DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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INTELECTUAL MARGINAL: UM CONCEITO

Cleber José de Oliveira (UEMS/ PG-UFGD) 1

 

Resumo: Este capítulo faz um apanhado da produção teórica sobre o intelectual tendo em vista a proposta de se pensar o artista que produz o rap (MC) como sendo a faceta marginal de um intelectual contemporâneo. Há muito que a figura do intelectual tem sido problematizada por diversos pensadores sob os mais variados enfoques. Atualmente, pode-se dizer que essa figura continua de definição problemática e complexa. Assim, entende-se que falar sobre o intelectual, seu papel, sua relação com a sociedade, e até mesmo sobre sua re-funcionalização é, hoje, algo no mínimo complexo. De modo geral, as obras literárias marginais refletem, à sua maneira, as relações e os procedimentos sociais, principalmente os de exclusão, das sociedades contemporâneas. Não raro, na contemporaneidade, veremos manifestações de cunho sócio-político promovidas por comunidades historicamente cerceadas de direitos básicos tais como educação, trabalho e cultura. Disso, surgiram “porta-vozes”, “representantes” e “mediadores” que têm sua origem nas periferias e que estão engajados nas causas dos grupos organizados ali nascentes.

Palavras-chave: Intelectual; Intelectual marginal; Rap; Autorrepresentação; Contemporaneidade.

Resumen: En este capítulo se ofrece una visión general de la literatura teórica sobre el intelectual con el fin de elaborar el pensamiento del artista que produce rap (MC) como la faceta marginal del intelectual contemporáneo. Es mucho lo que la figura del intelectual ha sido problemático para muchos pensadores en virtud de diversos enfoques. Actualmente, se puede decir que esta cifra es todavía entorno problemático y complejo. Por lo tanto, se entiende que hablar de la intelectual, su función, su relación con la sociedad, y incluso sobre su re- funcionalización es hoy, al menos algo complejo . En general, las obras literarias marginales reflejan, a su manera, las relaciones y procedimientos sociales, sobre todo la exclusión de las sociedades contemporáneas. No es raro que en la época contemporánea, vemos manifestaciones de la naturaleza socio-política promovida por las comunidades históricamente restringidas derechos básicos como la educación, el trabajo y la cultura. Surgieron, además, "portavoces", "representantes" y "mediadores" que tienen su origen en las afueras y que se dedican a las causas de los resortes no organizados.

Palabras clave: Intelectual, Intelectual marginal; Rap, La auto-representación; La contemporaneidad.

 

APRESENTAÇÃO DO CAPÍTULO:

Há muito que a figura do intelectual tem sido problematizada por diversos pensadores sob os mais variados enfoques. Atualmente, pode-se dizer que essa figura continua de definição problemática e complexa. Dessa maneira, falar sobre a figura de um intelectual clássico, seu papel, sua relação com a sociedade, e até mesmo sobre sua re-funcionalização e/ou anonimato é, hoje, algo no mínimo complexo. Assim sendo, este capítulo faz um apanhado da produção teórica sobre o intelectual tendo em vista a proposta de se pensar o artista que produz o rap (poesia crítica e subversiva) como sendo a faceta marginal de um intelectual contemporâneo. De modo geral, entende que as obras literárias marginais refletem, à sua maneira, as relações e os procedimentos sociais, principalmente os de exclusão, nas sociedades contemporâneas. Não raro, na contemporaneidade, se vê manifestações, de cunho sociopolítico, promovidas por comunidades que por muito foram cerceadas de seus direitos básicos como educação, trabalho e cultura. Em meio a isso, surgiram “porta-vozes”, “representantes” e “mediadores” que têm sua origem nas periferias urbanas e que estão engajados nas causas dos grupos organizados ali nascentes.

O INTELECTUAL E SUA FUNÇÃO: CONCEITOS CLÁSSICOS

De início faz-se a pergunta: o que é um intelectual?
De modo geral, a definição do intelectual é realizada, principalmente, pelos próprios intelectuais e/ou acadêmicos. Estes definem o termo segundo seus próprios posicionamentos sociais, fato este que torna complexo uma definição universal.
Para o Houaiss (2004, p. 422), intelectual é “quem domina um campo de conhecimento intelectual considerável ou tem muita cultura geral, [trata-se de um] erudito”.  O Dicionário da Língua Portuguesa (2001, p.500) afirma que intelectual é a “pessoa que se dedica a leituras, estudos e às coisas da inteligência”. Partindo dessas afirmações pode-se constatar que o intelectual é um ser que está inserido dentro de uma tradição que privilegia o acúmulo do conhecimento e da cultura e o exercício do pensar e do refletir. Contudo, essas definições estão aquém de definir realmente o intelectual e seu papel social. Por isso, apresento, de início, um panorama dos principais conceitos sobre a figura do intelectual e sua função na esfera social.
Iniciamos as ponderações partindo da etimologia da palavra intelectual que deriva da palavra latina intellectualis a qual em sua conversão para o português manteve o sentido relativo à inteligência, ao acúmulo de conhecimento. Nela está já desenhada a relação homem com a vida social que o cerca. Segundo Maria Zilda Cury, decompondo a raiz latina intellectualis temos:
[...]intus, para dentro e lectus, particípio passado de legere (ler). Ler para dentro das coisas, para seu interior. Mas, o sentido etimológico do verbo legere postula certa intensificação do fato social, na medida em que aponta para uma dimensão de exterioridade [...] Ler, pois, pressupõe um movimento para o exterior, para comunicar-se com os outros, fazendo uma leitura do mundo, o que dota a palavra intelectual de dois movimentos: para dentro e para fora de si[...] salienta-se a condição intermediária do intelectual, sua função mediadora (CURY, 2008, p. 13).      

Como se constata, para a autora, a palavra intelectual é utilizada para nomear o indivíduo que se dispõe a fazer uma leitura crítica e autocrítica de si e do mundo social no qual está inserido. O intelectual se define inicialmente a partir de uma tensão entre interioridade e exterioridade.
Um dos conceitos mais difundidos sobre o intelectual é o proposto por Antonio Gramsci, autor da clássica distinção entre intelectuais orgânicos e tradicionais. Para isso parte de uma afirmação genérica “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1982, p.7). Segundo o autor, cada grupo social cria seus próprios intelectuais. Podem ser chamados de orgânicos os intelectuais que devem ser constituídos pela educação técnica e devem participar da vida prática como construtores e organizadores permanentes, conscientes de sua função. Gramsci entende ainda que os intelectuais orgânicos são indivíduos que se implicam ativamente na sociedade, lutando constantemente para modificar as mentes e suas realidades sociais ainda que isso ocorra de modo inconsciente. Enquanto que os intelectuais tradicionais caracterizam-se por considerarem a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social existente por conta de sua continuidade histórica. Enfatizando sua afirmação, a de que todo ser humano é dotado de uma “função” intelectual, Gramsci explica:     

Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na realidade, tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular-nervoso. Isto significa que, se se pode falar de intelectuais, é impossível falar de não-intelectuais, porque não existem não-intelectuais. Mas a própria relação entre o esforço de elaboração intelectual-cerebral e o esforço muscular-nervoso não é sempre igual; por isso, existem graus diversos de atividade específica intelectual. Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar.

E aponta ainda que, na modernidade:

O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e conseguindo-se que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova continuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção do mundo. O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas — que crêem ser literatos, filósofos, artistas — crêem também ser os "verdadeiros" intelectuais. No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual (GRAMSCI, 1982, p. 7-8).

Passamos agora a exposição do conceito daquele que é considerado como o intelectual por excelência, Jean Paul Sartre. No conceito de intelectual desse pensador o que mais se destaca é a atuação, a intervenção na esfera pública por meio de uma crença no poder da palavra. Isso se dá no sentido de Sartre entender que o intelectual é, sobretudo, um representante, um mediador é aquele que fala por aqueles que a voz não tem ressonância social (Cf. SARTRE, 1994). Para Cury a figura de Sartre é a do intelectual marcante pela força de sua atuação pública:
Sartre representa aquele agente cultural que interferia diretamente na cena pública. Na sua ação como intelectual, empunhando megafone, ia para a frente da Universidade discutir com os estudantes posicionava-se na imprensa contra as guerras coloniais e a do Vietnã, tomando partido (CURY, 2008, p. 21).  

Já em Sartre é possível enxergar a postura de alguém que se encontra inserido numa contradição, pois se vê dentro da mesma realidade da qual aqueles a quem defende estão inseridos e ao mesmo tempo está distante dela culturalmente e economicamente. Podemos enxergar isso sob a ótica de que todo intelectual vive dentro de um permanente conflito, pois, como intelectual (alguém que está longe de viver a realidade daqueles a que quer defender), entende que por muitas vezes sua voz não será ouvida e se for não será compreendida sem distorções, mas que, no entanto, não desiste e crê que por meio de sua intervenção algo possa ser mudado. Sobre isso Sartre afirma que o intelectual é definido justamente por tal contradição:
o intelectual se caracteriza por não ter mandato de ninguém e por não ter recebido seu estatuto de nenhuma autoridade. [...] Ninguém o reivindica, ninguém o reconhece (nem o Estado, nem a elite-poder, nem os grupos de pressão, nem os aparelhos das classes exploradas, nem as massas); pode-se ser sensível ao que ele diz, mas não à sua existência [...] O intelectual é suprimido pela própria maneira em que se faz uso de seus produtos. (SARTRE, 1994, p. 32-3).

Para Norberto Bobbio, teórico italiano que se dedicou por muitas décadas ao estudo da figura do intelectual e sua relação com a política e o poder, o intelectual é fruto das complexas relações sociais e seus fenômenos. Acredita que este é definido pelo meio social no qual está inserido ou no qual vive e estabelece sua trajetória social, sempre envolto pelo poder:

Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu, em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante) Toda sociedade tem os seus detentores do poder ideológico, cuja função muda de sociedade para sociedade, de época para época, cambiantes sendo também as relações, ora de contraposição ora de aliança, que eles mantêm com os demais poderes (BOBBIO, 1997, p.11).

Aponta ainda que o mundo contemporâneo produz uma espécie de afastamento entre os homens e dos homens com o mundo. Assim o intelectual é alguém que tem ou deve ter uma capacidade eficaz de intervenção e crítica, que detém a função de mediador entre as pessoas e de amenizador desse afastamento; ele o faz por meio do discurso no qual constrói alianças, laços, em uma sociedade cada vez mais estranha a si mesma.

Ainda hoje, de fato, indicar uma pessoa como Intelectual não designa somente uma condição social ou profissional, mas subentende a opção polêmica de uma posição ou alinhamento ideológico, a insatisfação por uma cultura que não sabe se tornar política ou por uma política que não quer entender as razões da cultura (BOBBIO, 1986, p. 637).

Bobbio opera essas ponderações a partir da categorização de dois grupos de intelectuais: os ideólogos e os expertos. De acordo com o autor o primeiro grupo (os ideólogos) são os responsáveis por elaborarem os princípios que justificam as ações; enquanto que o segundo grupo (os expertos) se responsabilizaria por “dominar” os conhecimentos técnicos necessários para alcançar um determinado objetivo. No entanto, reconhece que um mesmo intelectual possa transitar nessas duas categorias.    
Umberto Eco posiciona-se de maneira a apontar distinções entre aquele que em sua visão seria o intelectual por ofício e aquele que reproduz mecanicamente atividades que estão ligadas, de uma maneira ou de outra, ao intelecto:
Naturalmente, eu defendo a idéia de que, hoje em dia, não se pode entender por 'intelectual' alguém que trabalhe com a cabeça mais que com os braços. Um funcionário de hotel que anota as reservas em um computador trabalha com a cabeça, enquanto um escultor utiliza os braços. Para mim, 'intelectual' é quem exerce uma atividade criativa nas ciências ou nas artes, o que inclui, por exemplo, um agricultor que tem uma idéia nova sobre a rotação dos cultivos. Em resumo, o autor de um bom manual de aritmética para o ensino médio não é necessariamente um intelectual, mas, se ele escrever esse livro adotando critérios pedagógicos inovadores e eficazes, pode ser (ECO, 2003, p. 07).

Para este autor o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar. Sua contribuição deve se dar na esfera pública por meio da expressão de ideias inovadoras: “não lhes servindo o papel de oráculos” (Cf. ECO, 2003, p 08).
Steve Fuller, pensador americano que milita no espaço acadêmico da Inglaterra, em seu livro O intelectual (2006), promove reflexões acerca dessa figura (o intelectual) que, no seu modo de ver, tem o poder de remediar a fragilidade humana por meio do avesso, do malfeito: “Se você é um intelectual, o ‘tato’ é o melhor modo de referir-se à covardia. Para remediar parcialmente a fragilidade humana, o intelectual tem que seguir a trilha que leva ao malfeito” (FULLER, 2006, p.29).  Ainda segundo Fuller,
[...] o intelectual enobrece a humanidade ao criar oportunidades de resistência – isto é, situações que nos forçam a tomar decisões. Em termos mais mundanos, o intelectual, fazendo uso de sua consciência opositora, age como o consumidor que se nega a comprar tudo o que está na prateleira. Não por acaso, certos grupos de consumidores apresentam muitas das características chave da envergadura dos intelectuais. Eles julgam os produtos segundo a natureza dos produtores e a disponibilidade de alternativas. Da mesma forma que o consumidor perspicaz, o intelectual suspeita de idéias monopolizadas por um produtor de história dúbia. Tais idéias constituem o que o marxista italiano Antonio Gramsci chamou de “hegemonia” (FULLER, 2006, p.31).  

Em Fuller, se vê aquilo que deve ser a postura a ser adotada pelo intelectual frente aos diversos “produtos” que lhe são oferecidos na esfera pública e também enquanto sujeito crítico criador de oportunidades de resistência a isso. Essa forma de resistência é o poder positivo do pensamento negativo citado pelo autor. O autor vai além e aponta uma espécie de lado patológico do intelectual, o qual é por ele denominado de eterna vigilância ou paranóia:
Respostas a perguntas não formuladas e o mal resultante de atos não intencionais são dois aspectos que ilustram a imagem do intelectual à procura das sombras que escapam ao observador desatento, e que, no final, possam ser apenas invenções de sua imaginação. No entanto, a paranóia profissional do intelectual não deixa de ter um lado romântico. Para todo herói, chega um momento em que percebe no outro tudo aquilo que mais despreza em si mesmo (e, portanto, desconfia no outro). Esse momento de repulsa o leva a reconhecer o ideal que ele deve agora incorporar. A partir daquele momento, o intelectual, na qualidade de herói, internaliza ambos os lados da luta como eterna vigilância, ou paranóia [...] para o intelectual as notícias são como apelos ocultos de um mundo desesperado à procura de orientação (FULLER, 2006, p. 35).       

 Fuller encerra seu livro com uma ponderação que nos revela uma espécie de crença positiva na figura do intelectual como alguém que tem como papel principal despertar a nos indivíduos sociais sua humanidade: “O intelectual é o eterno irritante: ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola” (FULLER, 2006, p.149).    
Para Edward Said, teórico palestino que escreve no espaço acadêmico americano e dedicou grande parte de sua obra ao estudo do intelectual, essa figura é, sobretudo, um ser público dotado da função de representar, ou seja, é um indivíduo que carrega consigo, por natureza, uma habilidade de mediar e articular questões da vida pública seja de uma classe, seja de uma comunidade:

O intelectual é um indivíduo com um papel público na sociedade [...] um ser dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para e também por um público. Esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja razão de ser é representar todas as pessoas e todos os  problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete... [...] Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com os padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou das nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas (SAID, 2005, p.25-6).

Como se pode notar, o conceito aponta na direção de que os intelectuais são, ao contrário do que afirma Gramsci, sujeitos extremamente selecionados, indivíduos extremamente raros dotados de uma vocação para representar, tendo como padrões eternos a defesa da verdade e da justiça.  Said quando expõe isso, tem em vista expor a sua própria forma de atuação como intelectual:

Gostaria de expor isso em termos pessoais: como intelectual, apresento minhas preocupações a um público ou auditório, mas o que está em jogo não é apenas o modo como eu as articulo, mas também o que eu mesmo represento como alguém que esta tentando expressar a causa da liberdade e da justiça. Falo ou escrevo essas coisas porque, depois de muita reflexão, acredito nelas; e também quero persuadir outras pessoas a assimilar esse ponto de vista (SAID, 2005, p. 26).

Quando se insere dentro de uma função intelectual Said nos coloca a par do que para ele é a postura que deva ser adotada pelo intelectual; a de ser do contra, um incômodo, alguém que tenta tirar a população da apatia e mobilizá-la para promoverem transformações significativas na esfera sócio-política. Como intelectual engajado, Said elegeu como seu foco de atuação principal a causa de seu povo, os palestinos, que há muito é expulso de sua própria terra. Além disso, também apontou sua crítica para as mazelas feitas pelo colonialismo europeu, a manipulação pelas elites dos meios de comunicação e a forma de política centralizadora promovida pelos Estados Unidos.
De modo geral, Said categoriza os intelectuais em públicos e privados. No entanto, deixa claro que ambas as figuras co-atuam, ou seja, um intelectual pode ao mesmo tempo se público ou privado. Sobre isso, reitera o autor:
Não existe algo como o intelectual privado, pois a partir do momento em que as palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público. Tampouco existe somente um intelectual público, alguém que atua apenas como uma figura de proa, porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição. Há sempre a inflexão pessoal e a sensibilidade pessoal de cada indivíduo, que dão sentido ao que está sendo dito ou escrito (SAID, 2005, p.26).

Michel Foucault também discute o conceito de intelectual. Em Microfísica do poder (1979), há importante texto sobre o assunto. Nele, Foucault anuncia a necessidade de aparecimento de uma nova forma de posicionamento do intelectual: não mais como aquele que dizia a verdade aos que ainda não a viam e em nome dos que não podiam dizê-la. Mais do que um novo papel para o intelectual, trata-se de uma nova exigência, sob pena da figura do intelectual entrar em ocaso:
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a “idéia” de que eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento; na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência” (FOUCAULT, 1979, p.71).
        
Beatriz Sarlo, com um olhar atento frente às constantes mudanças da figura do intelectual e do seu papel social na contemporaneidade, pondera:
Foram conselheiros de príncipes, de ditadores, de déspotas esclarecidos, de outros intelectuais convertidos em políticos, de políticos intelectuais e de políticos que tiveram pouco a ver com o mundo das idéias. Falaram ao Povo, à Nação, aos Desvalidos deste Mundo, às Raças oprimidas, às Minorias. Quando se dirigiram a tais interlocutores pensaram que estavam transferindo para eles uma verdade que tinham descoberto pelos próprios meios. Por isso, sentiram-se Representantes, homens e mulheres que tomavam a palavra em nome de outros homens e mulheres. E, por isso, acreditaram que essa representação, esse dizer, o que os outros  não podem nem sabem dizer, era um de seus deveres: o dever do saber.  Deviam então libertar os outros das travas que lhe impediam de pensar e agir; enquanto isso, enquanto essa nova consciência não se impusesse a seus futuros portadores, falaram em nome deles (SARLO, 2000, p. 160-1).

Para Sarlo, a contemporaneidade põe em crise o papel clássico do intelectual que ela mesma descreve no trecho acima. Sendo assim na medida em que a contemporaneidade avançou sobre a sociedade com suas novas formas e fórmulas de relações sociais, foi abrindo espaço para o aparecimento de outros meios de intervenção na vida pública, principalmente, após o surgimento da chamada crise da representação. Com isso, o tipo clássico de intelectual, perde espaço e em parte o poder de falar em nome do outro, especialmente, pelas camadas que até então eram cerceadas de voz. Repetindo Foucault: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem” (FOUCAULT, 1979, p.71). A massa, o povo, não precisa deles para saber, não necessita deles para falar. Isso abriu caminho, sobretudo, para novos agentes sociais e para novas perspectivas de atuação na esfera socioeconômica. Os ideais do intelectual clássico foram colocados em cheque, por, dentre outros, não se realizar de fato após séculos de promessas. Diz Sarlo:             
As sociedades que surgem da modernidade tardia (isso que chamamos taquigraficamente de “pós-modernidade”) estão longe de realizar um ideal igualitarista e democrático [...] Se nos países centrais a riqueza viabiliza políticas de compensação por parte do Estado, e os movimentos sociais aí intervêm na esfera pública, nos países periféricos a explosão do fim do século [XX] mostra, mais que a diversidade cultural e social, o intolerável contraste entre a miséria e a riqueza (SARLO, 2000, p. 164-5).

Para pensarmos com Foucault, e à luz do que diz Sarlo, parece que o próprio papel do intelectual parecia fazer parte do “sistema” de manutenção destes contrastes. Aquela figura responsável por representar os oprimidos era ele próprio, inconscientemente, instrumento de um sistema de manutenção da opressão. Foucault é um dos primeiros a denunciar isso – e, Sarlo, na esteira de pensadores como Foucault, acusa esse impasse.
Contudo, ela não abandona a crença na importância do intelectual. Para ela, na contemporaneidade surge a necessidade de se retomar algumas das funções que eram inerentes ao intelectual clássico (acredito eu que estas funções estejam ligadas ao posicionamento de confronto frente ao poder hegemônico por meio de um discurso crítico-subversivo), com mais ênfase e em bloco para que esta retomada não seja apenas uma voz que soa sozinha e sem eco no deserto da vida social contemporânea      
A figura do intelectual (artista, filósofo, pensador), tal como criada na modernidade clássica, entrou em seu ocaso. Algumas das funções que essa figura considerava suas, porém, continuam a ser reclamadas por uma realidade que mudou e que, portanto já não aceita legisladores nem profetas como guias, mas não tanto a ponto de tornar inútil o que foi o eixo da prática intelectual nos últimos dois séculos: a crítica daquilo que existe, o espírito livre e anticonformista, o destemor perante os poderosos, o sentido de solidariedade com as vítimas (SARLO, 2000, p. 165).      

Tendo em vista as discussões até aqui apresentadas acerca das diversas correntes teóricas que refletiram sobre a figura do intelectual, chegamos a conclusão que elas, guardadas suas especificidades, comungam uma mesma visão, a saber: o intelectual é um indivíduo que  deve se fazer presente na vida pública contestando, rebatendo, revidando, resistindo às formas de desigualdade e de injustiça. Atitude e postura que, atualmente, é vista por muitos como sendo algo que está na esfera da utopia.
Ao olharmos panoramicamente o cenário apresentado, é necessário esclarecer que quando propomos lançar luz sobre o aparecimento um intelectual marginal não se trata de sentenciar o fim do intelectual de tipo clássico, mas sim apontar a nova forma de engajamento que emerge das comunidades marginalizadas. Isso se faz necessário no sentido de que há muito o pensamento crítico ocidental produz interrogações acerca desta questão, como vimos, nas afirmações manifestadas por Foucault, Bobbio, Said e Sarlo.
 Sendo assim, a nosso ver, a discussão promovida até aqui aponta algo de suma importância para a construção e o desenvolvimento de um conceito de intelectual marginal, a saber: a) segundo Foucault e Sarlo surge na contemporaneidade a possibilidade de outros indivíduos sociais se tornarem agentes intelectuais cuja essência seja a mesma que caracterizou os intelectuais autônomos, ou seja, “o espírito livre e anticonformista, o destemor perante os poderosos, o sentido de solidariedade com as vítimas” e o desejo de participação como cidadão da vida social brasileira; b) na contemporaneidade os intelectuais que emergem das margens sociais falam às suas comunidades incitando a sua união e conscientização social; e falam por si, de si, e de sua realidade de uma forma crítica-subversiva às classes que cercearam historicamente sua voz. Esses sujeitos intelectuais são, dentre outros, o MC e o escritor de literatura marginal, frutos exclusivos do mundo periférico contemporâneo. Sujeitos do discurso que carregam consigo a missão de se fazer ouvir e tornar visível, como cidadão, aos olhos do Estado e confrontar o poder do discurso social que o exclui e também sua comunidade. É de extrema relevância entender que, na esfera das relações sociais, o sujeito constitui-se, sobretudo, por meio de práticas discursivas. Dessa maneira, sujeitos que estão numa condição de exclusão, ignorados pelo Estado em seus direitos básicos, se reconhecem no discurso enunciado pelo MC e pelo escritor marginal, e assim compartilham a mesma ideologia. É de extrema relevância ponderar que entre esses sujeitos exclusos estão não só os negros, mas também brancos pobres, índios, entre outros.
Sobre essa questão de se reconhecer no discurso do intelectual marginal, Waldilene Silva Miranda aponta que:
O sujeito oprimido e ignorado pelo Estado vê em seus intelectuais a figura ideológica daquele que luta discursivamente pelo grupo com o qual se identifica. Manifestando-se, então, contrários à ideologia dominante, esses sujeitos dão voz e vez aos moradores dessas áreas de exclusão. O fato é que os discursos das periferias brasileiras, sobretudo o rap e a literatura marginal estão deslocando as fronteiras que mantinham intacta a concepção de identidade nacional homogênea e suplementando as narrativas pedagógicas (MIRANDA, 2011, p.11-2).

QUAL O PAPEL DO INTELECTUAL HOJE?

Não há como pensar no papel a ser exercido, atualmente, pelo intelectual, sem levar em conta a forma mais engajada de atuação. Em suas reflexões Sartre lança luz sobre como o intelectual-escritor é visto na sociedade, e qual o seu papel central. Pondera ele: 
O escritor consome e não produz, mesmo que tenha decidido servir com os seus escritos aos interesses da comunidade, pois sua atividade é inútil: não é nada útil, e por vezes é até nocivo que a sociedade tome consciência de si mesma. Justamente, o útil se define nocontexto de uma sociedade constituída e em função de instituições,valores e fins já fixados. Se a sociedade se vê, e sobretudo se ela se vê vista, ocorre, por esse fato mesmo, a contestação dos valores estabelecidos do regime: o escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima a assumi-la ou então a transformar-se. E de qualquer modo ela muda; perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantenedoras do equilíbrio que ele tende a romper (SARTRE, 2004, p. 65).

Sartre insiste no papel “inútil” e “nocivo” do escritor; este mostra a sociedade a si mesma como de fato ela é. Daí a consciência infeliz desta sociedade – que está no centro do trabalho do escritor. Este papel negativo do escritor como intelectual, continua sendo válido nos dias de hoje.
Cury, ao refletir sobre a possibilidade hoje de se intervir na esfera pública como fazia Sartre, aponta:
O filósofo [Sartre] com o megafone nas mãos representa imageticamente o intelectual moderno, mas, ao mesmo tempo, seu estertor uma vez que a retração progressiva da esfera pública vai tornando cada vez menos audível essa voz e menos atuante sua forma clássica de intervenção[...] o fato é que o intelectual contemporâneo vê suas possibilidades de intervenção desvalorizadas, diminuídas num contexto em que a indústria cultural vai borrar as diferenças entre intelectuais, conhecimento e espaço público (CURY, 2008, p. 21-3).     
 
Cabe aqui expor a indagação feita por Silviano Santiago no texto “O papel do intelectual hoje” (2004). Questiona ele se diante do momento histórico atual o intelectual, escritor de literatura, “ainda conseguiria ecoar sua voz em praça pública para se transformar em um intelectual público” (SANTIAGO, 2004, p.37). A partir desse questionamento, Santiago parece querer apontar que não dá mais para ser um intelectual ao modo de Sartre nos dias de hoje; possivelmente, em função das mudanças que ocorreram e vem ocorrendo nas formas de relações sociais, pois é sabido que nestes tempos, as formas e os meios de atuação no espaço público foram predominantemente incorporados pelos meios de comunicação de massa e suas ideologias, muito diferente das que eram vivenciadas entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX. Esse, quiçá, seja o grande desafio do intelectual hoje, desenvolver meios de atuação na esfera pública que ecoem tão audíveis quanto o discurso veiculado nos meios de comunicação de massa. E para fazer isso é preciso ampliar o espaço de atuação, é preciso forçar um desenraizamento, um deslocamento do discurso, em suma um novo lócus de enunciação acompanhado de uma postura de atuação original, possivelmente, algo que talvez seja inaceitável para os intelectuais tradicionais.        
Ivete Walty aponta uma possível função contemporânea do intelectual:
Podemos nos perguntar se, no exercício de assumir o viver juntos, o viver com o outro, sem escamotear as contradições de tal opção, não estaria a função do intelectual hoje, a circular camaleonicamente entre grupos sociais diversos, entre fronteiras deslizantes, entre espaços moveis (WALTY, 2008, p. 41).

Desse modo, pode-se pensar numa possível possibilidade e viabilidade do surgimento de uma nova espécie de intelectual – o intelectual marginal. Nesse sentido, é relevante pensar o papel desse intelectual na configuração das novas formas de relações sociais da contemporaneidade.

O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS CLÁSSICOS
         
A questão sobre o silêncio dos intelectuais talvez seja um dos assuntos mais discutidos atualmente, principalmente, pelos próprios intelectuais. Sobre isso Fuller afirma que “o silêncio constitui uma falha grave da responsabilidade intelectual” (2006, p. 109). Em geral, pode-se dizer que os conceitos vistos até aqui sobre o intelectual, de uma maneira ou de outra, vão nessa esteira de pensamento, a de que o silêncio não é nem pode ser uma característica do intelectual.
Cabe aqui expor a crítica feita por Russel Jacoby em Os últimos intelectuais (1990), a qual lança luz sobre o porquê do possível silêncio dos intelectuais, tão discutida atualmente. É preciso dizer que Jacoby escreve sobre o contexto americano. Os “últimos intelectuais” de fala é a geração de homens relativamente independentes, não ligados a universidades, que correspondeu na Europa a homens como Sartre, dentre outros. Dito isso, é preciso assinalar o quão apropriada é a descrição de Jacoby para o contexto brasileiro. Neste, vemos que o trabalho intelectual foi sendo também aos poucos incorporado pela academia.
Para Jacoby, o referido silêncio pode ser consequência de uma ruptura entre gerações intelectuais, da lacuna que se abriu depois dos anos de 1960 e 1970, em função da falta de intelectuais públicos. Aponta que há intelectuais hoje, mas estes se encontram enclausurados dentro das universidades e escrevem não mais para o grande público, mas sim para eles mesmos quase sempre por meio de gêneros discursivos científicos tais como dissertações e teses, tornando-se invisíveis aos que realmente deveriam ser seus interlocutores – as massas. De certa maneira, o aparecimento dessa lacuna se deu porque após os últimos intelectuais públicos os que os sucederam se deparam com um cenário diferente caracterizado pela própria democratização do ensino superior, a reestruturação das cidades (que perdeu suas zonas de boemia, onde povo e intelectuais coabitavam), e das relações sociais que teve como consequência o fim de uma forma boêmia de se viver e discutir o social.
Cury em seu texto “Intelectuais em cena” aponta uma espécie de reflexão que o intelectual contemporâneo deve fazer como forma de repensar sua própria função, seu próprio papel de agente construtor de formas de resistências:
Se o intelectual contemporâneo encontra-se ele próprio em crise, se é colocado em crise por um sistema que o desvaloriza e até ignora; se ele próprio, muitas vezes, cede às injunções do mercado ou, por causa delas se vê silenciado, talvez seja a ocasião propicia para decisões (CURY, 2008, p. 26).

Essa crise à qual se refere Cury, talvez se instaurou na comunidade intelectual contemporânea quando estes perceberam que já não detinham mais o poder que seus antecessores desfrutaram: “os intelectuais se consideravam responsáveis pela construção do conhecimento, sua seleção e sua divulgação entre aqueles que a eles não podiam ter acesso” (WALTY, 2008, p.32). De certa maneira, essa postura entra em ocaso no mundo contemporâneo, já que a realidade atual descrê de intervenções heróicas por partes de indivíduos que pensam ser os detentores do conhecimento.
Sarlo aprofunda aspectos desse problema, dizendo:
o intelectual, se quiser ser realmente eficaz em sua sociedade, deve medir seu distanciamento na escala dos milímetros, a fim de evitar uma separação grande demais da comunidade à qual se dirige. O modelo de intervenção heróica oferecido pelo vanguardismo não impressiona mais ninguém: seja porque as sociedades se afastaram dos ideais (que são o impulso do heroísmo), seja porque compreenderam que as mudanças podem ser provocadas sem a violência material ou simbólica da santidade, sem a solidão da profecia, sem a autoridade do guia iluminado. De todo modo, ninguém mais está em busca de um modelo heróico (SARLO, 2000, p. 166).

  As palavras de Sarlo apontam na direção de que, nos dias atuais, já não é mais possível promover intervenções tais quais as feitas por Sartre na primeira metade do século XX, justamente porque a vida contemporânea se caracteriza pela descrença na intervenção de um herói social (por muito tempo o intelectual gozou desse status) que prega o interesse coletivo sobre o individual, principalmente sobre temas universais como liberdade, poder político e social. A mesma autora pondera ainda:
Os que antes eram considerados intelectuais são os primeiros a rechaçar esse modelo[...] os intelectuais públicos, ou seja, homens e mulheres que atuavam nos palcos da esfera pública, entraram aos milhares numa área especializada do público: a academia. Nela trabalham como especialistas e não como intelectuais (SARLO, 2000, p.166-7).    

Por este enfoque, convergem aqui o pensamento de Foucault, Jacoby e Sarlo. De um modo ou de outro, os intelectuais se refugiaram na academia e, sem mais veleidades de serem santos ou heróis, se tornaram especialistas. Parece que houve migração em massa do intelectual que se encontrava na esfera do mundo público para a esfera do mundo privado, principalmente o da academia. Seria este um fato causador do tal silêncio dos intelectuais? É possível que sim, já que em sua grande maioria os intelectuais ao adentrar no mundo acadêmico deixam de priorizar a ação pública e se tornam especialistas produzindo uns para os outros como afirmou Jacoby (1990). 
Para Marilena Chauí, o que se vê hoje não é um silêncio propriamente dito por parte dos intelectuais, já que este (silêncio) nos remete à esfera do calar, do não se manifestar publicamente perante os acontecimentos sociais, e sim uma espécie de incapacidade de produzir discursos que deem conta de interpretar e desvendar as transformações e contradições da vida contemporânea:
[...] o retraimento do engajamento ou o silêncio dos intelectuais é signo de uma ausência mais profunda: a ausência de um pensamento capaz de desvendar e interpretar as contradições que movem o presente. Não se trata de uma recusa de proferir um discurso público e sim da impossibilidade de formulá-lo (CHAUI, 2006, p. 09).

Com essa ponderação, Chauí descortina a provável causa da ausência de atuação pública por parte dos intelectuais dito públicos que teriam no engajamento sua força maior. No entanto, aqui, deve ser feita a crítica no sentido de que essa “negligência” se dá apenas na esfera de atuação clássica do intelectual clássico, pois se considerarmos a atuação tanto  do MC, com seus poemas (o rap) quanto a do escritor de literatura marginal como sendo uma espécie de intervenção intelectual na esfera pública e no processo de (re) significação cultural e simbólico, se verá que estes estão atuando a pleno vapor, ou seja, de nenhum modo se calaram frente aos novos e complexos acontecimentos sociais, culturais, econômicos e étnicos que surgem na vida contemporânea, nas ultimas três décadas.
Dito isto, faz-se necessário o seguinte questionamento quem é o MC pensado, aqui, como intelectual?

QUEM É O MC? A VOZ DA FAVELA? UM INTELECTUAL?

O MC é aquele que quase sempre se autodenomina um sobrevivente: “aqui quem fala é Primo Preto mais um sobrevivente”; “Aqui quem fala é mais um sobrevivente / 27 anos contrariando as estatísticas” (RACIONAIS MCs, 2008).  Alguém, geralmente, de origem negra, pobre e marginalizada que se orgulha de ter escolhido um caminho inverso o da vida do crime, do tráfico e o da violência – dimensões quase típicas da vida da favela. Alguém que tem consciência que estes caminhos são comuns a quem sempre foi privado de tudo e que o fim é a cadeia e/ou a morte violenta.
Na sociedade contemporânea as utopias, advindas de séculos passados principalmente dos XIX e XX, se revelaram ineficazes e, produziram uma enorme onda de frustração nacional que criou sujeitos sociais incrédulos em soluções mágicas para o caos social, o MC, certamente, é um deles.
  Para Paz Tella, o MC possui um papel e um desejo: ser um comunicador-formador alguém que está entre o entretenimento e a informação. Sobre isso, afirma:
O papel do rapper, além do entretenimento, é fazer um discurso com uma linguagem acessível para informar e tentar ampliar a consciência de uma parcela da juventude negra. Os rappers têm como tarefa transmitir suas mensagens para um público mais amplo. Querem constituir-se numa alternativa de informação e conhecimento, colocando a grande mídia como adversária do seu trabalho. Querem, enfim, ser formadores de opinião (TELLA, 1999, p. 63).

Pode-se concordar com essas ponderações, porém em partes, principalmente, a que diz respeito à relação de alguns rappers com a mídia televisiva. Desse modo, podemos falar sobre a existência de duas perspectivas opostas, já que atualmente, não raro, vemos alguns rappers participam de programas de TV os quais não têm o intuito de formar opinião de modo crítico. Podemos tomar, por exemplo, os rappers Xis e MV Bill e Emicida que participam desses programas; por outro lado veremos grupos como os Racionais MCs, Gog e Facção Central que rechaçam o contato com esse tipo de mídia (2004).           
Mas vamos continuar nos perguntando quem é o MC. Não raro, também, poderemos vê-lo tomando para si a identidade de poeta, em textos de rap: “Palavras pronunciadas / Pelo poeta, Periferia(GOG, 2000); “favela fundão imortal nos meus versos” (Racionais MCs, 2002); “Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória, ora” (Racionais MCs, 2002). Sendo assim, podemos afirmar que a matéria-prima do MC (poeta) é a palavra e, logo este tem toda a liberdade para manipular as palavras, mesmo que isso implique romper (e, muitas vezes, negligenciar) com as normas tradicionais da língua culta, da gramática, como muito se vê no rap.    
Os rappers brasileiros trilharam um caminho próprio para a consolidação de sua expressão artístico-política, propondo ações que fogem do circuito massificador dos meios de comunicação e atuando em prol do resgate de questões geradoras de sofrimento humano. Para tanto, por meio de parcerias entre os grupos de rappers, foram criadas rádios comunitárias e selos próprios para possibilitar a veiculação e a gravação das músicas. Além disto, considerando que o sistema educacional formal não proporcionava aos jovens da periferia conhecer a história dos negros, os rappers partiram em busca de seus interesses:
A partir do “autoconhecimento” sobre a história da diáspora negra e da compreensão da especificidade da questão racial no Brasil, os rappers elaboraram a crítica ao mito da democracia racial. Denunciaram o racismo, a marginalização da população negra e dos seus descendentes. Enquanto denunciavam a condição de excluídos e os fatores ideológicos que legitimavam a segregação dos negros no Brasil, os rappers reelaboraram também a identidade negra de forma positiva. A afirmação da negritude e dos símbolos de origem africana e afro-brasileira passaram a estruturar o imaginário juvenil, desconstruídos e a ideologia do branqueamento, orientada por símbolos do mundo ocidental. (...) A valorização da cultura afro-brasileira surge, então, como elemento central para a reconstrução da negritude (SILVA, 1999, p. 29-30).
           
A partir disso, pode-se dizer que os poemas produzidos pelo MC vão de encontro a cultura hegemônica, uma espécie de contra-cultura, uma resistência cultural, um contra-discurso, uma ideologia que visa a consolidação de uma identidade negra juntamente com a construção de uma auto-imagem positiva por meio da música. O caráter de resistência cultural do rap produzido pela comunidade negra se vale das próprias experiências de exclusão (devido sua cor e classe social) vividas pelos mesmos em suas periferias, nas palavras de Tella:

A periferia torna-se o principal cenário para toda a produção do discurso do rap. Todas as dificuldades enfrentadas por estes jovens são colocadas no rap, encaradas de forma crítica, denunciando a violência – policial ou não – o tráfico de drogas, a deficiência dos serviços públicos, a falta de espaços para a prática de esportes ou de lazer e o desemprego. Em meio a esse conjunto de denúncia e protesto, ganha destaque o tema do preconceito social e, principalmente, o racial. (...) E, pelo fato de os membros dos grupos serem em grande maioria afrodescendentes, o enfoque étnico-social ocupa um espaço central no discurso produzido. Ao primeiro momento de denúncia e revolta, segue-se um posterior reforço positivo da auto-estima e afirmação da negritude com resgates culturais importantes (TELLA, 1999, p. 60).

   Como se vê, o mundo do MC é o mundo da periferia. O MC é o “representante” da periferia. Desse ponto de vista, este tomaria para si a função de ser a voz de sua comunidade. Porém há divergências. Já que se tornar a voz da favela é, por princípio, falar pelo outro – e, em tese, se intrometer no direito que o outro tem de falar por si. Sendo isso uma realidade, o MC seria, ao nosso ver, a contradição do seu próprio discurso explicitado nas letras de seus poemas, uma vez que o rap, apesar de se constituir por meio de um discurso centralizado no eu, busca sempre as outras vozes que fazem parte de sua comunidade. Ou seja, como já vimos (capítulo 2), não busca uma individualidade e sim um coletivo: “eu sou apenas um rapaz/ latino americano/ apoiado por mais de 50 mil manos” (RACIONAIS MCs, 1998); “O que será, será, é nós/ vamos até o final/ Liga eu, liga nós/ onde preciso for/ [...] E liga eu, e os irmão, É o ponto que eu peço” (RACIONAIS MCs, 2002). 
A resistência (cultural, étnica, social) promovida pelo rap ocorre em vários níveis diferentes, mas inter-relacionados, pois ao escrever poemas, o MC precisa criar meios estéticos de ler a realidade de forma crítica, e este é um exercício bastante importante para a afirmação do indivíduo como sujeito que intervém na realidade. Ao ler a realidade o MC dá início a um processo de recuperação de sua práxis; deixando de meramente reproduzir, começa a criar. O ato de criar já é libertador, pois demonstra a potencialidade do ser humano, mesmo vivendo em um meio pobre, muitas vezes miserável. Outro aspecto importante do rap é a sua busca por organização e solidariedade com suas comunidades, atípica em outros segmentos musicais. Os MCs aprendem a trabalhar coletivamente, organizam shows, fazem palestras sobre diversos assuntos ligados à periferia e participam ativamente em espaços políticos. Dito isso, a análise a seguir busca legitimar essas ponderações:                                     

Amo minha raça, luto pela cor,
O que quer que eu faça é por nós,
Por amor, não entende o que eu sou,
Não entende o que eu faço,
Não entende a dor
E as lágrimas do palhaço
(RACIONAIS MCs, 2002, grifos nossos)

O poema faz alusão à história de Jesus Cristo. O MC fala fazendo reverberar a sua voz na voz do próprio Jesus, fazendo alusão ao fato de, tendo vindo ao mundo para salvar a humanidade, não ter sido reconhecido por esta. Assim se sente o MC, um pouco frustrado por não ser entendido por alguns dos membros de sua comunidade, a quem dirige seu discurso. Também, nesse mesmo fragmento, se configura  a seguinte fórmula: a de um eu-individual que luta por um nós-coletivo (vide grifos). 

Não foi sempre dito que preto não tem vez, irmão
Olha o castelo, então foi você quem fez cuzão
Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era carne, agora sou a própria navalha
Tim tim um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias 
(RACIONAIS MCs, 2002, grifos nossos).

Nota-se agora a passagem do eu enunciador de uma condição para outra, a construção de uma imagem positiva que faz de si mesmo. O discurso é de enfrentamento. Com a segurança de quem se sente como sendo – a imagem é ótima – não mais a carne propensa ao ferimento, mas a navalha que se presta a ferir, a cortar e a matar. A carne que será vítima dessa navalha é a própria carne do opressor. O discurso é de transformação radical. De carne, em navalha – aqui, o oprimido se liberta. O indivíduo que era invisível se torna uma ameaça aos poderes estabelecidos. Ele tem clara consciência de que é “exemplo”, isto é, que, como ele, outros também podem se transformar. O MC se configura, como já vimos, como um efeito colateral do sistema, um herói subversivo, uma espécie de Robin Hood contemporâneo (essa figura já foi utilizada por Said em alusão à figura do intelectual, Cf. SAID, 2005). Nestes termos, e a se levar em conta os dois trechos analisados, o MC está bem em consonância com o intelectual clássico de que nos fala Sarlo. Ele tem sim algo de herói, de profeta e de vanguardista. 

INTELECTUAL MARGINAL: UM CONCEITO CONTEMPORÂNEO
 
Após todas as discussões feitas, propomos, agora, pensarmos no MC como sendo o intelectual marginal e o rap como a expressão crítica discursiva desse intelectual. Há, portanto, a necessidade de afirmar que este é um novo intelectual. E embora para propor um novo conceito acerca do mesmo seja crucial passar pelos pontos de convergência entre as categorias apresentadas por Gramsci e por Said, dentre outros, devemos repensar tanto o perfil quanto a função deste intelectual na sociedade brasileira contemporânea. Como são sujeitos que ocupam a posição de intelectuais ao atrelarem a enunciação às tensões sociais de seu tempo em prol dos dilemas comuns a seu grupamento social são problemas vinculados às suas próprias subjetividades, cabe enfatizar que são agentes que pensam o mundo a partir de uma identidade pessoal; mas, criam a partir dela uma rede de diálogos com as identidades sociaise com o mundo. E desse modo, passam a intervir nas relações cotidianas e a favorecer a legitimação das expressões culturais das minorias. 
Desse modo, nossa análise passa mais precisamente, pelas produções do grupo de rap Racionais MC’s. Ainda que apresentemos discursos marcados por especificidades locais, abordaremos questões e temas comuns às periferias pobres das metrópoles brasileiras, buscando identificar pontos de convergência que possibilitam aos sujeitos falarem do particular concomitantemente, lançam um olhar em relação às diversas vozes ignoradas e apresentam angústias do indivíduo que carrega as marcas de subtração em sua história e em sua cultura.                 
Assim, pode-se dizer que o intelectual em questão é alguém que traz consigo, geralmente, a condição de ser negro, pobre, habitante nas margens sociais, excluído do mundo letrado acadêmico. É preciso dizer também que essa figura se constrói como alguém que fala a partir da favela sobre ela e não, necessariamente, por ela. Assim sendo, se localiza precisamente num espaço discursivo de tensão: ele é alguém que, muitas vezes falando de si, ao mesmo tempo fala pela favela e sobre a favela.
 De modo geral, seus textos (raps), explicitam as relações e os procedimentos sociais, principalmente os de exclusão, da presente sociedade contemporânea. Mais que isso, são reflexos das mudanças sociopolíticas ocorridas em nosso país nas últimas três décadas, mudanças que não foram tão significativas para todos, já que os excluídos continuam, em grande parte, ainda excluídos. E se caracterizam por ser um híbrido quase sempre de fato e ficção, de experiências vividas e vistas no mundo da periferia. Para Miranda, são as experiências subjetivas desse indivíduo que o “qualifica” como intelectual:    
Em meio a um contexto no qual tanto a violência quanto as desigualdades econômicas, sociais e culturais são claramente evidenciadas, o sujeito em debate se caracteriza por estar imerso na mesma situação caótica que denuncia. E ao se colocar em favor de si próprio acaba por se posicionar favorável às minorias étnicas e sociais e por se inserir em um processo de construção tanto da sua identidade quanto da identidade cultural do grupo com o qual se identifica (MIRANDA, 2008, p. 05-6).

Essa nova espécie de intelectual vem em busca de tomar o que lhe foi, de uma forma ou de outra, negado: o poder de falar por si e de reivindicar melhorias para suas comunidades.
Para Foucault, toda relação é uma relação que visa algum tipo de poder. Afirma ele em “Intelectuais e o poder”:
Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. [...] Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder [...] denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo – é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, monopolizado pela administração e seus reformadores (FOUCAULT, 1999. p.75-76).

 Partindo das ponderações de Foucault, faz-se o seguinte questionamento: ao tomar a consciência de poder falar por si faz o intelectual marginal aquilo que os intelectuais modernistas faziam, o falar pelo outro? Digamos que essa resposta seja positiva, já de início esta figura se encontra em tensão: pois falar por alguém é de uma maneira ou de outra tirar a sua voz. Nesse sentindo, Gayatri Spivak, aponta que nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que este ato esteja imbricado no discurso hegemônico. Desse modo, Spivak desvela o lugar incomodo do intelectual que julga poder falar pelo outro, e, por meio dele, construir um discurso de resistência. Sobre essa questão, a autora indiana afirma:
Fazer isso é agir de forma a reproduzir as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido. Há nisso, portanto, o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro (SPIVAK, 2010, p. 12).

Faz-se necessário esclarecer que o conceito de subalterno utilizado aqui é o descrito por Spivak (baseada no conceito de “proletariado” de A. Gramsci), no qual afirma que o termo subalterno refere-se:
[...] às camadas tidas como mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante (SPIVAK, 2010, p. 12-13).

Desse modo, quanto ao subalterno, Spivak defende que os que intentam reivindicar a subalternidade de fato estão incorporando formas outras de identificação com o discurso dominante. A possível maneira de colocar o subalterno para falar não é “doando-lhe voz”, ou falando por ele, mas permitir espaço para que ele se expresse de forma espontânea. Entendo que esse seja o papel mais importante a ser desempenhado pelo intelectual marginal. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso dizer que este perfil intelectual está longe de se encaixar aos modelos clássicos de intelectual. A principal descontinuidade é que, agora, são os próprios excluídos que falam de suas angústias e de seus dilemas sociais, culturais, étnicos e econômicos; e não mais sujeitos hiperletrados e economicamente mais influentes: “Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia [...] Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!” (VAZ, 2007, p.116); “Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.” (FERRÉZ, 2005, p. 9); “Moro dentro do tema” (FERRÉZ, 2006, p. 01). Partindo destas afirmações de Ferréz e Sergio Vaz, podemos dizer que estes intelectuais agem de forma e com intenções diferentes dos intelectuais de tipo clássico, sobretudo daqueles inseridos na tradição do Projeto Modernistas de nação brasileira.  Esse projeto marca uma etapa da vida social brasileira, se caracteriza como sendo uma tentativa de atenuação das diferenças sociais e culturais entre povo e elite que ocorreu entre as décadas de 1920 a 1970, privilegiava a aproximação entre as classes sociais brasileiras ainda que no limite ideológico (Cf. PEREIRA, 2005). Nesse projeto, intelectuais-escritores pertencentes a classes sociais altamente letradas produziram, entre os anos de 1920 a 1970, uma literatura que tomou para si a função de mediar e representar as comunidades marginalizadas. Essa Tradição representou esses indivíduos por meio de um discurso alocado na boca de personagens historicamente excluídos e oprimidos socialmente (principalmente o sertanejo nordestino e o negro) como Fabiano, de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos; Macabéa, de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector; Severino, de Morte e Vida Severina (1955-6), de João Cabral M. Neto; e o miscigenado Macunaíma, de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, dentre outros. Com o espraiamento desse projeto, a função que desempenhava seus intelectuais fica vaga (Cf. PEREIRA, 2005).
O intelectual marginal caracteriza-se justamente pela descrença nesse projeto de nação e em outros semelhantes, pois perante a realidade que o cerca (exclusão social, discriminação, racismo e violência principalmente contra os moradores das periferias), desconfia abertamente numa integração social entre elite e favela, ou em qualquer utopia equivalente. Foram décadas, em alguns casos, séculos em que, fosse o Estado, fosse o próprio intelectual clássico se puseram a entoar o “canto da sereia”, utópico e, depois, pesadamente ideológico, da inclusão social. Os mitos da democracia racial e da integração cidade-favela foram decisivos nesse período. Até que não puderam mais se sustentar pela evidência de uma realidade que teimava em ser excludente, sobretudo nos caóticos anos 1980, em que a ideologia do Estado de bem-estar social veio abaixo no mundo todo.
Para melhor entendermos isto, propomos uma reflexão sobre a condição da grande maioria das pessoas que vive nas periferias brasileiras de onde surgiram rappers como Mano Brow, Gog e Rapadura; e escritores como Sérgio Vaz, Ferréz, Paulo Lins e Carolina Maria de Jesus. É sabido que estas comunidades vivem cotidianamente uma realidade cercada pela violência, falta de perspectiva, pelo descaso do Estado, da sociedade e, principalmente, pela falta de alfabetização e de letramento. Isso porque nessas comunidades os índices de alfabetização são baixos e consequentemente os de leitura. De certo modo isso revela, em termos gerais, a própria condição do Brasil quando comparado a outros países sul-americanos como a Argentina e o Chile. Pode-se dizer que o intelectual marginal toma para si o papel de agente de letramento, isso por ser alguém que está entre a favela e a comunidade letrada. Exemplo disso são suas ações de incentivo à leitura e ao letramento desenvolvidas em suas comunidades.
O intelectual marginal caracteriza-se ainda por ser alguém que: está à margem da cultura letrada produzida na esfera acadêmica; é conscientemente crítico acerca do projeto de inclusão social do projeto modernista de nação, veiculado, sobretudo pelos intelectuais clássicos; tem relativa consciência de que é uma espécie de substituto daquele intelectual clássico; equilibra-se na corda-bamba do conceito de representação: sabe das dificuldades impostas a seu discurso, de fato, sabe que não pode ser o representante do subalterno, que não pode falar por ele, sob pena de privar esse subalterno da própria voz; mas sabe que fala “de dentro”, exprimindo sua própria experiência de subalterno, abrindo espaço para que o subalterno fale; usa gêneros novos (sobretudo o rap) que, por sua vez, se nutrem do discurso dominante, rasurando-o, explicitando as contradições desse discurso; produz seu próprio lócus de enunciação e luta para consolidá-lo por meio de um discurso crítico-subversivo; dissemina uma ideologia que prioriza a valorização da cultura negra frente à aculturação há muito sofrida; acolhe alguns aspectos dos conceitos clássicos de intelectual, sobretudo, a ideia de que é preciso agir no mundo público; nesses termos, sabe agudamente que é pela palavra crítica que se dá combate às formas de dominação e exploração, combatendo, sobretudo, a violência que atravessa a vida da sua comunidade, reflexo das formas de dominação e exploração aqui aludidas.
Por fim, pode-se dizer que os intelectuais marginais do rap expressam sua subjetividade colocando em cena o universo da periferia. Esses agentes tomam a palavra e discursam sobre suas histórias, seus problemas, suas angústias. Esse discurso, no entanto, não tem origem em um só enunciador. É visível o esforço do MC para que sua voz não seja solitária, pelo contrário, por meio de sua voz gritam outras vozes, mantendo assim um diálogo constante com suas comunidades. Assim, pode-se, então, dizer que a voz do MC é uma voz individual com caráter coletivo. Ao se evidenciar essa forma de intervenção do intelectual marginal na esfera pública se verá que este é alguém que se mantém à margem, em uma região fronteiriça, no entre-lugar, e, por isso, está apto a propor estratégias culturais de resistência frente ao fenômeno de aculturação, historicamente produzidas pelas elites, de suas comunidades – “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros” (VAZ, 2007).

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1 Mestre em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).