DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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A FRONTEIRA CHÃO COM MANOEL DE BARROS: DO ESPAÇO-TEMPO LISO AO ESTRIADO NA INVENÇÃO DE UMA LITERATURA MENOR

Thiago Rodrigues Carvalho (UFGD)1
Jones Dari Goettert (UFGD) 2

 

Resumo: Este é um texto que deseja ser uma escrita sobre o chão. Como resultado de nossas perambulações pelos limites internacionais entre Brasil e Paraguai, ele narra a fronteira como chão de estrias e lisuras, densidades e ausências, complexas vivências. Perspectivas analisadas por agenciamentos de imagens observadas e sentidas na poesia de Manoel de Barros. Promovemos o encontro entre a poesia que revela o chão e os espaços fronteiriços viajados, achando e inventando no mundo vivido, descaminhos que ligaram (?) a literatura poética as nossas experiências, não sabemos se conseguimos fazer isso? No entanto, sem rumo e nem comprovações, nos deparamos com “geograficidades” do ínfimo, espacializadas por uma literatura menor, que também permitiu encontrar outras maneiras de experimentar e sentir espacialidades de uma Geografia Menor (?).

Palavras-chave: Geografias; Manoel de Barros; Chão; Fronteiras.

  
Resumen: Se trata de un texto que desea estar escribiendo en el suelo. Como resultado de nuestro deambular por las fronteras internacionales entre Brasil y Paraguay, que narra la frontera como pavimentos y lisuras estrías, densidad y Ausencias, experiencias complejas. Las perspectivas analizadas por conjuntos de imágenes visto y sentido en la poesía de Manoel de Barros. Promovemos el encuentro entre la poesía que revela el suelo y las zonas fronterizas recorridas, encontrar e inventar el mundo vivido, que llaman mala dirección (?) Literatura poética de nuestras experiencias, no sabemos si podemos hacer esto? Sin embargo, ninguna dirección y no hay pruebas, nos encontramos con "geograficidades" el más pequeño, espacializada por una literatura menor, que también permitió encontrar otras maneras de experimentar y sentir la espacialidad de Geografía Minor (?).

Palavras-chave: Geografías; Manoel de Barros; piso; Fronteras.

 

O CHÃO QUE CONDECORA O VIVER

Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era. Veio de longe com sua pré-história [...] Repositório de chuva e bosta de ave é seu chapéu. Não sabe se as vestes apodrecem no corpo senão quando elas apodrecem. É muito apoderado pelo chão esse Bernardo [...] (BARROS, 1985, in Poesia Completa, 2010, p.211).       

Com Bernardo Manoel de Barros compôs um “ser” do chão, ou apoderado por ele. Com artimanha para “transfazer” a natureza (“Bernardo montou no quintal sua Oficina de Transfazer a Natureza” (BARROS, 1989, in Poesia Completa, 2010, p.245)), o poeta “deu vida” a um ente que não é necessariamente humano, no entanto, não deixa de ser um personagem com características de uma pessoa. Como representação, Bernardo acaba sendo uma obra de arte ou, como o próprio poeta se refere uma “artesania”, que foi imaginada pelos elos inventados/existentes entre o “[...] verdor primal das águas com as vozes da civilização [...]” (BARROS, 1985, in Poesia Completa, 2010, p. 199).  BARROS, 1985, in Poesia Completa, 2010, p. 199). 
Bernardo3 é um desherói (BARROS, 1966, in Poesia Completa, 2010, p. 125).  Lapidado como oposição (?), negação (?), superação (?), aleatório (?), indiferente (?), é tão expressivo e contundente diante dos valores da modernidade, que parece ser uma antítese do “Homem Moderno”4 (fortemente centradas na imagem de um sujeito universal, masculino, ocidental, branco, cristão, heterossexual, adulto, produtivo, competidor, racional, prático, dinâmico, de coragem, predicados para afirmação de um “autêntico vencedor”). Enquanto Bernardo é encantador de palavras que “[...] recolhia coisas de nada, nadeiras, falas de tontos, libélulas – coisas Que o ensinavam a ser interior [...] (BARROS, 1989, in Poesia Completa, 2010, p. 241), pois é nele que as coisas exuberam. 
Quando leio Manoel de Barros descrevendo Bernardo e compondo os arranjos que condecoram suas “desvirtudes” poéticas, me vem à imagem de uma pessoa desencontrada na fronteira 5, vivendo em um sítio próximo aos limites internacionais da fronteira Brasil (Aral Moreira) Paraguai, onde nos foram revelados interessantes particularidades do lugar fronteira, que fazia com que os sujeitos que o habitavam, fossem alguma forma, apoderados pelo chão. 
O “Bernardo” que a poesia de Manoel de Barros me fez ver na realidade vivida, não foi necessariamente, um sujeito com características iguais ao personagem dos livros. Ao que me lembro, não consegui ver seu chapéu de palha, nem seu fumo e/ou espelhinho que ele supostamente poderia esconder meio os cabelos. Apesar de poder caminhar as margens de um pequeno riacho que passava no fundo de sua chácara, não consegui perceber se aquelas águas foram encurtadas por ele? Mas, mesmo assim, tive a impressão de ter visto o silêncio preso por fivela (?), disperso por toda a propriedade, com dúvida, percebi que quando chegamos à chácara, acabamos por desprender diversos sons e ruídos que encobriram o barulho do silêncio, o que permitiu vê-lo, porem, sem ouvi-lo. 
Apesar de tudo, desde o primeiro instante, tive certeza de estar diante de um ser apoderado pelo chão6 . Nas primeiras palavras quase inaudíveis, pois era perceptível a “[...] caverna de pássaro dentro de sua garganta escura e abortada [...]” (BARROS, 1985, in Poesia Completa, 2010, p.211), foi possível perceber que estava diante de um [...] homem percorrido de existências (BARROS, 1989, in Poesia Completa, 2010, p.240). Sua narrativa sobre o lugar que vivia tinha cheiro de memória longa, estremecida pelos descasos que lapidam os esquecimentos.
Na imagem acima, que é resultado de um conjunto de fotos capturadas individualmente, acima o Senhor K., compreendido nesta leitura como esboço em vida do Bernardo de Manoel de Barros e as demais fotos são retratos de diferentes partes da propriedade.  A casa e a ponte de madeira, as águas represadas e a da roda d’agua, a cerca, tudo ali fora construído pelas mãos do Senhor K. e família. O que forma uma continuidade de paisagens transformadas, produzidas e reproduzidas, por aquele que foi um dos primeiros proprietários naquela região, sobretudo, após o enfraquecimento dos domínios indígenas locais.
A casa (que teve sua primeira versão construída toda de rochas que foram cortadas com machado, o peso dessa informação só pode ser medido por mãos que já trabalharam com o instrumento), as cercas; mangueiros; os pomares de frutas e a própria estrada, foram abertas, construídas e mantidas pelo Senhor K. durante décadas de sua vivência naquele lugar. 
Olha para o chão daquele lugar que pretende ser pensado pelo Estado Nação, tanto brasileiro quanto paraguaio, como limites internacionais, permitia perceber uma espacialidade transformada, uma paisagem redefinida e em constante processo transitório, ao mesmo em que, era possível ver e ouvir pelas histórias narradas pelo Senhor K., os primitivismos daquele lugar, experimentado espacial e narrativamente falando.

O ESPAÇO-TEMPO LISO E ESTRIADO NO CHÃO DOS DESLIMITES INTERNACIONAIS FRONTEIRIÇOS

A narrativa do Senhor K., era imagética, pois tínhamos a paisagem alicerçando a imaginação. O lugar de moradia se aproximava de um espaço-tempo “estriado” (DELEUZE, 1997), porem, suas estrias e rugosidades (SANTOS, 2006) eram incipientes, rudimentares, e remetiam, quase sempre, ao passado. O lugar parecia ser feito por um universo técnico ainda pouco mecânico, com grande dependência da energia humana. Um lugar insipiente, em construção, inaugural, constituído por estrias e marcado por lisuras, ainda não rasuradas em sua totalidade pelos processos produtivos mais recentes. O Senhor K., tentando explicar as origens dos processos de configuração das paisagens, fazia sentir suas estórias como se fossem descrições de uma vanguarda-primitiva7 , o que me permitiu perceber mais tarde, que “[...] num espaço tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espaço-tempo estriado conta-se a fim de ocupar” (DELEUZE, 1997, p.183).  
O Senhor K ao se “estanciar” por aquelas terras se viu como primeiro homem, Bernardo era. “Desbravador”(!?), “pioneiro”(!?), “fundador” (!?), “colonizador”(!?), etc., os adjetivos poderiam ser vários, mas a maior parte deles de certa forma, não aludem para a complexa relação existente naquele chão que, quando encontrou o Senhor K., ainda não havia sido estriado!? O que parece é o contrário, em menor escala é claro, povos originários diversos também transformaram situações e o lugar durante suas vidas, mesmo assim, as mudanças, sobretudo após o processo de ocupação não indígena, produziram-se sobre um espaço-tempo liso, que se estriou e enrugou ao longo das décadas, na relação recorrente em fazer daquele chão, o limbo marginal de fortalecimento de territorialidades, chão de múltiplas referencias, espaço de vida. Olhando para o chão e o Senhor K., foi possível perceber que o significado de fronteira se estende há múltiplas possibilidades de negociação, sendo o Estado, apenas uma delas.
A fronteira quando refletida como sertão (SOUZA, 1997; GALETTI, 2000; MORAES, 2008; 2009; CHUAÍ, 2000), acaba sendo concebida como espaço-tempo liso, apesar de possuir marcos que estriam e definem o território no nível dos Estados nacionais (ao ponto de nos convencer que estávamos, durante nossa viagem de campo, percorrendo a linha internacional entre Brasil e Paraguai).  O liso e o estriado podem se articular em múltiplas combinações que afirmam e negam presenças e ausências.
[...] o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. Num caso, organizar-se até mesmo o deserto; no outro o deserto se propaga e cresce; e ao mesmo tempo [...] (DELEUZE, 1997, p. 180).

          Na espacialidade de fronteira, para diferentes sujeitos sociais e formas de territorialidades, há transições entre o liso e o estriado chegando mesmo a confundi-los em diferentes relações/observações.  Se os limites internacionais definem territórios de soberania entre Estados, a fronteira vivida vai se materializando por comparecimentos e lacunas do poder de Estado, bem como também de outros referencias, como aquelas que atribuíram sentidos ao local escolhido para a edificação da residência do Senhor K., e família.
O Senhor K. e sua esposa, com a aquisição do pedaço de chão, saíram à cavalo percorrendo possíveis locais para construir a casa, quando localizaram no sopé de uma encosta de aproximadamente 70 metros de altitude,  um conjunto de arvores frutíferas (onde está sua residência hoje) que, segundo o Senhor K., combinavam na paisagem, a luz do luar em uma noite de verão. O casal, no efervescer ou não da paixão de recém-casados, foram ao chão coberto por capim, e naquele lugar passaram a noite, ao amanhecer tinham a certeza de que o local era apropriado aos seus desejos.
Mesmo sem ser produzido de maneira mais direta pelo homem, o lugar encontrado era estriado por corresponder às expectativas imaginadas para a vivência, o que permite perceber que o próprio ato de pensar o espaço se identificando com ele, produz referencias que o demarcam o campo de relação pessoa-chão, produzindo um sentido espacial que pode ser concebido como o início dos estriamentos. 
Os deslimites das fronteiras internacionais do território brasileiro possibilitaram múltiplos movimentos de produção durante seu processo de construção. Desde as preocupações da Geopolítica (escolas de guerra?), estratégicas para os domínios do poder político sobre espaços e feições físicas (rio, montanhas usados como marco de definição dos limites internacionais), na clássica fórmula apresentada em forma de discurso para os interesses de Estado, quais sejam, o território, a população e a segurança; até as concepções mais progressistas postas por Becker (1988), compreendendo a fronteira como espaço-recurso, zona de territorialização de diferentes forças de atuação “[...] geradoras de realidades novas [...]” (BECKER, 2004 [1988], p. 20), permitindo conceber a coexistência de várias fronteiras em movimento, intercalando em diferentes escalas mobilizando fronteiras internas assentadas de maneira assimétrica com os limites internacionais do território nacional.
  Aprofundando e tornando a análise mais rica do ponto de vista das formas de sobrevivência das pessoas nos territórios fronteiriços, observamos espacialidades fronteiriças serem “(des)pensadas” pois a meu ver implica um processo de desconstrução de “certos” discursos sobre fronteiras no Brasil,  como lugares produtores de certa condição fronteiriça: “[...] As fronteiras são lugares da contradição, ao mesmo tempo periféricos aos estados-nação e plenos de alternativas políticas e econômicas oferecidas pelo trânsito fronteiriço [...]” (DORFFMAN, 2013, p. 9), as aberturas e possibilidades legais ou ilegais são transgressivas aos limites impostos as vivencias na fronteira, fazendo das possibilidades de negociação o lugar, ou em alusão a Manoel de Barros, o “achadouro” de onde afloram as idiossincrasias mais interessantes na análises sobre as fronteiras. 
A fronteira ora se faz lisa como espacialidades de deslimites, um lugar anormal em suas indisciplinas pitorescas, outrora, é também um espaço estriado, marcado pelo poder de Estados, que procuram definir os limites do território de soberania, impondo códigos disciplinares específicos aos moradores que vivem ambos os lados da fronteira, portanto, negociam com os códigos e regras.
Um exemplo se tem, quando se observa o monumento do “marco” (imagem 2 abaixo) de fronteira, fixado no que seria simbolicamente a linha internacional entre Brasil e Paraguai, representa de maneira ambígua, a presença de algo (Estado), que ao mesmo tempo, é também, ausência para outras relações naquele lugar.
O marco fronteiriço representa uma marca de Estado. Mas a fronteira não é só território de soberania, sendo também, lugar de multiplicidades, chão de várias comunidades e grupos, sociais que fazem dos limites internacionais o lugar de vida e de transito entre os lados da fronteira. Já o Estado, a medida que estabelece símbolos nos limites internacionais, não opera esse desejo com diversas instituições presentes nos espaços de fronteira, do contrário, estabelece uma leitura parcial sobre as necessidades da fronteira, a partir de seus anseios, de controle, disciplina, segurança, ordem, o que gera um difusão de comportamentos de negociação nos territórios fronteiriços. 
Apesar de o espaço ser estriado e demarcado para definir o que é Brasil e Paraguai, as famílias (imagem 3 abaixo) que residem nos limites internacionais vivem com grandes dificuldades e carências, afirmadas nas ausências e impossibilidades de um espaço-tempo liso (falta de diversas estruturas e instituições do Estado brasileiro), o que produz realidades difíceis ao cotidiano a algumas pessoas famílias e grupos sociais (diversa etnias indígenas), entre outros, ainda hoje, reafirmam a sensação de estarem desassistidas8 pelo poder público local e/ou nacional.
As instituições corriqueiramente presentes nos limites internacionais da fronteira são as polícias de patrulhamento das fronteiras (Força Nacional; DOF Departamento de Operações de Fronteira, PEFRON Policia Especializada de Fronteira). As medidas de segurança impostas ao território fronteiriço pelas instituições de policiamento do Estado procuram estriar, vigiar e estabelecer controle sobre a fronteira o que inevitavelmente é compartilhado pelas pessoas e famílias de baixa renda que habitam os limites da fronteira, mas as carências demonstram que aquela mesma espacialidade é lisa por demandas sociais e espaciais básicas a sobrevivência dos que são a fronteira, vivendo seu chão, não apenas estando para garantir seus domínios.
O Estado ao garantir domínios sobre a fronteira não se faz presente com suas instituições para atender as demandas de todos os grupos sociais que habitam um espaço cheio de estrias produzidas legal e ilegalmente, mas que é liso no uso cotidiano social das famílias pobres que sobrevivem como empregados dos grandes proprietários rurais do agronegócio, perseverando em problemas considerados banais de nossa sociedade, como acesso a educação básica, saúde, comércio etc. Como lembrou Deleuze (1977), num caso organiza-se até mesmo o deserto, no outro o deserto se propaga e cresce. 
O liso e o estriado estão presentes em diversas territorialidades da fronteira e dos limites fronteiriços e outros. Um jogo de imagens configuram territórios de fronteiras como espacialidades ambíguas, ambivalentes, difusas. Transita-se do liso ao estriado e vice versa e se produzem referencias teóricas que contribuem para refletir as formas de territorialidades dos homens e mulheres que habitam a fronteira e produzem relações espaciais e temporais bastante pitorescas.
Tanto o Senhor k., que se fez e refez do liso ao estriado, fascinando a paisagem e as demais pessoas que conhecem os saberes de suas estórias, quanto as famílias de baixa renda que exprimidas e disciplinadas pela geometrização produtiva do agronegócio (o poço perfurado para acesso a água tinha 7 metros de profundidade (imagem 4) e cerca de dez metros da lavoura do agronegócio, demonstrando eminente risco de contaminação), vivem as desventuras nos espaços lisos e carentes de demandas que não lhes chegam. A ambiguidade se revela como desigualdades sociais e econômicas da divisão territorial do trabalho do capitalismo no campo nos limites internacionais fronteiriços, só que aqueles que trabalham diretamente dependendo do campo, vivem as carências de um território geometrizado e técnico mecanizado, que coexiste com necessidades sociais e espaciais, cabendo para qualquer grupo social, o caráter de negociação ambivalente da fronteira que possui dois lados, diferentes formas de vidas. As estrias do agronegócio representam ganho para os proprietários e trabalho para os pobres, o espaço-tempo liso aprece como carência/ausência ao segundo grupo. Perceptível, o espaço estriado trabalha pela lógica de produção de riqueza, e incorpora parcial e precariamente grupos sociais que vivem a fronteira não como território de expansão das fronteiras agrícolas brasileiras, mas como limite possível de territorialidade precária, dificultosa, com lisuras mantidas para a força de trabalho do agronegócio.  
O espaço-tempo liso e o espaço-tempo estriado são complexidades para pensar o chão em sua expressão do nu ao preenchido, do simples e banal aos complexos sistemas de significação onde as linhas dos terrenos correspondem aos planos do mapa. A fronteira pela dimensão do espaço-tempo liso e estriado se revela como lugar de múltiplas dimensões, que em jogos de escalas, compõem diferenças e desigualdades, possibilidades e limitações, disciplinamento e negociações; em uma espacialidade que, por sua natureza é diversa e preenchida por múltiplas temporalidades, onde se destacam diversos planos com espaço-tempo liso e estriados. Se fronteira é o horizonte do agronegócio, ela também tem ausências que em outras partes do território brasileiro não são comum, a modernização não homogênea faz da prosperidade um território de confirmação de pobrezas.
O chão é a base tanto do espaço tempo liso, quanto do estriado. O chão é o início que permanece entre as transições dos espaços-tempos lisos aos estriados, o liso permite ver o primitivismo das relações espaço-temporais, ao mesmo tempo em que lança a ideia sobre seus outros significados, aprisionados pela “estriagem” que por força em hegemonia pretende defini-lo, torna-lo produtivo. Entretanto, o chão, que também é feito por “peraltagens”, travesso, se rebela com referencias que limitam, permitindo aberturas que fazer perceber outros sentidos, cores e cheiros, que decoram/apontam multiplicidades.
A fronteira chão espaço-tempo liso e estriado, território de soberanias e poderes e também lugar de multiplicidades, pela força de hegemonização de seu produtor hegemônico (o Estado), aparece como um lugar de controle e aberturas, fechamentos e dispersões, combinando forças de domínios e resistências aleatórias, diferentes. Assumindo a dimensão de um “Entre-lugar” (BHABHA, 2010), uma margem que escapa a repetição e ordem, ao controle produtivo, abrigando outras realidades.
A fronteira “entre-lugar” é o chão de Manoel de Barros, de onde são liberados coisas e significados inusitados e renovadores.
A poesia de Manoel brota dos meandros confinados entre o liso o estriado, o espaço novo do devir que é vislumbrado de uma linha de fuga, é desejo. O liso é potencial de novos enunciados que se configuram nas frestas de espaços-tempos estriados, a liberdade alvorece como multiplicidades, Manoel diz ter achado o “achadouro” onde vertem suas fertilidades, feito “agroval” de outras percepções do mundo.
Por essas, por outras e talvez (?), por todas mais, Manoel de Barros é inventor de uma literatura menor, própria, idiossincrática, relacional, reveladora de outras coisas cuja sua invenção, faz parte do que necessitamos descobrir. Nesse sentido, a literatura e poética de Manoel de Barros aludem também a uma Geografia menor, produzida por coisa do chão, fronteiras de sentidos ainda não experimentados por escalas de importância maiores. 

MANOEL DE BARROS: UMA LITERATURA MENOR PARA UMA GEOGRAFIA MENOR?

Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização (DELEUZE, 1977, p.25).

Manoel de Barros poeta brasileiro é autor de uma literatura menor. Percorrendo mundos rememorados, imaginados e reinventados, o poeta criou escrita que desterritorializa a si próprio e as normas, bem como, os sentidos e significados do mundo. Sua poética se inscreve como uma literatura menor, que demanda uma linguagem própria para dar sentido às iluminuras da poesia. Cunhando a necessidade de outra linguagem o idioleto Manoelês Archaico, que foi uma língua criada, segundo o autor, a moda de um dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas.
Para o autor a poesia é necessariamente algo produzido a partir do “desvalor”, sendo nessas espacialidades com significados “desimportantes” que fertiliza a criatividade do poeta: “[...] Tudo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia [...]” (BARROS, 1970, in Poesia Completa, 2010, p.146). O “traste”, o “inutensílio”, o “residual”, o “limo”, o “cisco”, o “trapo”, a “pedra”, o “nada”, o “andarilho”, como ideias/elementos recorrentes em sua poesia, acabam por serem, muitas vezes, os descortinadores de outras percepções, pois estão ligados às coisas “miúdas” abandonadas no/pelo chão.
Para descobrir as insignificâncias do mundo e as nossas é necessária escala geográfica que revela outras sensibilidades de valores, ao mesmo tempo, a sua poesia força o nascimento de uma linguagem própria. Tanto a escala quanto a linguagem, para se aproximarem do universo imaginativo barreano, precisam se refazer em suas concepções e referenciais mais formais. O chão expõe outras possibilidades à linguagem e as escalas geográficas na poesia de Manoel de Barros.
Além de a literatura menor operar a desterritorialização do autor, também assume sentido político, uma vez que “[...] seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado a política [...]”, dessa forma, o individual se torna “[...] necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele [...]” (DELEUZE, 1977, p.26), uma história que atravessa a pessoa/autor por um ato político, pois relacional. Mesmo solitário o escritor constitui uma ação comum, estabelecendo conexões com o coletivo, ainda que todos não estejam de acordo, o “[...] campo político contaminou todo o enunciado [...]”, sendo na e através da literatura, que se operam as funções de enunciação coletiva do que está à margem e/ou excluído, fazendo exprimir outro potencial para a comunidade, “[...] forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade [...]” (DELEUZE, 1977, p.27) sobre o lugar fronteira que é o lugar de vida de Manoel.
Pela literatura se desencadeiam aberturas ao devir, imprevisto, se singulariza no mundo (senhor K. –Bernardo?).
Com Deleuze (1997), aprendemos a pensar o escritor como um médico com sensibilidade frágil em ver e ouvir coisas demasiado grandes, fortes, irreparáveis, cuja passagem o esgota “[...] dando-lhe contudo devires [...]”. O que talvez permita ha Manoel de Barros fornecer ao mundo uma literatura como a enunciação coletiva de um povo menor [...]”, que só encontra expressão no escritor e através dele (DELEUZE, 1997, p. 14). Sua poesia, coloca em evidencia a invenção de algo que faltava, uma sensibilidade própria que ataca por dentro da língua, sentidos e valores das mais profundas sensibilidades humanas. Operando em escalas espaciais e temporais próprias, o mundo é imaginado e reinventado, resinificado, para liberar percepções ocultas sobre as coisas, lugares e paisagens (fronteira), enunciados que mostram outros olhares sobre nossa relação com o mundo e suas aparências.
Manoel de Barros com sua poética tem o poder de uma “[...] reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono [...]” (BACHELARD, 1993, p. 17). A arte renova o processo de recriação dos espaços e tempos, nas fronteiras e no mundo.  A criatividade exposta como vida rememorada na poesia produz imagens de espaços vividos não em “[...] sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação [...]” (BACHELARD, 1993, p. 19), onde “[...] O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo [...]” (BARROS, 1996, in Poesia Completa, 2010, p. 350). 
Sem afirmar nem explicar as distribuições das coisas e pessoas nos lugares e suas distâncias, tempo e espaço participam de um processo criativo que vai além, possibilitando elaborar outras perguntas ao mundo e as representações desses referenciais. A dimensionalidade própria do universo poético chega possuir geograficidade e temporalidades próprias, pois os sentidos construídos e enaltecidos recriam outros horizontes de valores.
Uma geografia própria e/ou menor se vislumbra com a poesia barreana. Não porque foi operada em uma escala microscópica e/ou gigantesca, inimaginável, mas fundamentalmente, por caminhar por elementos com significados redimensionados pela poesia, quando tempo e espaço são redefinidos em escalas de valores poéticos (re)inventores.
A geografia do chão se revê fértil entre as estrias de um mundo questionado e atacado, como se por sua agitação, se procurasse liberar outros significados. Tal é forte os indícios de uma recriação do mundo pelo sentido atribuído a suas experiências, que a poesia de Manoel de Barros parece querer caminhar para reencontra espaços tempos lisos, poemas rupestres, onde a multiplicidade ainda não tinha sido aprisionada pela necessidade de significação vigente no mundo.
A geografia menor da obra barreana tem a ver com pré-coisas, delineamentos sobre o que ainda não foi terminado, abandonos que ficam dentro e por isso, são sempre, reavivados. Dessa maneira, o chão é também algo que decora a estética do corpo, como vimos com Senhor K. e suas desventuras de ausências, em um lugar que, por pouco existir, quase tudo precisou ser inventado, feito de maneira própria, contando com o arranjo do que lhes faltava, pois, “[...] Sabedoria se tira das coisas que não existem [...]” (BARROS, 1996, in Poesia Completa, 2010, p. 363) .
A família que vive no limite internacional (Brasil – Paraguai), que parece também estar em um “Entre-lugar” começo, uma espacialidade restrita, de controle e dimensões geométricas que demarcam territórios produtivos, ao viver sobre a linha internacional, habita um limbo, um “Entre-lugar”, um espaço tempo liso em meio às estriados da produção.
Na paisagem fronteiriça que percorremos pelos limites internacionais entre Brasil e Paraguai, é possível ver muita coisa que é quase insignificante aos interesses do poder de soberania estatal. Se enxerga para além do que está posto pela hegemonia de Estado sobre o território e da abertura a outros conhecimentos sobre o chão da fronteira. Com um olhar baixo, um olhar para geografias menores ou coisas e pessoas pertencidas ao abando, que o sentido poético de espaço-tempo na fronteira revela outras realidades de vidas “margicentrais” aos nossos defeitos.  
Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho. Ainda não entendi por que herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – Antes que das coisas celestiais. Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas (BARROS, 1998, in Poesia Completa, 2010, p. 361). 

Uma geografia menor lampeja em Manoel como matéria de poesia, alucinações vibrantes entornam o que o desprezo inutilizou como ferramenta poética, revela outras dimensões sobre pessoas e coisas pertencidas de abandonos. O olhar para baixo parece permitir a Manoel encontrar elementos para uma literatura menor, que tenha a ver com o povo, e que também desperta olhares para outras geografias, recriando dentro de estrias e lisuras do chão, outras significações, não “no lugar de”, mas “em intenção de” (DELEUZE, 1997, p. 15), fazendo com que o revelar do chão com Manoel, assuma uma importância de outras percepções geográficas de mundos ainda não descobertos e/ou mapeados. 

DESCONSIDERAÇÕES FINAIS

          O chão, em sua compostura, é revolucionário na poética de Manoel de Barros. Sua vitalidade permite ao escritor tatear outras geografias de mundos revividos, imaginados e inventados, a poesia recria imagens que retocam os sentires do mundo.
          Experimentar o sabor da poesia criando agenciamentos com outras vivencias, outras conexões próprias do ambiente de criação poético é uma desventura emocionante e incerta, o que leva politicamente a necessidade de questionar: em ciência, como usar poesia? Como permear sentidos poéticos que consigam com leveza e peso sobre as consciências, revelar pela inexatidão e incerteza, outras paixões ao próprio conhecimento científico, a Geografia, outras geografias?
          Não sei!? Mas por aqui houve tentativa de um projeto experimental não de coisificar ou explicar a poesia, mas conecta-la a outros agenciamentos dos mundos que vivemos e sentimos, refletimos e analisamos, misturando o verdor primal das águas as vozes civilizadas, imagens poéticas delirantes aos olhos míopes dos prognósticos acadêmicos e suas formalidades que padronizam e também broxam! Talvez aí resida o desafio, criar elos estimulantes de maiores prazeres e trocas entre Ciência e Arte, Geografia e Literatura, o chão como outras geograficidades.
          Desse experimento criamos uma leitura de aproximação entre o andarilho de Manoel de Barros e nossas andanças pelas fronteiras, não sei ainda o que o Senhor K. tem de Bernardo? Mas me inclino a pensar que ambos já viveram coisas que os abordam. Talvez o chão, que é o decorador mais eficiente de Bernardo, tenha agido sobre o Senhor K., o que o aprontou para poema, fazendo-o ocupar como lugar preferido o limbo, esconderijo de Bernardo!? Talvez, mas não posso ter certeza, não por aqui.
          A complexa relação entre o chão e as pessoas faz com que os espaços tempos se estriem, a grandeza da lisura perde centralidade para as estrias de produções várias, mas nas frestas entre uma estria e outra, se constituem conexões inesperadas, marginalizadas, desconsideradas, que latejam outros sentidos aos espaços tempos comandados por estrias que, como misturas, agitam nos chãos abandonos e outras leituras, geografias menores dentro de uma literatura Menor?  Também não sei? Mas percebo que algumas coisas nos ensinam a sentir o mundo de outra maneira, e isso toca e afeta qualquer compromisso de consciência, portanto, o testemunho relatado não pode passar se não, de uma rasura do mundo manoelês nas estrias sensitivas do meu corpo no mundo, “despenso” ainda se foi isso que vi?   

REFERÊNCIAS

 

BHABHA. Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1966] 2010, p. 143.

__________. Matéria de poesia. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1970] 2010, p. 143.

__________. Livro de pré-coisas: roteiro para uma expedição poética no pantanal. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1985] 2010, p. 41.

__________. O guardador de águas. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1989] 2010, p. 237.

__________. Livro sobre o nada. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1996] 2010, p. 325.

__________. O retrato do artista enquanto coisa. In. BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, [1998] 2010, p. 355.

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1 Doutorando PPGG/UFGD, email: trccarvalho1@yahoo.com.br

2 Orientador/professor PPGG/UFGD, email: jonesdari@ufgd.edu.br

3 Bernardo é um dos alter ego do poeta que cria narrativas alucinantes para (des)compor o personagem, no livro onde é possível encontrar uma descrição ampla é o “Guardador de Águas (1989)”. Obra que, como a interpreto, apresenta nos primeiros XV tomos, uma descrição minuciosa de Bernardo.  

4 Como proposto por Hall (2004), o pensamento Ocidental produziu três sujeitos como personificação do Homem Moderno, o Iluminista, sociológico e pós-moderno (HALL, 2004, p. 26).

5 Visita técnica realizada na disciplina de Migrações, Territórios e Identidades, oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da UFGD. Quando percorrendo os deslimites da fronteira entre o Brasil e o Paraguai.

6 Para fins metodológicos, em nosso trabalho chamaremos a pessoas que está sendo associado ao personagem “Bernardo” de Senhor k.

7 Segundo se sabe, a Vanguarda Primitiva foi inventada como estilo poético da escrita de Manoel de Barros e Douglas Diegues, únicos integrantes e representantes do movimento no Brasil e no mundo. A analogia se baseia na impressão obtida ao ouvir o Senhor k., comentar seus feitos de vanguarda naquele lugar, cerceado por uma paisagem enfeitada de primitivismo.

8 Fala mais que comum no discurso de pessoas ligadas a administração publica de municípios de fronteira, onde estivemos passando (Ponta Porã, Aral Moreira e Coronel Sapucaia).