MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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3.4 - Quem é o MC? A voz da favela? Um intelectual?

O MC é aquele que quase sempre se autodenomina um sobrevivente: “aqui quem fala é Primo Preto mais um sobrevivente”; “Aqui quem fala é mais um sobrevivente / 27 anos contrariando as estatísticas” (RACIONAIS MCs, 2008).  Alguém, geralmente, de origem negra, pobre e marginalizada que se orgulha de ter escolhido um caminho inverso o da vida do crime, do tráfico e o da violência – dimensões quase típicas da vida da favela. Alguém que tem consciência que estes caminhos são comuns a quem sempre foi privado de tudo e que o fim é a cadeia e/ou a morte violenta.
Na sociedade contemporânea as utopias, advindas de séculos passados principalmente dos XIX e XX, se revelaram ineficazes e, produziram uma enorme onda de frustração nacional que criou sujeitos sociais incrédulos em soluções mágicas para o caos social, o MC, certamente, é um deles.
  Para Paz Tella, o MC possui um papel e um desejo: ser um comunicador-formador alguém que está entre o entretenimento e a informação. Sobre isso, afirma:

O papel do rapper, além do entretenimento, é fazer um discurso com uma linguagem acessível para informar e tentar ampliar a consciência de uma parcela da juventude negra. Os rappers têm como tarefa transmitir suas mensagens para um público mais amplo. Querem constituir-se numa alternativa de informação e conhecimento, colocando a grande mídia como adversária do seu trabalho. Querem, enfim, ser formadores de opinião (TELLA, 1999, p. 63)

Pode-se concordar com essas ponderações, porém em partes, principalmente, a que diz respeito à relação de alguns rappers com a mídia televisiva. Desse modo, podemos falar sobre a existência de duas perspectivas opostas, já que atualmente, não raro, vemos alguns rappers participam de programas de TV os quais não têm o intuito de formar opinião de modo crítico. Podemos tomar, por exemplo, os rappers Xis e MV Bill e Emicida que participam desses programas; por outro lado veremos grupos como os Racionais MCs, Gog e Facção Central que rechaçam o contato com esse tipo de mídia (2004).           
Mas vamos continuar nos perguntando quem é o MC. Não raro, também, poderemos vê-lo tomando para si a identidade de poeta, em textos de rap: “Palavras pronunciadas / Pelo poeta, Periferia(GOG,2000); “favela fundão imortal nos meus versos” (Racionais MCs, 2002); “Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória, ora” (Racionais MCs, 2002). Sendo assim, podemos afirmar que a matéria-prima do MC (poeta) é a palavra e, logo este tem toda a liberdade para manipular as palavras, mesmo que isso implique romper (e, muitas vezes, negligenciar) com as normas tradicionais da língua culta, da gramática, como muito se vê no rap.    
Os rappers brasileiros trilharam um caminho próprio para a consolidação de sua expressão artístico-política, propondo ações que fogem do circuito massificador dos meios de comunicação e atuando em prol do resgate de questões geradoras de sofrimento humano. Para tanto, por meio de parcerias entre os grupos de rappers, foram criadas rádios comunitárias e selos próprios para possibilitar a veiculação e a gravação das músicas. Além disto, considerando que o sistema educacional formal não proporcionava aos jovens da periferia conhecer a história dos negros, os rappers partiram em busca de seus interesses:

A partir do “autoconhecimento” sobre a história da diáspora negra e da compreensão da especificidade da questão racial no Brasil, os rappers elaboraram a crítica ao mito da democracia racial. Denunciaram o racismo, a marginalização da população negra e dos seus descendentes. Enquanto denunciavam a condição de excluídos e os fatores ideológicos que legitimavam a segregação dos negros no Brasil, os rappers reelaboraram também a identidade negra de forma positiva. A afirmação da negritude e dos símbolos de origem africana e afro-brasileira passaram a estruturar o imaginário juvenil, desconstruídos e a ideologia do branqueamento, orientada por símbolos do mundo ocidental. (...) A valorização da cultura afro-brasileira surge, então, como elemento central para a reconstrução da negritude (SILVA, 1999, p. 29-30).

           
A partir disso, pode-se dizer que os poemas produzidos pelo MC vão de encontro a cultura hegemônica, uma espécie de contra-cultura, uma resistência cultural, um contra-discurso, uma ideologia que visa a consolidação de uma identidade negra juntamente com a construção de uma auto-imagem positiva por meio da música. O caráter de resistência cultural do rap produzido pela comunidade negra se vale das próprias experiências de exclusão (devido sua cor e classe social) vividas pelos mesmos em suas periferias, nas palavras de Tella:

A periferia torna-se o principal cenário para toda a produção do discurso do rap. Todas as dificuldades enfrentadas por estes jovens são colocadas no rap, encaradas de forma crítica, denunciando a violência – policial ou não – o tráfico de drogas, a deficiência dos serviços públicos, a falta de espaços para a prática de esportes ou de lazer e o desemprego. Em meio a esse conjunto de denúncia e protesto, ganha destaque o tema do preconceito social e, principalmente, o racial. (...) E, pelo fato de os membros dos grupos serem em grande maioria afrodescendentes, o enfoque étnico-social ocupa um espaço central no discurso produzido. Ao primeiro momento de denúncia e revolta, segue-se um posterior reforço positivo da auto-estima e afirmação da negritude com resgates culturais importantes (TELLA, 1999, p. 60).
  

Como se vê, o mundo do MC é o mundo da periferia. O MC é o “representante” da periferia. Desse ponto de vista, este tomaria para si a função de ser a voz de sua comunidade. Porém há divergências. Já que se tornar a voz da favela é, por princípio, falar pelo outro – e, em tese, se intrometer no direito que o outro tem de falar por si. Sendo isso uma realidade, o MC seria, ao nosso ver, a contradição do seu próprio discurso explicitado nas letras de seus poemas, uma vez que o rap, apesar de se constituir por meio de um discurso centralizado no eu, busca sempre as outras vozes que fazem parte de sua comunidade. Ou seja, como já vimos (capítulo 2), não busca uma individualidade e sim um coletivo: “eu sou apenas um rapaz/ latino americano/ apoiado por mais de 50 mil manos” (RACIONAIS MCs, 1998); “O que será, será, é nós/ vamos até o final/ Liga eu, liga nós/ onde preciso for/ [...] E liga eu, e os irmão, É o ponto que eu peço” (RACIONAIS MCs, 2002). 
A resistência (cultural, étnica, social) promovida pelo rap ocorre em vários níveis diferentes, mas inter-relacionados, pois ao escrever poemas, o MC precisa criar meios estéticos de ler a realidade de forma crítica, e este é um exercício bastante importante para a afirmação do indivíduo como sujeito que intervém na realidade. Ao ler a realidade o MC dá início a um processo de recuperação de sua práxis; deixando de meramente reproduzir, começa a criar. O ato de criar já é libertador, pois demonstra a potencialidade do ser humano, mesmo vivendo em um meio pobre, muitas vezes miserável. Outro aspecto importante do rap é a sua busca por organização e solidariedade com suas comunidades, atípica em outros segmentos musicais. Os MCs aprendem a trabalhar coletivamente, organizam shows, fazem palestras sobre diversos assuntos ligados à periferia e participam ativamente em espaços políticos. Dito isso, a análise a seguir busca legitimar essas ponderações:                                     

Amo minha raça, luto pela cor,
O que quer que eu faça é por nós,
Por amor, não entende o que eu sou,
Não entende o que eu faço,
Não entende a dor
E as lágrimas do palhaço
(RACIONAIS MCs, 2002, grifos nossos)

O poema faz alusão à história de Jesus Cristo. O MC fala fazendo reverberar a sua voz na voz do próprio Jesus, fazendo alusão ao fato de, tendo vindo ao mundo para salvar a humanidade, não ter sido reconhecido por esta. Assim se sente o MC, um pouco frustrado por não ser entendido por alguns dos membros de sua comunidade, a quem dirige seu discurso. Também, nesse mesmo fragmento, se configura  a seguinte fórmula: a de um eu-individual que luta por um nós-coletivo (vide grifos). 

Não foi sempre dito que preto não tem vez, irmão
Olha o castelo, então foi você quem fez cuzão
Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era carne, agora sou a própria navalha
Tim tim um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias 
(RACIONAIS MCs, 2002, grifos nossos)

Nota-se agora a passagem do eu enunciador de uma condição para outra, a construção de uma imagem positiva que faz de si mesmo. O discurso é de enfrentamento. Com a segurança de quem se sente como sendo – a imagem é ótima – não mais a carne propensa ao ferimento, mas a navalha que se presta a ferir, a cortar e a matar. A carne que será vítima dessa navalha é a própria carne do opressor. O discurso é de transformação radical. De carne, em navalha – aqui, o oprimido se liberta. O indivíduo que era invisível se torna uma ameaça aos poderes estabelecidos. Ele tem clara consciência de que é “exemplo”, isto é, que, como ele, outros também podem se transformar. O MC se configura, como já vimos, como um efeito colateral do sistema, um herói subversivo, uma espécie de Robin Hood contemporâneo (essa figura já foi utilizada por Said em alusão à figura do intelectual, Cf. SAID, 2005). Nestes termos, e a se levar em conta os dois trechos analisados, o MC está bem em consonância com o intelectual clássico de que nos fala Sarlo. Ele tem sim algo de herói, de profeta e de vanguardista.  
Por fim, pode-se dizer que os rappers expressam sua subjetividade através dessa forma mais dialogada, em discurso direto, colocando em cena personagens do universo da periferia. Esses personagens tomam a palavra e discursam sobre suas histórias, seus problemas, suas angústias. Esse discurso, no entanto, não tem origem em um só enunciador, em uma só personagem dessa trama montada pelo texto. É visível o esforço do MC para que sua voz não seja solitária, pelo contrário, por meio de sua voz são outras vozes na tentativa de manter um diálogo constante, como vimos anteriormente. Assim, pode-se, então, dizer que a voz do MC é uma voz individual com caráter coletivo.