FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

Karoline Batista Gonçalves(CV)
Roberto Mauro Da Silva Fernandes
(CV)
Organizadores
Universidade Federal da Grande Dourados

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As fronteiras do humano. imagem e reflexo no sistema-mundo moderno colonial

 

Everton Luís de Souza Júnior
Mestrando em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
Membro do Grupo de Pesquisa “Processos Políticos e Políticas Públicas na América Latina” Bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior evertonlsjr@gmail.com.

 

Resumo
O neoliberalismo, que ganhou força na década de 1990, vem apresentando resultados que merecem ser analisados. A globalização neoliberal reverbera o discurso de um mundo sem fronteiras, onde o global e o local estão interconectados. Mas o que se vê é que o capital se apresenta como móvel, subjugando as fronteiras dos Estados-nações, enquanto para os sujeitos da periferia – os “colonizados” – a fronteira ganha o sentido de “conter”, “limitar” e se materializa no espaço. Consideramos aqui que o neoliberalismo funcionou como um espelho – que possuía uma imagem geratriz e um reflexo - que quebrou e propiciou o encontro de “colonizador” e “colonizado” no sistema-mundo, agora moderno, reatualizando o debate sobre a colonialidade de poder. O outro, o diferente – o migrante, o refugiado e o terrorista - deve ser barrado e é por meio da fronteira que as ações são tomadas. Essa fronteira também é imaterial e se revela na não-convivência com o diferente, com o outro, fazendo renascer conflitos e situações paradoxais na sociedade capitalista.

Palavras-chave: Fronteira, Sistema-mundo moderno, Colonialidade do poder, Migração, Neoliberalismo.

Abstract
Neoliberalism, which gained momentum in the 1990s, is showing results that are worth analyzing. Neoliberal globalization discourse reverberates in a borderless world, where global and local are interconnected. But what we see is that capital is presented as mobile, subduing the borders of nation-states, while subject to the periphery - the "colonized" - the border gets the sense of "contain", "limit" and materializes in space. We consider here that neoliberalism has functioned as a mirror - which had an image and a reflection generator - which broke and caused the meeting of "colonizer" and "colonized" the world-system, now modern, reviving the debate on the coloniality of power. The other, the different - the migrant, refugee and terrorist - and it must be stopped by border actions are taken. This border is also immaterial and is revealed in the non-coexistence with the different, with the other, rekindling conflict and paradoxical situations in capitalist society.

Keywords: Frontier, the modern world-system, Coloniality of power, Migration, Neoliberalism.

 

1 – Introdução

            Durante a década de 1990, o neoliberalismo se tornou regra nos Estados-nações capitalistas, reestruturando o modo de produção. Com grande apelo ideológico, apoiado pela mídia, que possui interesses na manutenção do sistema, o neoliberalismo se tornou a doutrina da década após a derrocada do socialismo, injetando em mentes e corações a ideia da globalização e do mundo sem fronteiras 1.
Com ideários de lucratividade, individualização, coisificação e mercantilização dos seres humanos e das relações sociais; solapamento do Estado – enquanto controlador e detentor do território –; mundialização do capital, que torna o mundo sem fronteiras para as operações financeiras, subsumindo com as delimitações dos Estados-nações, essa doutrina permanece vigente no atual sistema-mundo de alcunha moderno.
            Mas o atual sistema mundial vem apresentando sinais de uma crise estrutural tríplice (CHESNAIS, 2009): social, econômica e ecológica. Detendo-nos na primeira estrutura, temos que no bojo do processo de acumulação de capital e expansão deste no atual mundo globalizado, com grande ênfase na individualização e na socialização através do mercado – e da “mercantilização” da vida e das relações humanas -, além de ampliar as desigualdades sócio-espaciais, percebemos que o neoliberalismo produziu o encontro de opostos até então separados pelo espaço-tempo.
Partimos do pressuposto que o neoliberalismo é como um espelho, que criou nos países da periferia, imagens fictícias – reflexos - das imagens do centro. Mas como toda imagem de espelho, ela é invertida. E este reflexo, como não se acreditava, tem movimento próprio. Este movimento de imagens espaço-temporais distintas/distantes é o movimento da periferia do sistema. Há vida do outro lado da linha, da fronteira (ou do espelho, para nos determos na metáfora).
O reflexo, que possui vida, iniciou seu movimento pelo sistema-mundo, indo ao encontro de sua imagem geratriz, atravessando a linha até então imposta e intransponível (abissal). Em termos mais simples, o colonizado encontrou seu colonizador separado há tempos pelo espaço geográfico. Esse encontro gera situações ímpares na sociedade dita moderna (ou pós-moderna, como a mídia gosta de conclamar) e tentaremos discutir algumas.
            Imagem versus reflexo. O sistema-mundo moderno, ainda possui outra face: a colonial. Mas o que acontece com o reflexo? Como a imagem central se coloca perante esse movimento? Como ocorre esse encontro nas fronteiras do eu e do outro nessa colonialidade moderna?
A primeira seção do presente capítulo versará sobre o neoliberalismo e a criação do aqui denominado reflexo, demonstrando que os países ditos subdesenvolvidos tentaram seguir o ideário neoliberal na esperança de se tornarem desenvolvidos, situação que não se concretizou. A segunda seção retrata o encontro da imagem central com o reflexo no espaço geográfico: sujeitos separados pelo espaço-tempo e que se esbarram no território, reatualizando o debate sobre a colonialidade do poder2 . Na terceira parte serão discutidas as materializações e as imaterializações da(s) fronteira(s). Como esta(s) se tornam(ram) importantes para barrar o outro, o diferente ao mesmo tempo que foram subsumidas pelo capital que exige, para sua acumulação no tempo e reprodução no espaço, sua aniquilação.
A imaterialidade se realiza (materializa) na não-convivência com o outro. A última seção almeja interpretar como o reflexo se tornou central nas discussões atuais do modo de produção capitalista, uma vez que a imagem geratriz depende de seu reflexo, mas inverte o discurso e a lógica dessa dependência.

2 – Neoliberalismo e a criação do reflexo marginal

O neoliberalismo consiste em uma doutrina capitalista que enseja o livre mercado, incentivando a propriedade privada e a não influência do Estado em diversos seguimentos, que, portanto, ficam a cargo do mercado, que tem ampliado seu escopo de atuação. Aquele passa apenas a ser um mantenedor das ações sociais e da garantia da integridade do dinheiro. Iniciado na América Latina nas décadas de 1970 e 1980 – Chile (com os famosos Chicago boys) e México - consolidou-se na década de 1990 no restante dos países latino-americanos.
 A doutrina teve como grandes representantes a Grã-Bretanha – no governo de Margareth Thatcher, eleita em 1979 – e os Estados Unidos – no governo de Ronald Reagan eleito em 1980. Por “incentivo” desses dois países, a doutrina se instalou na maioria das nações a partir da década de 1980 (MAGNOLI, 1996; HARVEY, 2008).
Na Ásia, África e América Latina iniciava-se uma renovada iniciativa de recuperação do atraso da industrialização, desta vez financiada em grande estilo por créditos privados do exterior. Um desenvolvimento das economias nacionais orientado à exportação e aberto ao mercado financeiro mundial, e não apenas a uma substituição de importações como na década de 1930. (ALTVATER, 1995, p. 13-14).
            Os países subdesenvolvidos3 – países do polo dominado do padrão de poder mundial (PORTO-GONÇALVES, 2006) – viram, com a abertura comercial, suas economias se transformarem, com o território nacional sendo explorado por transnacionais e suas economias cada vez mais dependentes do mercado financeiro internacional.
Durante toda a década de 1990, os países do “mundo subdesenvolvido”- que inclusive ganhou nova subdivisão entre esses: os países “emergentes” - conectados à economia global por possuírem em seus territórios multilaterais e transnacionais, viveram a ilusão de que se adequando à economia mundial e seguindo fielmente o ideário neoliberal pregado pelos países do polo dominador do padrão de poder mundial, conseguiriam alçar o tão esperado desenvolvimento; afinal, estavam seguindo os mais ricos, sendo seu fiel reflexo.
La lectura política dominante fue que la única opción para los Estados nacionales era someterse a este movimiento de integración, abriendo y adaptando sus estructuras internas a los parámetros de la modernidad global. De modo que las evidentes – y persistentes – diferencias entre territorios nacionales se atribuyeron a la incapacidad de algunos – y habilidad de otros – para adoptar las medidas necesarias para atraer capital y arraigarlo en inversiones dentro de sus fronteras. (...) para los países periféricos endeudados, el disciplinamiento a los estándares internacionales de acumulación de capital vino de la mano de las imposiciones de organismos supranacionales como el FMI y el Banco Mundial, que revistaron como una suerte de gendarmes de una lógica unívoca e imparable del capital (THWAITES REY, 2009, p.9).
Mas, o espelho neoliberal refletiu a imagem, porém, de forma invertida, ocasionando então crises e pontos de colisão.
            O reflexo produzido como resultado do ideário neoliberal não passou de uma imagem repaginada da periferia que continuou sendo periferia. O crescimento econômico não veio; a desigualdade não recuou; os direitos sociais retrocederam e crises estruturais se deram.
Nada de anormal, uma vez que o reflexo de uma imagem no espelho é esta “ao contrário”, ou seja, a periferia seria o oposto do centro. O rótulo de país “desenvolvido” não chegou (mas seu oposto, o seu contrário, continua e se confirma com o neoliberalismo). Harvey (2008) demonstra a situação que o neoliberalismo impôs aos países da periferia.
Em boa parte da América Latina, a neoliberalização produziu estagnação (na “década perdida” de 1980) ou surtos de crescimento seguidos por colapso econômico (como na Argentina). Na África, a neoliberalização não fez coisa alguma que gerasse resultados positivos. Só no leste e no sudeste da Ásia, seguidos em certa medida pela Índia, ela foi associada a algum registro positivo de crescimento, e, nessa região, os Estados desenvolvimentistas não muito liberais tiveram um papel bem importante. (HARVEY, 2008, p. 168).
            Percebe-se, portanto que a neoliberalização não rendeu o que se esperava (se é que se esperava que os países periféricos conseguissem sair da dominação econômica em que se encontravam) para os Estados da periferia. Na verdade o que o neoliberalismo fez foi acentuar a descontinuidade do desenvolvimento econômico no espaço global, que ocorre de forma não simultânea nas diversas regiões e Estados-nações (ALTVATER, 1995), um crescimento desigual e combinado (SMITH, 1998), e gerar tensões estruturais no bojo do próprio modo de produção capitalista.
 Enquanto alguns pontos do sistema prosperavam – criando novos ricos, ilhas verdes no meio do deserto – outros pontos se afundavam nas disparidades socioeconômicas. O que os Estados periféricos tentavam fazer era atrair capitais para seus territórios – mesmo que leis importantes fossem deixadas de lado para que o capital externo se fixasse - como demonstra Aceves Lopez (2006).
Los Estados que quedan al margen del centro, en su intento por mantenerse vigentes, es decir relacionados con el proceso de acumulación, tienen que atraer a los capitales o, dicho en otros términos, “generar condiciones atractivas a la inversión” mediante refirmas fiscales que cargan todo el peso del Estado a los trabajadores, cambios legislativos que abaratan el costo del trabajo y privatizando todo aquello que asegure ganancias al capital (ACEVES LÓPEZ, 2006, p. 114). 
            Atualmente o capitalismo se encontra em um momento delicado. O reflexo da imagem central causou rachaduras no espelho capitalista neoliberal, o que acarretou então sua quebra e o encontro há muito separado pelo espaço-tempo: pobres-ricos, colonizadores-colonizados, Norte-Sul, Leste-Oeste.

3 – A clivagem espaço-tempo se atualiza como debate ou o encontro da imagem com o seu reflexo

            O que se demonstrou até aqui foi que o neoliberalismo aumentou as divergências e disparidades sociais, propiciando o encontro dos desiguais. Por meio da mercantilização de todas as instâncias da vida, os seres humanos se tornaram “capital” humano, passível de ser manejado e controlado. Por se socializarem no mercado, suas realizações são inteiramente de sua responsabilidade, não há influências externas.
O que se conhece como “justiça social”4 ou equidade torna-se, então, mérito individual e as desigualdades, portanto, justificáveis, uma vez que é descontextualizada historicamente, despolitizada socialmente e deseconomizada economicamente 5, de obra do indivíduo (do ator como melhor se encaixa nessa situação o “ser” que tem sua socialização no mercado).
Além disso, o Estado não se responsabiliza mais pelas situações descontroladas por parte do mercado em que os cidadãos são expostos. Simplesmente age sanando eventuais problemas em busca de uma equidade social, uma justiça social com base no mercado (que como dito, está em mudança pela mudança da forma de agir do Estado), passando a oferecer vantagens econômicas enquanto o Estado de Direito zela pela lei e ordem para que o sistema funcione – garantindo a propriedade privada, proteção contra fraudes e o cumprimento de contratos e ainda para que as fronteiras materiais sejam percebidas – e utilizadas - de formas diferentes em situações diversas.
            Mas nesse bojo, o qual à diminuição da participação do Estado cresce a participação do mercado, chamamos a atenção para o encontro entre espacialidades diferentes. O encontro do moderno com o colonial – ou da imagem central com o reflexo – no sistema mundo neoliberal.
Pelo conceito sistema-mundo moderno colonial, enxerga-se claramente a aglomeração no espaço geográfico de tempos e temporalidades distintas e as relações de poder. Delimitando-se mais, ao se pensar que o encontro, em um território – sem esquecer que este território é um Estado neoliberal, de proteção social mínima - de explorados e exploradores – ou desenvolvidos e subdesenvolvidos - ocorre com frequência, o debate se atualiza enquanto conflito.
Porto-Gonçalves (2006) discute muito bem essa situação, supostamente colocada como anacrônica, ao apresentar o ocorrido na França em 2005 em que descendentes de argelinos estavam protestando por empregos e denunciando a discriminação que lhe impunham franceses brancos – salientando-se que esses descendentes são também franceses, mas negros. Ou quando a Bolívia foi palco de uma batalha entre transnacionais contra a população originária. As distintas realidades causam choques, atritam-se e divergem cada vez mais. O conflito entre imagem e reflexo está em ação contínua.
            Esses choques entre a imagem central e o reflexo marginal retira daquela toda sua segurança – que pode ser entendida como a segurança ontológica desenvolvida por Giddens (2002)6 , obviamente fazendo as adaptações necessárias – de centro do sistema e também retira a segurança do reflexo enquanto periferia. Eu não sou aquele. Aquele quer ser igual a mim?
Em nenhum momento se considerou que a situação vivida por aqueles povos e regiões [reflexo marginal] se devia, fundamentalmente, ao fato de terem sido submetidos aos desígnios dos europeus e depois Estados Unidos e Japão e que, portanto, a experiência de desenvolvimento europeu era impossível de ser reproduzir nessas áreas e entre esses povos, pelo simples fato de lhes faltar o lado colonial que constituiu aquele lado moderno, assim como pelo fato irredutível de serem esses povos outros, diferentes. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 349, grifo meu).
            Segurança que foi abalada, em sentido literal pelo atentado ao World Trade Center em setembro de 2001, que alterou todo o rumo da primeira década do século XXI. O país “central do centro do sistema”7 ferido por seres do outro lado da linha abissal (para lembrar Sousa Santos); o reflexo intimidou e amedrontou a imagem central. Esta mais que depressa se certificou travar uma batalha contra terroristas e contra o então denominado “eixo do mal”.
A batalha contra o eixo do mal se tornou nos Estados Unidos uma política de Estado, uma vez que Barack Obama, presidente que assumiu depois de George W. Bush, continuou com a denominada guerra preventiva. E no início de maio de 2011 autoridades estadunidenses divulgaram que Osama Bin Laden havia sido capturado e morto durante uma operação secreta no Paquistão, dez anos depois dos atentados. Controvérsias à parte que tal situação causou (como a não divulgação de imagens do corpo, que foi jogado ao mar, e a falta de amostras para um efetivo exame de DNA) o terrorista e sua morte já não eram mais o maior problema.
Detenhamo-nos na caça aos terroristas. O adjetivo tornou-se substantivo8 e se generalizou. Qualquer pessoa diferente é uma ameaça, como ocorre muitas vezes com pessoas imigrantes. O estranho, o do outro lado, o reflexo pode e deve ser tratado como um terrorista. Foi a partir dos atentados terroristas que a intolerância e a xenofobia cresceram nos países centrais. Estes, por medo do reflexo marginal, uma vez que sua segurança ontológica foi abalada, tentam evitá-los de todas as maneiras, com barreiras físicas ou não. Os “do outro lado da linha” estão sendo culpados pela insegurança social e política das sociedades desenvolvidas (PÓVOA NETO, 2005, p. 297). Nada mais contraditório (não era para se surpreender já que o modo de produção sob o qual vivemos é paradoxal).
            A imagem encontrou o reflexo marginal. O colonial se atualiza a partir desse confronto. O espaço-tempo se reconfigura. A tão promulgada civilização pós-moderna não é mais do que a mesma civilização dual de quinhentos anos atrás. Sousa Santos (2007) apresenta bem o encontro dessas espacialidades distintas no atual espaço geográfico.
Aqui, o colonial é uma metáfora daqueles que entendem as suas experiências de vida como ocorrendo do outro lado da linha e se rebelam contra isso. O regresso do colonial é a resposta abissal ao que é percebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas. Este regresso assume três formas principais: o terrorista, o imigrante indocumentado e o refugiado. De formas distintas, cada um deles traz consigo a linha abissal global que define a exclusão radical e inexistência jurídica. (SANTOS, 2007, p.12-13).

4 – A fronteira do ser: materializada e imaterializada

            A imagem geratriz, dotada de toda sua centralidade e segurança ontológica, se vê abalada com a mobilidade do outro, do ser que se encontra do outro lado da linha. O espelho se estilhaçou e em seus estilhaços o colonizado foi lançado no sistema-mundo, agora moderno. O colonizado, “o do outro lado”, agora se move. O reflexo se tornou vivo e tenta encontrar e fazer suas escolhas.
 Mas o que fazer se o que se quer é a mobilidade do capital e da imagem e não do reflexo? Simples: a materialização e o reavivamento das fronteiras.
            Desde os atentados do World Trade Center, os países do centro do sistema aumentaram a vigília a quem entra em seus territórios. A fronteira passou a ser vigiada para que o estranho não possa entrar. Novos critérios para selecionar quem tem acesso ao território central foram criados, inclusive à revelia de tratados internacionais em favor de pessoas imigrantes e pessoas refugiadas9 .
            A França criou um ministério somente para cuidar da imigração. Os Estados Unidos reforçaram a vigia na fronteira com o México; a Alemanha não concede mais asilos porque os imigrantes não se encaixam nos perfis de quem merece ficar no país. A fronteira para os sujeitos vindos da periferia se torna material nessa perspectiva, tendo o sentido de separar, como afirma Hissa (2006, p. 19) “o limite é algo que se insinua entre dois ou mais mundos, buscando a sua divisão, procurando anunciar a diferença e apartar o que não pode permanecer ligado. O limite insinua a presença da diferença e sugere a necessidade da separação”.
            Porém o discurso se torna paradoxal quando confrontado com a ideia de globalização, aldeia global e todas aquelas metáforas para denominar um mundo em que o espaço foi consumido pelo tempo, onde as fronteiras não mais existem, onde o local e o global se interconectam diretamente.
            Esse abaixo às fronteiras somente é levantado para o capital financeiro, a qual se torna imaterial e fluída. No caso de pessoas, se torna coisa material, no sentido físico-militar, jurídico-político e sócio-econômico. Essa fronteira material atualiza o colonial. Eles estão do outro lado da linha, centrais, desenvolvidos, colonizadores; nós, do lado de cá, periféricos, subdesenvolvidos, colonizados, imersos em uma natureza selvagem, desordeira e caótica (ALTVATER, 1995). “O outro lado da linha desaparece enquanto realidade inexistente” (SANTOS, 2007, p. 3-4).
 A fronteira se materializa imaterialmente – reterritorializa-se - na não-convivência com o outro, exatamente por esse outro ser o diferente e estar imerso do outro lado da linha. A não-tolerância com o colonizador/colonizado repercute em ações no território. Choques, confrontos, guerras, mortes, legislações, atos. Ocorrências do encontro de temporalidades e espaços distintos. O colonizador não quer encontrar em seu território o colonizado. Afinal, esse irá desfrutar dos progressos e ações conseguidas a suas custas. Portanto, a fronteira materializa e reproduz as relações poder.
Uma reflexão sobre limites e fronteiras é, também, uma reflexão sobre o poder. Fronteiras e limites são desenvolvidos para estabelecer domínios e demarcar territórios. Foram concebidos para insinuar precisão: a precisão que pede o poder. Enquanto forma de controle, a precisão é necessária para o exercício pleno do poder, em suas diversas instâncias. Fronteiras e limites reclamam pela exatidão, pela presença insinuante da linha visual que muitas vezes não possuem. Fronteiras e limites reclamam a imagem, o marco – concretude que, substituindo a abstração, possa fornecer a ideia de exatidão (HISSA, 2006, p. 35).
Raffestin (1993, p. 169) diz que o “invólucro espaço-temporal no qual se originam as relações de poder é um todo. Assim o limite ou a fronteira não decorrem somente do espaço, mas também do tempo”. Isto abre o caminho para que se analise a situação através do tempo e não de forma estanque e apenas vista como uma face imposta pelo neoliberalismo. A sociedade já se conforma assim há muito tempo, tendo o neoliberalismo exacerbado e justificado estas ações, criando situações ímpares e de difíceis soluções na(s) sociedade(s) capitalista(s).

5 – Transpondo a fronteira? Considerações finais

 O reflexo marginal ou a periferia do sistema capitalista reflete o que é feito no centro, ou seja, a imagem central. As ações feitas lá reverberam aqui como quando se está diante de um espelho. Porém, o reflexo, neste caso, começou a se mexer sem necessariamente estar ligado à imagem. O espelho foi quebrado e o reflexo passou a andar pelas próprias pernas e encontrou a imagem que lhe originou.
É ai que se encontra o impasse da atual sociedade capitalista: o encontro entre essas temporalidades, entre espaços-tempos e realidades diferentes permeadas sempre por um modo de produção que a tudo e todos subjuga. As fronteiras do capital estão fluídas, o mundo é agora um sistema unido e integrado, mas com fronteiras bem claras: colonizados de um lado e colonizadores de outro, conformando um par contraditório e dialético.
Mas o centro também se movimenta no sentido de refrear essa autonomia criada pelo reflexo ao intensificar a fronteira, a contenção territorial de sujeitos vindos do outro lado da linha que são tratados como “terroristas”, “imigrantes” ou “refugiados”. A fronteira aparece demarcada como questão de segurança nacional, apesar de ser colocada, no discurso oficial, como algo já ultrapassado, desimportante e banal, como assinala Raffestin (1993).
Sem dúvida, o limite ou a fronteira não passam de um fenômeno banal e é por isso que não têm sido objeto de um grande interesse. Mas, na realidade, eles nada têm de banal quando retomados na qualidade de sistema sêmico no projeto social. Constituem uma informação lato sensu indispensável a qualquer ação. Portanto, cada vez é preciso estudá-los como portadores de uma informação que consome energia, para ser criada, controlada e mantida. Participam de todo o projeto sociopolítico ou socioeconômico e é por intermédio desses projetos que é conveniente situá-los (RAFFESTIN, 1993, p. 169).
O que o centro tenta escamotear é que é dependente da periferia. Sua dependência é econômica e ecológica. A riqueza natural do Sul gera tensões e disputas no Norte; as dívidas dos países periféricos servem para acumular a riqueza dos países centrais. O senhor depende do escravo e não este daquele. É nesse sentido que a colonialidade de poder se mantém enquanto conflito, enquanto pensamento e ação no atual sistema-mundo, interdependente, mas cuja interdependência está estruturada em relações hierárquicas de poder – o moderno-colonial (PORTO-GONÇALVES, 2006).  
            A colonialidade do poder se mantém justificada, e muito atual, na globalização neoliberal, que se apropria de reivindicações e justifica as diferenciações, a exclusão e a escassez – entre sujeitos, entre classes e renda. Assimila à lógica do mercado as questões sociais e despolitiza e inverte o discurso, colocando a dependência econômica como forma de continuar a manter o status quo dos países centrais e culpando as reais vítimas da situação e da desordem em que se encontra o sistema mundial.
No entanto, luta-se para que a fronteira seja estudada e analisada mais do que um marco, um limite geográfico, o fim de tudo. Fronteira é um fato social (MARTINS, 1997), um elemento de comunicação biossocial (RAFFESTIN, 2005), em que o poder lá está, mesmo que velado, materializado e imaterializado. Enquanto esta for analisada como limite de separação ou uma linha abissal, o outro estará imerso na inexistência, sendo então o outro estranho e ameaçador, o colonizado, o reflexo, o periférico, que está na base do sistema capitalista sustentando o topo.

Bibliografia

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1 O neoliberalismo aqui é entendido como uma “estratégia ideo-política” das classes dominantes para a reversão da crise do capital dos anos 1970 (BRANCO, 2009). O apelo ideológico feito pela mídia, que reproduz a ideologia de classes dominantes, para a aceitação da doutrina neoliberal foi um fator muito importante, muitas vezes desconsiderado.

2 Aníbal Quijano (2005) coloca que a base da colonialidade de poder é a “raça”, que é o eixo fundamental para a classificação e dominação social. Foi criada a mais de quinhentos anos e é a mais profunda expressão da dominação colonial, uma vez que foi imposta a todos os povos do planeta Terra.

3 É comum se considerar o Terceiro Mundo – ou agora os países subdesenvolvidos e os em desenvolvimento – como situados em um momento de transição até atingirem a situação de desenvolvidos. Concordamos com Santos (2004[1979]) ao considerar que os países subdesenvolvidos possuem suas características próprias e seus mecanismos fundamentais, além de não se assemelharem com os avançados antes da industrialização; portanto, analisar o “mundo subdesenvolvido” como um estágio anterior ao “mundo industrializado” é um equívoco, tanto teórico quanto empírico.

4 A justiça social pode ser entendida como a forma que o Estado – no caso, o Estado de Bem-estar social (Welfare State) – assegurava aceitáveis padrões de vida à população, oferecendo aparatos protecionistas como pleno emprego e educação, classificados então como direitos dos cidadãos (respaldado juridicamente) (PEREIRA, 2008). Mas com o encolhimento da atuação do Estado, esses direitos estão sendo também encolhidos e transformados, assim como a própria noção de justiça e equidade social.

5 Para o neoliberalismo, a história é linear, não havendo confrontos e regressos, portanto se torna uma história a-histórica. A essa visão, junta-se a despolitização das desigualdades justificáveis que ocorre quando se justifica a pobreza e as desigualdades como simples falhas do mercado que, com aparatos de proteções sociais simples, fornecidos pelo Estado, serão solucionados. Retira-se do entendimento social que as desigualdades devem ser mantidas para que o modo de produção capitalista continue a se expandir. A justiça social de mercado é deseconomizada da economia porque o indivíduo não é o mentor das políticas econômicas ou da economia em si. A deseconomização ocorre ao dissociar a responsabilização das desigualdades geradas no processo histórico pelo capitalismo, colocando o indivíduo como responsável pelo fracasso econômico próprio, não sendo culpa da economia ou do sistema como um todo. Essas três situações advêm da individualização do sujeito mercantil, agora responsabilizado (ou responsável) por tudo.

6 A segurança ontológica seria, simplificadamente, a segurança que o indivíduo – ou uma classe - tem ao fazer parte de uma determinada cultura, ou seja, a sua cultura própria. A perda de sentido da realidade - ligada à desordem no território, que até então respaldava suas ações de reconhecimento – altera a realidade e a cultura produzida por ele. Ou seja, quando a imagem central vê seu território invadido pelo outro (o colonizado), pelo seu reflexo, perde suas bases e tenta, então, encontrar uma forma de se reestruturar nessa condição. E é nessa (re)estruturação que a fronteira emerge, material e imaterialmente.

7 Essa colocação, que a princípio aparenta ser redundante, demonstra toda a centralidade que exerce os Estados Unidos no sistema mundial: o centro do sistema tem um Estado central, que é o ponto do qual saem a maioria das decisões em nível global e que irá influenciar todos os outros Estados.

8 Como ocorre normalmente. Ao se substantivar um adjetivo referente ao humano, descontextualizamos fatos histórico-sociais e espaciais: “Aquele homem é um terrorista”. Isto denota que aquele homem, com todas as qualidades de um ser humano, por algum motivo está realizando atos terroristas (em determinado espaço e tempo e motivado por algo). Ao substantivarmos a frase: “Aquele terrorista atacou pessoas inocentes” desumanizamos o terrorista e esse passa a ser um substantivo na nossa sociedade, tendo ações e vida própria, a-histórico. A mesma coisa ocorre com a pessoa imigrante nos dias de hoje ao categorizarmos somente como um substantivo e não contextualizando nem se questionando o porquê de sua migração.

9 Referência a não substantivação de adjetivos, para não cair na a-historicidade como já mencionado.