasilidades.

3 – O discurso geopolítico brasileiro e a construção do espaço social pelo olhar de fronteira-sertão

Diante do modo de produção capitalista, encontramos profundas transformações na percepção e nas relações dos homens com o tempo e o espaço. Surge a noção de tempo útil, enquanto que o espaço é reestruturado pelo político (fortalecimento e centralização do Estado) e pela divisão territorial do trabalho. Quanto à sociedade burguesa, esta se organiza espacialmente sob a forma de Estados-nações, em que “oEstado capitalista funciona como nação”(POULANTZAS, 1981, p. 113). Assim, para Vesentini (1996, p. 40), “o meio (e local) pelo qual se exerce o poder, a dominação, sempre foi, nas sociedades de Estado e, especificamente, no capitalismo, o espaço”.
Mas, com a intensificação da mobilidade espacial do capital (tanto em nível internacional como pelo interior dos países), ocasionou a renovação dos espaços urbanos  e do próprio território, o que coloca o setor de construções como indústria básica, à reprodução do capital. (VESENTINI, 1996, p. 40)
Nesse contexto onde as questões de poder e dominação não podem mais serem vistas como derivações da economia ou da noção tradicional do Estado, é que se coloca, a nosso ver, a valorização da construção do espaço social.
Proferindo uma rápida abordagem acerca da construção do espaço a partir do capitalismo, observa-se que esta construção do espaço social só adquire sua plena existência na segunda metade do século XX, mas, desde as origens do capitalismo, o espaço vem sendo instrumentalizado pelo capital e pelo Estado. No momento em que uma reorganização espacial em certas parcelas da sociedade se fazia necessário para a reprodução do capitalismo, a categoria espaço passa a ser reduzida a percepção de “natureza externa”. E, na arquitetura, essa condição se torna mais explicita como pode ser observada na análise de M. Foucault:

Parece-me que no final do século XVIII a arquitetura começa a se especializar [...]. Outrora, a arte de construir respondia, sobretudo a necessidade de se manifestar o poder, a divindade, a força. O palácio, a igreja constituíam as grandes formas, as quais é preciso acrescentar as fortalezas; manifestava-se a força, manifestava-se o soberano, manifestava-se Deus [...]. Ora, no final do século XVIII, novos problemas aparecem: trata-se de utilizar a organização do espaço para alcançar objetivos econômicos-políticos [...] pouco a pouco o espaço torna-se funcional [...]. Seria preciso fazer uma “história dos espaços” – que seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar [...] (1996, p. 211 a 212).

Assim, no final do século XVIII e, mais especificamente, no século XIX, várias transformações em nível espacial decorrentes do capitalismo industrial tornaram-se bastante conhecidas, como: a rápida urbanização e a formação de redes urbanas com uma complexa divisão territorial do trabalho, não somente entre a cidade e o campo, mas também entre as diversas categorias de cidades; o engendramento dos Estados-nações; as alterações na divisão internacional do trabalho surgidas como o sistema colonial do período moderno e a expansão da Revolução Industrial, além da independência política de inúmeras colônias do continente americano e a maior penetração econômica e política das potencias européias na África e na Ásia, etc. (VESENTINI, 1996)
Diante dessa realidade, o papel da burguesia evidencia-se à medida que consolidava sua influência sobre o aparato dos Estados e nas formas de pensar, que legitimava o avanço da economia do capitalismo industrial, cuja palavra-chave era “progresso9 ”.
Para a compreensão do Estado-nação contemporâneo, Vesentini (1996) aponta como pilares deste processo:

[...] a obra de centralização político-administrativa e unificação territorial feita pelas monarquias absolutistas, a necessidade de um “fechamento” de um dado mercado “nacional” por uma certa burguesia enraizada nesse local, o peso das instituições do exercito profissional e a escola para a consolidação (e organização) dessa construção histórica. (VESENTINI, 1996, p. 48).

É, nesse sentido, que o Estado-nação foi gerado como uma obra política e, nos bastidores dessa história, as relações de poder se estabeleceram, muitas vezes (re)direcionando os acontecimentos, como podemos destacar uma das maiores reformulações urbanas da história, Paris, sob o governo de Napoleão III (Luis Bonaparte) e o prefeito, barão de Haussmann, que promoveu um “embelezamento estratégico”, para melhor controlar os movimentos populares e facilitar a repressão:

O ideal urbanístico de Haussmann eram as vistas em perspectiva através de uma série de avenidas. O que corresponde a uma tendência, que encontramos algumas vezes no século dezenove, de enobrecer necessidades técnicas ao fazer delas finalidades artísticas [...]. O verdadeiro objetivo dos trabalhos haussmanianos era assegurar a cidades contra a guerra civil. Ele pretendia impossibilitar para sempre o levantamento de barricadas em Paris. Com essa intenção, Luis Felipe introduziu a pavimentação. [...] Haussmann pretendeu impedi-las de duas maneiras. A largura das avenidas tornaria impossível a edificação de barricadas, e ruas novas estabeleceriam o caminho mais curto entre os quartéis e os bairros operários. Os contemporâneos batizaram essa empreitada como: “L’embellissement stratégique” [...]. A subida dos alugueis nas áreas centrais empurra o proletariado para a periferia. Os bairros de Paris começam então a perder a sua fisionomia. (BENJAMIN,1987 apud VESENTINI, 1996, p. 49)

Por fim, a instrumentalização do espaço, tanto em nível de Estado-nação como do urbano, coloca-se a partir do capital e também para o controle social e dominação, que foram “subentendidos” pelas formas militares de organização.
Outra questão que não pode ser desconsiderada e nem somente considerada simplesmente como uma instrumentalização do espaço pelo Estado moderno, é a geopolítica. Acerca desse tema, vale ressaltar que,

Não existe apenas uma geopolítica, aquela da razão do Estado; existem outras geopolíticas como, por exemplo, aquelas que permitem uma regionalização mais eficaz, aquelas que favorecem o desenvolvimento de certos povos no seio de Estados federativos multinacionais, aquelas que transgridem as fronteiras frente às quais ficamos muito tempo encerrados, aquelas que atribuem, ao nível local, mais poder aos camponeses, para gerir suas próprias atividades [...] (LACOSTE, 1982, p. 3-9 apud VESENTINI, 1996, p. 54).

Complementando esse raciocínio, SILVA (1967) em uma análise sobre a geopolítica do Brasil fez um rol de definições a partir de vários autores, dentre elas destaca:

[...] A geopolítica considera como o Estado supera as condições e as leis do espaço e faz com que estes sirvam a seus propósitos [...]. Em resumo: ‘a geografia política encara o Estado do ponto de vista do espaço; a geopolítica encara o espaço do ponto de vista do Estado’. (Otto Schäfer); ‘A geopolítica deseja fornecer elementos à ação política e quer ser um guia para a vida prática. Assim, permite a esta passar do saber ao poder.’(Henning); ‘Geopolítica é planejamento da política de segurança de um país em termos de seus fatores geográficos’. (Spykman); [...] e outras semelhantes. (SILVA, 1967, p. 162 a 165)

Assim, podemos pensar o espaço a partir de um Estado nacional, em suas representações, apresentadas por meio das relações de “segurança” e de (re)arranjos espaciais, evidenciando aspectos que se referem as condições de recursos, contingentes sociais, urbanos e logísticos (comunicações, transportes, etc.). No bojo dessa ação política, permeia uma nova ordem econômica e social, cuja estratégia de reordenamento espacial a partir da geopolítica, resulta em novas divisões regionais e administrativas para o país, o que permite um maior controle e maior fortalecimento.
            Silva (2003), em seus estudos acerca de “Fronteira e Identidade Nacional”, resume que:

Enquanto os países europeus consolidaram Estados nacionais baseados na homogeneidade étnica e cultural dos seus integrantes, os países das America que emergiram da situação colonial se viram na contingência de forjar uma identidade singular para a sustentação ideológica da nação-Estado em formação. (SILVA, 2003, p.1).

            Assim a autora procura olhar a fronteira como “fronteira móvel”, tendo como referencial o impacto do artigo de Frederick Jackson Turner na historiografia norte-americana. Apropriando-se de algumas percepções, Silva (2003) trabalha com o mito reforçador da nação no Brasil (e na Argentina) no século XIX, reconhecendo a marcha da civilização para diminuir os efeitos para a conquista dos “espaços vazios”- reconhecido nesse estudo como “sertão” – na construção da identidade nacional.
            Ao discutir o papel da fronteira sob o enfoque turneriano, Silva (2003) destaca duas condições indispensáveis:

[...] a existência de recursos naturais abundantes e “apropriáveis”, enquadrados por uma legislação agrária que os tornava acessíveis a contingentes significativos de população. (SILVA, 2003, p.7).

            Diante do estabelecido por Silva (2003), identificamos em nossa análise que os recursos naturais, principalmente em Dourados, eram extremamente abundantes e pela vastidão de terras do país, ainda estavam “disponíveis” para a apropriação do Estado, visto que na questão das políticas de terras do Brasil 10, deparamo-nos com especuladores, investidores estrangeiros, grandes proprietários, comerciantes e militares beneficiando-se do processo de apropriação territorial em detrimento de ex-escravos, imigrantes, peões,...
            Silva (2003) ainda nos auxilia, esclarecendo que:

Em diferentes momentos históricos, governos de diferentes tendências fizeram um esforço no sentido de promover o mito da epopéia dos bandeirantes (do período colonial) para resgatá-la e aproximá-la de certos episódios contemporâneos da ocupação do interior do país. Foi assim [...] no final do século XIX, começos do século XX, com a “marcha para o oeste” do primeiro governo Vargas [...]. Mas tratava-se de incutir, através da propaganda governamental, uma visão idealizada dos processos de ocupação em curso e em épocas passadas, mas com vistas a políticos objetivos imediatos. (p. 16).

Podemos pensar, por esse olhar, que o pensamento geopolítico, tendo como “pano de fundo” a fronteira-sertão e a construção da identidade nacional, relaciona-se a uma ação estatal sobre o espaço, tal como a transferência da cidade-capital e a consolidação da cidade de Dourados como um referencial regional; promovendo a idealização de toda uma dimensão geopolítica de reordenação espacial do território nacional, e, portanto, de uma (nova) regionalização do Brasil.

4 – Marcha para o Oeste: a presença do Estado consolidando Brasília e Dourados no sertão-fronteira do Brasil

Nessa etapa da discussão, busca-se apresentar a compreensão acerca da construção de Brasília enquanto transferência da capital federal, assim como a consolidação da região da “Grande Dourados” e da cidade de Dourados como pólos concentradores de serviços e da produção agrícola e agroindustrial no sul de Mato Grosso do Sul. Subsidiando essa análise, releva-se a presença do Estado, além do avanço do pensamento promovido pela indústria e pelo capitalismo, que, associado à “Marcha para o Oeste”, viabiliza, através do Plano de Metas e da criação da Sudene, a ideologia nacional-desenvolvimentista.
As reflexões sobre a implantação de Brasília serão desenvolvidas a partir das abordagens de Vesentini (1996, p. 17), em que foi adotada como premissa temporal a fundação de uma nova República em oposição ao mundo antigo, simbolizado pela Europa Ocidental da Época Moderna, sugerindo uma concepção de democracia. Contribuindo com essa discussão, Geiger (1963, p. 425) coloca que:

O desejo de interiorização da Capital do Brasil foi manifestado [...] logo no início de nossa vida independente [...]. Essa vontade tem sido interpretada como um reflexo da rejeição, por parte do povo brasileiro, de todas as reminiscências coloniais, retirando a sede do Governo de uma localização periférica em relação à configuração territorial do País [...] Esta vontade reflete, ainda, o interesse do país independente em povoar o vasto território, colocando a Capital no seu centro geográfico [...].

Para o historiador Varnhagen (1877), existia uma conveniência na mudança da capital do país para o interior e, vislumbrava, teoricamente, sem conhecer in-loco as espacialidades a que se referia, que a nova Capital deveria estar sediada no que denominou de Planalto Central. Membro da elite intelectual do Império e diplomata brasileiro na Europa num momento de consolidação dos Estados-nações, Varnhagen sempre se preocupou com a construção da nação brasileira,

[...] com ênfase na integridade e integração do território, além de uma perspectiva que vê o Estado como único sujeito ativo, e reduz o povo a recurso que necessitava ser aprimorado, educado convenientemente para os fins estatais.
[...] Ora, pois, hoje que não somos colônia; que não necessitamos estar em dependência de Lisboa, e que as vantagens de termos a Capital sobre o mar não compensam a fraqueza e comprometimentos que daí podem resultar em Nação, e outras muitas vantagens que se colheriam de a transferir para o Interior [...] assentamos por princípio que a Capital do Império [...] não deve ser em porto de mar, sobretudo atualmente, em que graças à invenção dos caminhos de ferro podemos fazer em algumas horas comunicar com a beiramar qualquer ponto do sertão [...] O Rio seria uma boa capital se o Brasil tivesse em vista absorver a África, assim como seria a cidade de Cuiabá ou de Mato Grosso se nós quiséssemos estender para o Ocidente; ou Bagé se quiséssemos ameaçar os Estados do Sul. Mas se a nossa missão for só conservarmos integro o território que era de nossos pais e melhorá-lo quanto possível, a Capital num lugar forte e central é melhor. (VARNHAGEN, 1877, p. 10 a15 apud VESENTINI, 1996, p. 72 e 73).

Essa idéia de mudar para desvincular do passado a conotação de colônia fica implícita na condição de fraqueza e comprometimento na formação de uma nova Nação que, espacialmente e simbolicamente pode ser observada no urbanismo e nas edificações deste período no Rio de Janeiro11 que retratam uma elite européia, conforme já apontamos anteriormente nessa análise. Por esse viés, o contorno “exterior” do país, mais especificamente o litoral, fazia parte das relações civilizatórias da sociedade européia, cuja própria capital, por exemplo, Rio de Janeiro, fora reestruturada pela Missão Francesa12 . Nesse momento, a cidade do Rio de Janeiro foi transformada em uma cidade com estruturas européias, com a criação de parques (Jardim Botânico, Cantareira), boulevards, grandes avenidas, “arquiteturas” em estilos neoclássicos retratadas nos palácios, teatros, mansões das elites locais, entre tantas outras estruturas.
Coexistindo nesse raciocínio, encontramos o general Djalma Coelho, diretor geográfico do Exército e nomeado em 1946, presidente da Comissão de estudos para a localização da Nova Capital, apresentando que outro motivo para a interiorização da capital do país se aplica no sentido de que,

A geopolítica é uma doutrina que se aplica ao Estado considerado como organismo geográfico, ou melhor, como organismo espacial [...]. Por isso mesmo é a Geopolítica uma doutrina que pode ser aplicada ao Brasil [...]. Na América do Sul, o Brasil possui uma grande área que se pode chamar também de Terra Central, ou Herthland. Essa Terra Central que pertence integralmente ao Brasil, não está, entretanto ocupada pelos brasileiros senão em proporções insignificantes [...]. De modo que no ponto de vista da geopolítica sul-americana, sob o qual devemos encarar a segurança do Estado brasileiro, o que precisamos fazer quanto antes é realizar a ocupação da nossa Terra Central, mediante a interiorização da Capital, porque esse é o meio que todos reconhecem como o mais rápido e eficaz para se realizar aquela indispensável ocupação e o conseqüente fortalecimento econômico da Nação. (Relatório Técnico Rio de Janeiro, 1948, 1ª parte, v. I, p. 19-22 - Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital / Presidência - apud VESENTINI, 1996, p. 63 - grifo nosso).

Por meio dessa exposição, fica claro o papel político que se apresenta também como uma estratégia militar, que visa a “segurança nacional”, portanto, faz-se necessária a transferência e escolha do local da Capital, assim como as idéias progressistas que se evidenciam apoiadas no discurso nacionalista.
Outra questão apresentada na proposta integracionista era a de que o local para a construção da nova Capital seria estrategicamente relacionado às regiões do país, de modo que a proposta de mudança oportunizará o “progresso” as demais áreas do País.
Assim, se apresenta um panorama que, de um lado, temos o ponto de vista comprometido a priori com o Estado nacional, onde o espaço é visto como algo instrumentalizável para os desígnios da segurança do poder político; em que o “país” é entendido como território, espaço a ser convenientemente ocupado pelo Estado, que usa a população e os demais “recursos” (vias de transportes, atividades econômicas) para esse fim. De outro lado, um ponto de vista que, mesmo sem ser crítico em relação ao Estado, encarava o território como “recurso” e a população como fim, sendo o Estado visto como um órgão com funções de promover o bem comum; “daí imaginar-se a área vital do ponto de vista demográfico e da vida econômica do país como local ideal para a localização da cidade-capital”. (VESENTINI, 1996, p. 67)
Para a geopolítica, torna-se fundamental não somente a preocupação com a segurança do Estado, mas também com as relações que estejam em jogo e que são pertinentes a esse parecer. Assim, a referência à “cultura” e à “história nacional” trata-se de uma proposta de dominação, onde ocorre a apropriação do passado mítico com a concepção progressista, que culmina no significado maior que é a “construção da Nação”, adotado desde o Segundo Reinado. Nesse sentido, é fato dizer que o pensamento geopolítico nacional herdou idéias da elite intelectual do Império.
Diante deste discurso, o tema mais presente sempre foi o da “necessidade” de se interiorizar a Capital Federal. A essa idéia, vinham várias outras interligadas, num conjunto em que aparecem temas e propostas de ação, como, por exemplo:

[...] a integração mais efetiva do espaço nacional; a ocupação do interior do País mediante uma “marcha para o Oeste”; o estabelecimento de uma divisão territorial (administrativa) “mais racional” do País; a construção de uma rede de transportes densa e eficaz para facilitar a interiorização da economia e da população; a preocupação com as fronteiras do País; e, o maior tema, que norteia e incorpora os demais, o estabelecimento de um conceito de “segurança nacional”. (VESENTINI, 1996, p. 70 – grifo nosso).

Um dos temas freqüentemente abordado pelo discurso geopolítico neste momento e que também envolve as preocupações com as fronteiras, com a integridade do território e com a transferência da Capital para o Interior, é a ênfase no sistema de transportes.
É nesse contexto que ocorrem a disseminação de condicionantes para a redefinição de áreas no território brasileiro, entre elas a preocupação com o povoamento efetivo das áreas do Brasil, principalmente o sertão despovoado, que para o entendimento dessa discussão, observaremos o cenário nacional e as propostas desenvolvimentistas do Estado que nos ajudarão a entender e como nos aproximar da realidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul.
No início do século XX, era notável a discussão sobre a construção de um Brasil Estado-nação derivado dos pensamentos até aqui expostos. Assim, nos anos 30 o governo de Getúlio Vargas propõe promover a integração do mercado nacional através da interiorização da economia. Para tanto, organizou a “Marcha para o Oeste”, que além de outras propostas, contemplou a região Centro-Oeste com dois projetos de colonização: a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG) na cidade de Ceres em Goiás, com uma área de 106.000 ha, divididos em lotes de 20 ou 30 ha; e a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), no atual Mato Grosso do Sul, com 200.000 hectares, divididos em lotes com a mesma extensão que os primeiros. Ambas atraíram trabalhadores empobrecidos da região Nordeste e do estado de Minas Gerais, ocorrendo na primeira uma ocupação desordenada, que sem contar com a assistência governamental, posteriormente entra em declínio pressionada por grandes proprietários de terra. A segunda apresentou desenvolvimento através de incentivos governamentais, criando raízes na região.
A implantação dessa Colônia permitiu uma ocupação territorial calcada, inicialmente, na pequena propriedade porque tinha como objetivo, justamente, a “nacionalização” da faixa de fronteira.
Na década de 50, dando continuidade a proposta de interiorizar a economia, é estabelecido o Plano de Metas (1956-1961) no governo Juscelino Kubitscheck, determinando a implantação de importante malha rodoviária e infra-estrutura no Centro-Oeste. Segundo Guimarães e Leme (2002, p. 38),

O Plano de Metas foi um grande divisor de águas entre o processo de ocupação – tipificado pelas frentes de subsistência e as frentes de pecuária extensiva e rudimentar – e a moderna incorporação do Centro-Oeste, caracterizada pelas novas frentes de agricultura comercial e bovinocultura tecnificada, assim como as frentes especulativas. O Plano foi responsável pela montagem de um novo padrão de acumulação de capitais, em cujo arcabouço articulava três grandes eixos: a) abolição dos pontos de estrangulamento da economia, por meio de investimentos infra-estruturais a cargo do Estado; b) ampliação e instalação das indústrias de base, estimulando investimentos privados nacionais e estrangeiros; c) interiorização forçada da economia, através da construção da nova capital, sintetizada na proposição de JK, segundo a qual, “todos os rumos levam a Brasília”. (grifo nosso)

É nesse conjunto de propostas que, ao lançarmos o olhar sobre Dourados, MS, nos apoiaremos inicialmente nos estudos de Silva (2000) e Abreu (2005) para traçarmos uma trajetória sobre o desenvolvimento da cidade e a sua importância no panorama regional e brasileiro.
Assim, para a consecução e entendimento do que se propõem, Silva (2000) apresenta que inicialmente:

[...] é necessário esclarecer que as etapas da trajetória do desenvolvimento da cidade encontram-se estreitamente relacionadas à evolução da história de sua região. As modificações históricas desta última repercutem com intensidade e também mudam a cidade. Assim, as fases do desenvolvimento regional, grosso modo, coincidem com as etapas da evolução da cidade. Essa constatação evidentemente se aplica aos processos mais amplos que se manifestam em escala nacional, ou mesmo internacional, embora os intervalos temporais, neste último caso, nem sempre coincidam perfeitamente. (SILVA, 2000, p. 84).

Em síntese, para compreender os “por quês” até aqui traçados, torna-se necessária a compreensão de todo um processo em nível “macro”, ou seja, nacionalmente e geopoliticamente falando, que consistiu na reorganização espacial e política do País. De modo geral, esse processo envolve o entendimento acerca da intervenção do Estado no próprio país, a proposta da mudança da capital, ampliando suas fronteiras para o sertão até o Centro-Oeste, a região da “Grande Dourados”, e, por conseguinte à cidade de Dourados propriamente dita.
Desse modo, torna-se necessário engendrar pela evolução urbana de Dourados, enfatizando duas etapas distintas que se referem à temporalidade deste estudo, onde:

[...] a primeira que se inicia na primeira década do século XX e estendendo-se até aproximadamente 1940, correspondendo à origem e consolidação do novo núcleo urbano como pequeno centro de abastecimento local, resultado da interação das duas principais atividades econômicas regionais: o extrativismo da erva-mate e a pecuária extensiva. (SILVA, 2000, p. 84).
 
Já na segunda fase (1943 a 1970), sob o olhar desenvolvimentista do Estado nacional, encontramos o município de Dourados-MS, consolidando-se com a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), criada no contexto da “Marcha para Oeste” e implantada pelo então Presidente da República Getulio Vargas, fato este que passa a nortear a ocupação efetiva do sul do atual estado de Mato Grosso do Sul – é a ocupação do “vazio” do sertão e das fronteiras. Finalmente, entre os anos de 1975 e 1985, a ação da monocultura da soja, introduzida pelos colonos sulistas na CAND, passou a ser fomentada pelas políticas publicas para o desenvolvimento regional que desde o contexto da ditadura – poder centralizado – objetivava desenvolver na região da Grande Dourados uma agricultura de alta produtividade, principalmente em seu município pólo - Dourados - MS. (Silva, 2000)

Mas, por quê Dourados?
Silva (2000) justifica que a questão da ocupação e controle das fronteiras nacionais, assim como o problema da presença de interesses ou populações estrangeiras nessas áreas de fronteira fez com que:

... a porção meridional do Mato Grosso do Sul, sob a notória influência da Cia. Matte Laranjeira, grande empresa controlada por capitais internacionais e que promovia quase exclusivamente a utilização de mão-de-obra estrangeira (constituída, em sua maior parte, de paraguaios responsáveis pela operacionalização da produção e, em menor proporção, de argentinos encarregados da parte administrativa), tornou-se um dos alvos privilegiados das intervenções desencadeadas pelo Estado Novo nesse período.(SILVA, 2000, p. 107).

Assim, seguindo as concepções norteadoras de integração e segurança Nacional do Estado, a necessidade de controlar e povoar não somente o sertão “para dentro”, mas também a condição de “sertão-fronteira”, Dourados e região foi “integrada” nos planos de desenvolvimento nacional, ou seja, com a ocupação desta área por brasileiros que possuíam costumes efetivamente “do Brasil”, e não decorrentes de outras interferências sócio-culturais, a saber:

 Para o Estado Novo, a existência da Companhia controlando largas extensões das melhores terras do Estado, funcionava como uma barreira que se opunha ao prosseguimento da “marcha” que garantiria a ocupação daquela região de fronteira por brasileiros natos. Ao mesmo tempo, a Companhia, ao fomentar a ocupação da região por um contingente demográfico estrangeiro responsável pela rápida disseminação de costumes estranhos e sobretudo de uma língua alienígena (o guarani), além de promover a larga circulação de moedas estrangeiras (a libra esterlina e o peso argentino) em território nacional, funcionava como um perigoso vetor de desnacionalização da fronteira. Nessas condições, era urgente desencadear no sul do atual Mato Grosso do Sul um processo de nacionalização da fronteira, através da remoção do obstáculo representado pela companhia estrangeira e a posterior promoção da ocupação da referida área com população e costumes genuinamente nacionais. (SILVA, 2000, p.107 a 108).

Desse modo, o Estado Novo criou um projeto de colonização pública, a CAND13 ,  que se tornou o principal instrumento utilizado para a implementação da “Marcha para o Oeste” e que respondia a preocupações essenciais, como:

[...] a ocupação dos espaços vazios; o combate ao coronelismo e à sua base de sustentação, o latifúndio, através da promoção da pequena propriedade familiar dos colonos; a garantia de abastecimento alimentar em um contexto de conflito mundial de duração e conseqüências incertas para o País; o redirecionamento das correntes migratórias internas descortinando uma nova rota de migração em direção ao Oeste, estabelecendo assim uma alternativa ao fluxo migratório majoritário em direção ao Sudeste industrializado; e finalmente o esvaziamento de tensões sociais e dos conflitos pela terra em regiões problema, como o Nordeste, através da transferência de contingentes demográficos dessas regiões para o Oeste. (SILVA, 2000, p. 107).

            Diante do exposto, a proposta de unificação e de um “Brasil – nação para todos”, ao menos na questão discursiva, foi abordada como um dos subsídios para a (re)estruturação da região fronteiriça de Dourados, onde a própria proposta da CAND vinha de encontro à uma realidade econômica e regional ligada ao latifúndio, que se resumia na extração ervateira e na pecuária extensiva. A esse panorama, soma-se o fator mais importante da política nacional vigente que condicionou na interiorização de Brasília e no programas governamentais de intervenção aqui na região, a ocupação dos espaços pouco povoados do Brasil e, nessa linha de raciocínio somava-se a de potencializar estas áreas de modo a auxiliar na economia nacional.

Apesar do baixo nível do sistema produtivo adotado, a CAND foi sem dúvida a iniciativa estatal desencadeada pelo Estado Novo que maior impacto e mais repercussão produziu na trajetória do desenvolvimento de Dourados e de sua região. Em função da colônia, o município de Dourados transformou-se, ao longo dos anos 50, de insignificante centro de pecuária tradicional e extração ervateira, em principal pólo de produção agrícola do Estado. Nesse período, verificou-se uma verdadeira metamorfose na base da produção da agropecuária municipal [...]. (SILVA, 2000, p. 109).

Vale ressaltar aqui que, diante dos incentivos e do desenvolvimento de Dourados, a cidade se tornou um pólo de produção agrícola do Estado. Nesse contexto, consolida-se no “sertão matogrossense14 ” uma rede urbana regional e bem estruturada.
Assim, a Região da Grande Dourados nasceu, oficialmente, como uma “área-programa15 ”, cuja preocupação estava relacionada à integridade do território brasileiro, e, nesse sentido, ampliava-se a rede transportes e comunicações:

[...] Porque o problema primordial das nações ocupantes de espaços desérticos é povoá-los, não transitória e precariamente, mas de modo estável e duradouro. Para fixar a população junto ao solo cumpre possuir rede de comunicações abundantes, para que se dê a exploração econômica efetiva. A mudança da Capital não é, portanto, um ato isolado, como que solto ao ar. Cumpre acompanhá-lo de uma política territorial bem estruturada [...]. (BACKEUSER, 1947, p. 1033 a 1034 apud  VESENTINI,1996, p. 77 – Grifo nosso).

Na justificativa da SUDECO 16, a região da Grande Dourados se tratava de uma área com elevada produtividade e que se encontrava sob o impacto direto da influência do Estado de São Paulo, em virtude das inter-relações comerciais com as áreas de mercado do Centro-Sul. A idéia era fomentar a infra-estrutura necessária para potencializar “vantagens comparativas” já estabelecidas, quais sejam: a fertilidade dos solos e a produção agrícola. Assim,

As metas e objetivos do PRODEGRAN 17 eram fortalecer as atividades produtivas da região e a vocação regional para a exportação de produtos agrícolas e agroindustriais. Nesse sentido, apareceriam algumas proposições como: incentivar o aumento da produtividade; utilizar práticas conservacionistas de maior tecnificação e modernização das práticas de comercialização; introduzir novas culturas; promover o combate à erosão urbana e intensificar a infra-estrutura capaz de potencializar essas realizações.
Além dessas, havia também discursos acerca de “equipamentos sociais”; uma perspectiva que se perde no decorrer da programação efetivamente elaborada e realizada.
A SUDECO organizou os subprogramas de armazenamento, energia elétrica (rural), transportes (estradas vicinais), controle de erosão urbana, pesquisas agropecuárias, assistência técnica ao produtor rural, promoção da suinocultura, elaboração de planos urbanos de uso do solo e instalação da Bolsa de Cereais de Dourados (ABREU, 2005, p. 161).

Cumprindo com as propostas desenvolvimentistas de transporte, comunicação e infra-estrutura, o planejamento criou uma ‘região’, cujo papel da Grande Dourados era o de ‘Celeiro agrícola do País’. Assim, o município de Dourados e sua região de abrangência consolidam-se como uma área-programa, que passou a atrair imigrantes, capital comercial, capital agro-industrial e o capital financeiro. Para Abreu (2005), esses fatores contribuíram também “para justificar, do ponto de vista do planejamento, a divisão político-administrativa do Mato Grosso, como uma política regional de desenvolvimento”. Ainda para a autora, é nesse sentido que o planejamento “cria uma região”.
Já Brasília, capital do país, atualmente é uma cidade com escassas atividades produtivas. Vesentini (1996, p. 141) apresenta que “Brasília vive de sua ‘função político-administrativa’: o país todo lhe ‘paga’ os serviços como o capital Federal”.
Por outro lado, Dourados se dinamiza por intermédio do setor produtivo agrícola, da prestação de serviços e do comércio, adentrando no patamar do desenvolvimento. Para Silva (2000, p. 112), esse processo de dinamização, desencadeado pela CAND, foi um dos fatores decisivos para a ampliação e conformação da atual rede urbana regional, ao dar origem, durante a década 50, a diversos povoados e vilas que posteriormente foram transformados em cidades. Ressalta-se que o surgimento desses centros forneceu importante contribuição para a densificação de relações que possibilitaram a promoção de Dourados à condição de centro de uma hierarquia urbana mais bem estruturada.

5 – Considerações Finais

O desafio que nos permitiu chegar até aqui, teve como proposta, inicialmente, traçar, a partir da temática “fronteiras para dentro” e “sertão”, uma análise sobre a criação e a consolidação de duas cidades do centro-oeste do país, Brasília e Dourados, no MS.
Na busca de referenciais para a construção desse diálogo, em meio a leituras, estudos e idéias, a palavra brasilidade surgiu como “uma luz no fim do túnel”...  uma pequenina e fraca luz, muito distante, mas... perceptível. Assim, num labirinto de idéias e caminhos que necessitavam serem traçados, buscar um significado para o termo brasilidade na construção de fronteira-sertão passou a ser uma hipótese, que a principio, norteou o olhar, o entender e o perceber o que poderia ser construído a partir de então.
Brasilidade...brasilidades... o primeiro passo foi perceber que no país que vivemos, na diversidade social, econômica, cultural e territorial, não existe uma brasilidade a se construir, mas várias...portanto, esse passou a ser o desafio, de construir brasilidades, para entender o objetivo real deste trabalho.
O primeiro olhar foi para perceber e entender o sertão e a as fronteiras, não somente pragmatizá-los a partir de conceitos diversos, mas construir referenciais que permitissem olhar para um sertão que se apresenta não somente nos conceitos expostos a “olho nú”, mas o sertão de várias brasilidades e significados... o sertão que outrora era vazio e desinteressante, que significava atraso e “fora de lugar”, e, numa mutação de interesses, se torna o “sertão do poder”...
... o mesmo procede com a fronteira... fronteira do desconhecido, do outro, da distancia, da estranheza...e, que pelo mesmo processo de interferência do sertão, torna-se a fronteira de aproximação, de divulgação, de significados!
O espaço?! Brasilidade (re)construída.... pois não tem como construir algo que já existe, mas reconstruí-lo a partir de olhares e sujeitos que lutaram na sua  transformação... ora, inicialmente, os nossos “objetos” – espaços – faziam parte do sertão e fronteiras que retratavam o atraso de um Brasil que buscava renovação... contrariando o que foi exposto, numa inversão de jogo, o que outrora era atraso, foi visto como sinônimo de progresso e desenvolvimento... era a renovação que o País buscava...
...no entanto, como caminhar? ... no estudo do espaço pela visão política que o Estado vai se estruturar... portanto, a geopolítica será a grande estratégia e resposta para o desafio da renovação.... renovação do Estado na construção de uma nova Nação, portanto, também um Estado Novo, que no auge da sua mocidade, busca forças e não mede esforços para o bem da nação... integração e desenvolvimento a partir das idéias progressistas e capitalistas será a ideologia do momento, e quem vai deter do poder de executar esses planos... o Estado!
Assim, os caminhos foram traçados e os olhares caminharam no sentido de perceber e entender o sertão e as fronteiras “para dentro”, cujo poder maior que se tornava como ponto-chave de toda esta estratégia, era o Estado. Por esse viés, foi construída toda a Marcha para o Oeste, cujos focos a serem observados nesse estudo a que nos propusemos, era a Capital do país – Brasília, na categoria de cidade político-administrativa - e a cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul, na categoria de “capital do agronegócio”.
Assim, o desafio se concretizou em dois objetos de análise, Brasília e Dourados, que foram delineados a partir dos sujeitos e/ou significantes que, de algum modo, colaboraram ou interferiram para a consolidação desses espaços, ora sociais, ora físicos, ora culturais, ora espaços de representação e de valores.
Diante do exposto, considera-se que, enquanto Brasília foi criada como uma cidade planejada, numa negação de referencias históricas na busca do “novo” como referencial de uma nação que estava se estruturando. Por outro lado, Dourados surge alienada aos princípios de modernidade, num sertão-fronteira despovoado, estabelecendo-se enquanto núcleo urbano a partir da historicidade absorvida da colônia, miscigenada as referencias socioculturais e econômicas.
Por fim, entendemos no processo de sertão - fronteiras para dentro que Brasília foi o marco de ocupação do sertão como representação do poder estatal, retratando todas as condições que significavam a integração nacional, o desenvolvimento e a modernidade. Observa-se que Brasília foi uma proposta feita na juventude, sem pensar nas conseqüências que o tempo e a consolidação das estruturas sócio-econômicas, culturais e urbanas pudessem trazer. Apesar de não ser o objeto de estudo desse trabalho, vale apontar que, como Brasília foi pensada sem história, ou seja, com uma história a se construir, os problemas surgiram (e ainda surgem), como é o caso da demanda populacional que ocasionou o surgimento das cidades-satélites, além de várias outras conseqüências, como empregos, as dificuldades de circulação, produção econômica da cidade, entre outras.
Por outro lado, Dourados também fazia parte deste contexto de sertão e fronteira, foi ocupada para se evitar a diversidade sociocultural que se instalava, principalmente após a Guerra do Paraguai. É inegável que, com a Marcha para o Oeste, essa condição de diversidade étnica e cultural local tenha se intensificado, se colocando muito mais representativa que a condição econômica. Nesse sentido, alvo de planos e metas do Estado, Dourados foi crescendo em cada momento, até tornar-se uma cidade significativa na região. Por fim, Dourados também possui seus “ajustes”, mas tem a possibilidade de se desenvolver a mercê do tempo, porque a sua história está sendo construída, e não foi negada. Se estabelece como uma cidade-média, que possui uma importância regional como prestadora de serviços diversos, hoje ampliados na área da saúde, educação e um comércio que está em desenvolvimento. Portanto, a cidade está acompanhando as mudanças e está respondendo-as, adequando as suas potencialidades e construindo outras, pois ainda tem uma relação de produção, notadamente no setor agrícola globalizado, com ampla presença no seu cotidiano.
Assim, construir brasilidades a partir desse estudo foi e é o desafio de olhar, entender e perceber o que é o sertão e as fronteiras hoje. Como foram construídos e o que estes envolvem, significam ou representam na atualidade, no nosso cotidiano, na nossa vida diária... é a reflexão que aqui se pretendeu construir, e por fim, como olhar, entender e perceber “para dentro” estas redefinições espaciais, mesmo que sejam com olhares diferentes do que se estabeleceu.

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1 Reflexão a partir da temática Fronteira: novos e velhos significados, da disciplina Fronteira, território e migração, professor Dr.Jones Dari Goettert, Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), julho de 2009.

2 Vesentini (1996, p. 37 e 38) apresenta este termo baseado nas discussões de Marx e considera a interação entre “sujeito” e “objeto” a partir de uma relação de influências recíprocas, como condição imprescindível para a construção do espaço geográfico pela sociedade capitalista.

3 Segundo dados do Programa de Desenvolvimento da Grande Dourados (PRODEGRAN), estabeleceu-se, oficialmente, a “Região da Grande Dourados” como uma “área-programa”, para fortalecer as atividades produtivas da região sul de Mato Grosso do Sul, em observância a vocação regional para a exportação de produtos agrícolas e agroindustriais. (MINTER/SUDECO, 1976).

4 Um dos exemplos presentes no estudo de Jeanine Potelet sobre viajantes franceses que estiveram no Brasil no século XIX, onde Tollenare relata sua viagem por províncias do nordeste brasileiro, em 1840.

5 Saint-Hilaire, A. Journal des voyages. Apud Potelet, Jeanine.Le Brésil vu par les voyageurs et les marins français – 1816 – 1840 – Temorgnages et Images. Paris, 1994.

6 O exemplo utilizado por Foucault é a prisão.

7 Vale esclarecer que em “A Razão do Estado”, Foucault (discute a relação de controle representada por militares e “pela polícia”.

8 Na Europa não havia democracia como prática ou expressão das relações cotidianas, foi fundada sob o peso da história.

9 Acerca desse assunto, Eric J. Hobsbawn, discorre em sua análise a idéia de uma burguesia triunfante, que promove a criação de grupos distintos, o que no século XIX se entendia por “nacionalidade”, prosseguindo neste raciocínio para a formação do conceito de “nação” e, por conseguinte, para as aspirações de formas Estados-nações, tudo isso como produto da Revolução Francesa. In: HOBSBAWN, Eric J. A era do capital: 1848-1875. 9ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 22-24 e p.103.

10 Para maior aprofundamento, Silva (2003) sugere: Ligia Osório Silva e Maria Verônica Secreto, “Terras publicas, ocupação privada: elementos para a historia comparada da apropriação territorial na Argentina e no Brasil”, Economia e Sociedade, Revista do Instituto de Economia da Unicamp, n. 12, junho de 1999, p. 110-141.

11 Naquele momento, capital do Brasil.

12 Grupo formado por arquitetos e urbanistas da Escola de Belas Artes de Paris que vieram para o Brasil, ainda colônia de Portugal em 1822, a convite da elite real portuguesa que, ao se instalar na colônia “necessitava” das referências européias e de “civilização”.

13 A Colônia Agrícola Nacional de Dourados foi criada pelo Decreto-lei nº 5.941 de 28 de outubro de 1943.

14 Até esse período, o Mato Grosso do Sul fazia parte do antigo Mato Grosso. Em 1977 foi promulgada a lei de dividiu administrativamente o Estado de Mato Grosso em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.

15 Área-programa é no contexto do planejamento desenvolvimentista uma região a ser potencializada de acordo com suas vantagens comparativas e que tem como pólo uma cidade a ser promovida, no sentido de irradiar o desenvolvimento, podendo ser uma já existente e que “naturalmente” atua como pólo ou até ser planejada e construída, como ocorreu no Polamazônia, por exemplo. Ver. Abreu (2001); Souza (2002). In: ABREU (2005). Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo, p. 161.

16 Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste – SUDECO, é um orgão brasileiro que foi criada por meio da lei nº 5.365, de 1 de dezembro de 1967, com o objetivo de promover a expansão da região Centro-Oeste.

17 PRODEGRAN- Programa de Desenvolvimento da Grande Dourados, criado em 7 de abril de 1976. Relatório do SEPLAN/IPEA. Desempenho do PRODEGRAN (Relatório até junho de 1977). Brasília, ago./1977.