MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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3.5- Intelectual marginal: um conceito contemporâneo  

Após todas as discussões feitas, propomos, agora, pensarmos no MC como sendo o intelectual marginal e o rap como a expressão crítica discursiva desse intelectual. Há, portanto, a necessidade de afirmar que este é um novo intelectual. E embora para propor um novo conceito acerca do mesmo seja crucial passar pelos pontos de convergência entre as categorias apresentadas por Gramsci e por Said, dentre outros, devemos repensar tanto o perfil quanto a função deste intelectual na sociedade brasileira contemporânea. Como são sujeitos que ocupam a posição de intelectuais ao atrelarem a enunciação às tensões sociais de seu tempo em prol dos dilemas comuns a seu grupamento social são problemas vinculados às suas próprias subjetividades, cabe enfatizar que são agentes que pensam o mundo a partir de uma identidade pessoal; mas, criam a partir dela uma rede de diálogos com as identidades sociaise com o mundo. E desse modo, passam a intervir nas relações cotidianas e a favorecer a legitimação das expressões culturais das minorias. 
Desse modo, nossa análise passa mais precisamente, pelas produções do grupo de rap Racionais MC’s. Ainda que apresentemos discursos marcados por especificidades locais, abordaremos questões e temas comuns às periferias pobres das metrópoles brasileiras, buscando identificar pontos de convergência que possibilitam aos sujeitos falarem do particular concomitantemente, lançam um olhar em relação às diversas vozes ignoradas e apresentam angústias do indivíduo que carrega as marcas de subtração em sua história e em sua cultura.                  
Assim, pode-se dizer que o intelectual em questão é alguém que traz consigo, geralmente, a condição de ser negro, pobre, habitante nas margens sociais, excluído do mundo letrado acadêmico. É preciso dizer também que essa figura se constrói como alguém que fala a partir da favela sobre ela e não, necessariamente, por ela. Assim sendo, se localiza precisamente num espaço discursivo de tensão: ele é alguém que, muitas vezes falando de si, ao mesmo tempo fala pela favela e sobre a favela.
            De modo geral, seus textos (raps), explicitam as relações e os procedimentos sociais, principalmente os de exclusão, da presente sociedade contemporânea. Mais que isso, são reflexos das mudanças sociopolíticas ocorridas em nosso país nas últimas três décadas,  mudanças que não foram tão significativas para todos, já que os excluídos continuam, em grande parte, ainda excluídos. E se caracterizam por ser um híbrido quase sempre de fato e ficção, de experiências vividas e vistas no mundo da periferia. Para Miranda, são as experiências subjetivas desse indivíduo que o “qualifica” como intelectual:    

Em meio a um contexto no qual tanto a violência quanto as desigualdades econômicas, sociais e culturais são claramente evidenciadas, o sujeito em debate se caracteriza por estar imerso na mesma situação caótica que denuncia. E ao se colocar em favor de si próprio acaba por se posicionar favorável às minorias étnicas e sociais e por se inserir em um processo de construção tanto da sua identidade quanto da identidade cultural do grupo com o qual se identifica (MIRANDA, 2008, p. 05-6)

Essa nova espécie de intelectual vem em busca de tomar o que lhe foi, de uma forma ou de outra, negado: o poder de falar por si e de reivindicar melhorias para suas comunidades.
Para Foucault, toda relação é uma relação que visa algum tipo de poder. Afirma ele em “Intelectuais e o poder”:

Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. [...] Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder [...] denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo – é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, monopolizado pela administração e seus reformadores (FOUCAULT, 1999. p.75-76).

 Partindo das ponderações de Foucault, faz-se o seguinte questionamento:  ao tomar a consciência de poder falar por si faz o intelectual marginal aquilo que os intelectuais modernistas faziam,o falar pelo outro? Digamos que essa resposta seja positiva, já de início  esta figura se encontra em tensão: pois falar por alguém é de uma maneira ou de outra tirar a sua voz. Nesse sentindo, Gayatri Spivak, aponta que nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que este ato esteja imbricado no discurso hegemônico. Desse modo, Spivak desvela o lugar incomodo do intelectual que julga poder falar pelo outro, e, por meio dele, construir um discurso de resistência. Sobre essa questão, a autora indiana afirma:

Fazer isso é agir de forma a reproduzir as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido. Há nisso, portanto, o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro (SPIVAK, 2010, p. 12).

Faz-se necessário esclarecer que o conceito de subalterno utilizado aqui é o descrito por Spivak (baseada no conceito de “proletariado” de A. Gramsci), no qual afirma que o termo subalterno refere-se:

[...] às camadas tidas como mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante (SPIVAK, 2010, p. 12-13).

Desse modo, quanto ao subalterno, Spivak defende que os que intentam reivindicar a subalternidade de fato estão incorporando formas outras de identificação com o discurso dominante. A possível maneira de colocar o subalterno para falar não é “doando-lhe voz”, ou falando por ele, mas permitir espaço para que ele se expresse de forma espontânea. Entendo que esse seja o papel mais importante a ser desempenhado pelo intelectual marginal.
É preciso dizer que este perfil intelectual está longe de se encaixar aos modelos clássicos de intelectual. A principal descontinuidade é que, agora, são os próprios excluídos que falam de suas angústias e de seus dilemas sociais, culturais, étnicos e econômicos; e não mais sujeitos hiperletrados e economicamente mais influentes: “Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia [...] Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!” (VAZ, 2007, p.116); “Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.” (FERRÉZ, 2005, p. 9); “Moro dentro do tema” (FERRÉZ, 2006, p. 01). Partindo destas afirmações de Ferréz e Sergio Vaz, podemos dizer que estes intelectuais agem de forma e com intenções diferentes dos intelectuais de tipo clássico, sobretudo daqueles inseridos na tradição do Projeto Modernistas de nação brasileira.  Esse projeto marca uma etapa da vida social brasileira, se caracteriza como sendo uma tentativa de atenuação das diferenças sociais e culturais entre povo e elite que ocorreu entre as décadas de 1920 a 1970, privilegiava a aproximação entre as classes sociais brasileiras ainda que no limite ideológico (Cf. PEREIRA, 2005). Nesse projeto, intelectuais-escritores pertencentes a classes sociais altamente letradas produziram, entre os anos de 1920 a 1970, uma literatura que tomou para si a função de mediar e representar as comunidades marginalizadas. Essa Tradição representou esses indivíduos  por meio de um  discurso alocado na boca de personagens historicamente excluídos e oprimidos socialmente (principalmente o sertanejo nordestino e o negro) como Fabiano, de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos; Macabéa, de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector; Severino, de Morte e Vida Severina (1955-6), de João Cabral M. Neto; e o miscigenado Macunaíma, de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, dentre outros. Com o espraiamento desse projeto, a função que desempenhava seus intelectuais fica vaga (Cf. PEREIRA, 2005).
O intelectual marginal caracteriza-se justamente pela descrença nesse projeto de nação e em outros semelhantes, pois perante a realidade que o cerca (exclusão social, discriminação, racismo e violência principalmente contra os moradores das periferias), desconfia abertamente numa integração social entre elite e favela, ou em qualquer utopia equivalente. Foram décadas, em alguns casos, séculos em que, fosse o Estado, fosse o próprio intelectual clássico se puseram a entoar o “canto da sereia”, utópico e, depois, pesadamente ideológico, da inclusão social. Os mitos da democracia racial e da integração cidade-favela foram decisivos nesse período. Até que não puderam mais se sustentar pela evidência de uma realidade que teimava em ser excludente, sobretudo nos caóticos anos 1980, em que a ideologia do Estado de bem-estar social veio abaixo no mundo todo.
Para melhor entendermos isto, propomos uma reflexão sobre a condição da grande maioria das pessoas que vive nas periferias brasileiras de onde surgiram rappers como Mano Brow, Gog e Rapadura; e escritores como Sérgio Vaz, Ferréz, Paulo Lins e Carolina Maria de Jesus. É sabido que estas comunidades vivem cotidianamente uma realidade cercada pela violência, falta de perspectiva, pelo descaso do Estado, da sociedade e, principalmente, pela falta de alfabetização e de letramento. Isso porque nessas comunidades os índices de alfabetização são baixos e consequentemente os de leitura. De certo modo isso revela, em termos gerais, a própria condição do Brasil quando comparado a outros países sul-americanos como a Argentina e o Chile. Pode-se dizer que o intelectual marginal toma para si o papel de agente de letramento, isso por ser alguém que está entre a favela e a comunidade letrada. Exemplo disso são suas ações de incentivo à leitura e ao letramento desenvolvidas em suas comunidades.
O intelectual marginal se caracteriza por ser alguém que: está à margem da cultura letrada produzida na esfera acadêmica; é conscientemente crítico acerca do projeto de inclusão social do projeto modernista de nação, veiculado, sobretudo pelos intelectuais clássicos; tem relativa consciência de que é uma espécie de substituto daquele intelectual clássico; equilibra-se na corda-bamba do conceito de representação: sabe das dificuldades impostas a seu discurso, de fato, sabe que não pode ser o representante do subalterno, que não pode falar por ele, sob pena de privar esse subalterno da própria voz; mas sabe que fala “de dentro”, exprimindo sua própria experiência de subalterno, abrindo espaço para que o subalterno fale; usa gêneros novos (sobretudo o rap) que, por sua vez, se nutrem do discurso dominante, rasurando-o, explicitando as contradições desse discurso;  produz seu próprio lócus de enunciação e luta para consolidá-lo por meio de um discurso crítico-subversivo; dissemina uma ideologia que prioriza a valorização da cultura negra frente à aculturação há muito sofrida; acolhe alguns aspectos dos conceitos clássicos de intelectual, sobretudo, a ideia de que é preciso agir no mundo público; nesses termos, sabe agudamente que é pela palavra crítica que se dá combate às formas de dominação e exploração, combatendo, sobretudo, a violência que atravessa a vida da sua comunidade, reflexo das formas de dominação e exploração aqui aludidas.
Ao se evidenciar a forma de intervenção do intelectual marginal na esfera pública se verá que este é alguém que se mantém à margem, em uma região fronteiriça, no entre-lugar, e, por isso, está apto a propor estratégias culturais de resistência frente ao fenômeno de aculturação historicamente produzidas pelas elites – “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros” (VAZ, 2007).