MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.3- O rap como identidade

Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!            
Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta,
e na moral agora a gente escreve!
(FERRÉZ, 2005, p.9)

O Houaiss define identidade como sendo “o conjunto das características próprias e exclusivas de um indivíduo; consciência da própria personalidade; o que faz que uma coisa seja da mesma natureza que outra” (2004, p. 396).
Para o Novo Dicionário da Língua Portuguesa identidade se restringe a “um conjunto de características como: nome, idade e sexo que distingue uma pessoa das outras” (2001, p.470).     
Contudo, a identidade do jovem negro está vinculada à manifestação de orgulho à sua cor e etnia: “Eu visto preto por dentro e por fora” (RACIONAIS, MCs, 2002), e na consciência sobre a condição racial, uma consciência que é coletiva, uma espécie de união em torno do conhecimento e da valorização de sua origem/descendência e seus heróis, um sentimento de pertença. Vejamos isso num fragmento do poema “Júri Racional” no qual os Racionais discutem sobre identidade e orgulho negro:  

E o que vale a negritude, se não pô-la em prática?
A principal tática, herança de nossa mãe África!
A única coisa que não puderam roubar!
Se soubessem o valor que a nossa raça tem,
Tingiam a palma da mão pra ser escura também!
[...]
Essa é a questão: auto-valorização
Esse é o título da nossa revolução                        
[...]
Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee.
Zumbi, um grande herói, o maior daqui.
São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas.
Então acho que sei da porra que você gosta:
Se vestir como playboy, frequentar danceterias,
Agradar as vagabundas, ver novela todo dia, que merda!
  (RACIONAIS MCs, 1993)

      O poema acima retrata o julgamento de um indivíduo negro pertencente à comunidade dos MCs que renegou sua identidade em troco de dinheiro e status social, deixou de viver a vida de negro para viver a vida de branco e agora está sendo julgado pelo “Júri Racional”, que é constituído pelos próprios indivíduos negros da comunidade.
O discurso desse indivíduo reflete questões pertinentes à vida contemporânea sendo, talvez, a questão de identidade a principal delas. Sobre isso Stuart Hall (1998), aponta que o homem pós-moderno não tem uma identidade fixa ou permanente, assumindo diferentes identidades em momentos diferentes. Isto ocorre porque um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que antes propiciavam sólidas localizações aos indivíduos. Esta questão (a da identidade), se revela para nós como sendo algo de extrema relevância para entendermos a vida e as relações sociais na pós-modernidade. Além disso, é manifestado o sentimento de pertença (HALL, 1998), a uma comunidade, um espaço, uma cultura, uma nação, mesmo com o fenômeno, na pós-modernidade, constante da fragmentação das identidades. O “sentimento de pertencer” é tomado como uma manifestação de comunidade. Ainda na esteira do pensamento Hall, este sentimento pode ser entendido como sendo parte integrante da identidade deste indivíduo, que se constitui de aspectos do “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, religiosas e linguísticas. O “sentimento de pertencer”, decorrente do sentimento de identidade, satisfaz uma necessidade psicológica vital, criando uma sensação de conforto para os indivíduos. Nesse sentido, o que os iguala é o fato de serem humanos. Nesta igualdade, entretanto, as diferenças são as principais marcas identitárias, ou melhor, é justamente por meio da diferença que a identidade é constituída e, portanto, o outro é essencial no processo de auto-reconhecimento (Cf. HALL, 2003)
Desse modo, compreendemos que os raps citados aqui tomam para si a função resgatar e dar manutenção a uma identidade negra contemporânea, mas que faz questão de manter e explicitar suas raízes. Faz isso de uma forma contundente a partir de um discurso crítico subversivo, no qual é possível identificar a manifestação da “voz subalterna” (Cf. SPIVAK, 2010), se opondo à voz do sistema social que privilegia a verticalização do poder (Cf. MIGNOLO, 2003). Assim, então, é possível por meio do discurso do rap visualizar como se manifestam as tensões que surgem das relações, nem sempre amistosas, entre as elites detentoras e produtoras de um discurso quase sempre excludente para com as camadas sociais excluídas.