MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.4 - Rap: crença no poder da palavra e o diálogo com o discurso evangélico

A produção acadêmica das últimas duas décadas tem demonstrado um grande interesse teórico pelo discurso e pela cultura de grupos marginalizados. Muitas vezes, esses grupos rompem com os padrões linguístico-discursivos estabelecidos por uma elite cultural. O movimento rap parece se configurar como um desses grupos, cuja forma cultural vai de encontro aos padrões considerados canônicos. Mais do que isso, os rappers demonstram uma consciência muito grande, não só em relação aos grupos sociais a que pertencem, mas também à importância da palavra, da linguagem, do discurso, enfim. Esta parece ser uma questão valiosa. O poder de falar, negada outrora, é tomado como uma espécie de crença e ganha força e intenção nas vozes desses sujeitos.

Minha palavra alivia sua dor
Ilumina minha alma  
Louvado seja meu senhor
(RACIONAIS MCs, 2008)

É importante ressaltar que há no rap umaideologiaque manifesta uma crença no poder da palavra como forma de emancipação do excluído e também como forma de resistência à violência física e moral, sofridas pelas comunidades periféricas, isso no que diz respeito à crença no poder da palavra: “minha palavra vale um tiro/ eu tenho muita munição”. Nesse caso, esta crença vem ao encontro das ponderações de Hannah Arendt, em A Condição Humana (1997).  Neste a autora defende que a intervenção na realidade deva se dar por meio da ação (action) pela palavra, pelo discurso, para desativar o mecanismo da violência, principalmente a violência física. A palavra escrita e cantada é a “arma” utilizada pelo MC numa tentativa de neutralizar o ódio, a raiva e a frustração que surgem nos indivíduos da periferia por motivos vários, o principal talvez seja a exclusão.
Importante estabelecer que o poder de se expressar por meio da palavra escrita, falada ou cantada, seja para falar de si ou do outro e suas condições, historicamente sempre foi negada às classes vistas pelo olhar dominante como subalternas: negros, mulheres, pobres, judeus, entre outros (Cf. SPIVAK, 2010; BOSI, 2002; FOUCAULT, 1996, LEJEUNE, 2008). Desse modo, quandovemos indivíduos oriundos dessas camadas, tomando de assalto o poder da palavra e consequentemente o poder de falar por si, seja por meio do rap ou por outro meio, automaticamente acende uma luz de alerta na classe dominante como se algo que os pertencesse lhe fora roubado, caindo em mãos erradas. 
A crença na mudança de atitude e condição dos jovens negros da periferia é toda embasada no processo de inclusão sócio-político-cultural. O rap faz isso por meio de letras que estimulam a auto-reflexão e a mudança de postura frente a uma realidade que ao mesmo tempo seduz e elimina:

Eu vou jogar pra ganhar
E o caminho, da felicidade ainda existe
É uma trilha estreita, É em meio a selva triste
[...] O que se quer
Viver pouco como um Rei
Ou então muito, como um Zé
Às vezes eu acho
Que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato
Só seu, sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as fruta no cacho,
[...] é o que eu acho
Quero também.
Mas em São Paulo
Deus é uma nota de 100
(RACIONAIS MCs, 2002, grifos nossos)

Os versos acima explicitam a tensão existente entre ideal versus real, o que se deseja versus o que se vive; momentos de esperança num presente e num futuro melhor que rapidamente são eliminados pela realidade capitalista que cerca o eu lírico (vide grifos). Além disso, o rap brasileiro, diferentemente do produzido nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, apresenta uma outra característica que o torna singular a saber – o diálogo e as referências  no discurso evangélico.
É possível perceber nos versos de alguns raps um discurso polifônico em que o narrador-personagem interage com outras vozes físicas e metafísicas. As letras muitas vezes apresentam, além de um diálogo com um interlocutor fisiológico e psicológico, um diálogo com o sagrado.
Não raro os Racionais conscientemente, inserem em seus poemas citações e passagens bíblicas com as quais demonstram uma crença numa espécie de justiça divina como forma de alívio das injustiças sofridas no meio social:             

Eu acredito na palavra de um homem
De cabelo crespo e de pele escura
Que andava entre mendigos e leprosos
Um homem chamado Jesus
Só ele sabe a minha hora
(RACIONAIS MCs, 1998) 

Que Deus me guarde
Porque sei que Ele não é neutro
                            Vigia os rico
Mas ama os que vem do gueto
Cê não, cê não passa
Quando o mar vermelho abrir         
(RACIONAIS MCs, 2002)

Se só de pensar em matar já matou,
Prefiro ouvir o pastor:
“- Filho meu,
Não inveje o homem violento
E nem siga nenhum dos seus caminhos”
Lágrimas...molha a medalha de um vencedor
Chora agora ri depois, aí,
Jesus Chorou... Lágrimas
(RACIONAIS MCs, 2002)

Fé em Deus que ele é Justo,
Ei irmão nunca se esqueça, da guarda, guerreiro,
Levanta a cabeça, truta, onde estiver seja lá como for
Tenha fé porque até no lixão nasce flor
Ore por nós pastor, lembra da gente
 No culto dessa noite, firmão segue quente
Admiro os crente, desculpa aí
[...]
Eu sou guerreiro do rap,
E sempre em alta voltagem, um por um
Deus por nós, to aqui de passagem,
(RACIONAIS MCs, 2002)

Ei você, seja lá quem for
Pra semente eu não vim
Então, sem terror
Inimigo invisível, Judas incolor
Perseguido eu já nasci, demorou...
Apenas por 30 moedas o irmão corrompeu,
Atire a primeira pedra quem tem rastro meu
Cadê meu sorriso? onde tá? quem roubou?
Éh! a humanidade é má, e até Jesus Chorou
Lágrimas, Jesus Chorou...
 (RACIONAIS MCs, 2002)

O que o guerreiro diz,
O promotor é só um homem,
Deus é o juiz,
Enquanto Zé Povinho,
Apedrejava a Cruz,
Um canalha fardado,
Guspia em Jesus
(RACIONAIS MCs, 2002)

Certamente isso se deve à enorme presença e influência de igrejas, principalmente evangélicas, nessas comunidades que em muitas vezes acabam fazendo o papel de agentes de alfabetização e letramento das crianças e dos jovens dessas periferias.
O rap faz isso sem deixar de fazer referência à herança da religiosidade africana  por meio da manifestação de entidades do candomblé: “agradeço a Deus e aos Orixás” (RACIONAIS MCs, 1998). Na verdade o apego à religiosidade é comum em meio às camadas sociais menos favorecidas economicamente. De certa forma pode-se dizer que os produtores de rap percebem que a condição quase que miserável de suas comunidades está diretamente ligada à falta de alfabetização e letramento, pois vale ressaltar que historicamente no Brasil, o nível de letramento dos indivíduos sempre foi índice de pertencimento à elite cultura e econômica.
Contudo, é na figura de Deus, marcante nas músicas, que há uma crença maior como se este fosse verdadeiramente o único capaz de entender o drama dos marginalizados. Nesse sentido, é comum este paralelo do físico com o metafísico. O movimento parece, assim, se colocar numa função de missionários da paz, mesmo que para alcançá-la seja necessário lutar. Daí, talvez, a explicação por estar sempre se remetendo à figura de Deus, que aparentemente representa, para os rappers, o verdadeiro juiz, o único capaz de julgar suas ações.