DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

CAPÍTULO III

3. A Compreensão do sagrado

Neste capítulo serão apresentadas algumas considerações da imprescindível obra Das Heilig1 , do teólogo alemão Rudolf Otto,a qual foi traduzida para o português por Walter Schlupp sob o título de O Sagrado. Nesta obra, Otto revela, de forma minuciosa, o sagrado enquanto experiência individual e subjetiva, afastando-se da concepção conceitual predominante, atualmente, que evoca principalmente o sagrado cristão, não se limitando, assim, apenas em reconhecer algo como sacralizado, pois para Otto, o sagrado é mais que um valor atribuído, é uma profunda experiência que marca a origem de todas as religiões e está presente nelas.
A obra O Sagrado teve sua primeira publicação em 1917 em Breslau/Wroclav (atual Polônia), nesse período o mundo vivenciava o fim da Primeira Guerra Mundial, ou seja, o declínio do império alemão e suas colônias. Esse momento histórico marca a mudança em vários aspectos da sociedade, nas artes, por exemplo, tem-se, o advento do expressionismo, cuja corrente não se permitiu deixar influenciar pelo crescimento econômico e tecnológico do século XX que estava surgindo.
Os seguidores da corrente expressionista entendiam que esse avanço (econômico, tecnológico e científico), era a mais pura razão humana em ação. Entendiam eles que esse desenvolvimento era sinal de ruína espiritual para suas vidas, pois rompia com a moral provinciana e a auto-complacência da sua época. Essa nova percepção se configurou no mundo pós-guerra, e é marcada pelo rompimento com o antigo ideal para emergir um novo modelo e padrões sociais de vida. Pois a vontade e a consciência que emergiu na época ansiavam pela manifestação do novo, do diferente, este novo chegou a atingir também a teologia.

“Essa nova percepção dos expressionistas esta marcado pelo “Aufbruch”. Neste termo alemão está contido “Bruch”, o rompimento com o antigo, a demolição do sistema em vigor; ao mesmo tempo reproduz a vontade e a consciência de começar algo novo, de desencadear uma nova época. “Aufbruch” é, ao mesmo tempo, abalo e partida. Essa sensação de achar-se no limiar, numa transição entre uma época antiga e uma nova, havia atingido a teologia. Esta passou a ser uma “teologia de crise””. (OTTO, 2007, p. 10)

Nesse sentido, a obra de Otto (O Sagrado), também vai se caracterizar como uma obra expressionista, não tanto pela linguagem, mas pelas provocações de suas teses centrais. Isto porque de acordo com Karl Heussi, a obra de Otto apresenta os seguintes elementos: categórica rejeição da teologia anterior à Primeira Guerra Mundial, abalo do conceito de ciência bem como de religião, ênfase no irracional, no intuitivo, além da polêmica contra o historicismo, psicologismo e idealismo.
Dessa forma os autores que vão influenciar sua célebre obra (O Sagrado) são: Lutero, Kant, Schleiermacher e Soderblom. De Lutero, Otto buscou trabalhar com o elemento aterrador, o estremecimento contido na experiência de Deus que se contrapõe à imagem racional, amável e otimista que o Iluminismo faz de Deus. Entendendo que Deus é aquele incomensurável para todos os seres humanos, que não pode ser descrito através de conceitos e palavras, pois se isso ocorrer então, não é de Deus que estão falando. O “totalmente outro” de Otto se fundamenta com os enunciados de Lutero sobre o “Deus furioso”, ou seja, o Deus que deve ser temido a amado dos homens.
Não obstante, quando se refere ao “sagrado como categoria a priori”, logo se reporta a Kant, mas é fundamental compreender que a concepção que ele faz do sagrado como categoria é totalmente diferenciada. Pois das categorias de Kant ele toma emprestado somente a formulação, pois ele cria sua própria compreensão da categoria do sagrado que é inderivável. Dessa forma, o sagrado se apresenta como uma categoria composta, ou seja, que possui dois componentes que são o racional e o irracional. Daí ele enfatizar, nesse sentido, que ambos os aspectos tratam de uma categoria a priori.
Otto revela que a experiência sagrada, além de ser uma experiência íntima, é um ponto em comum em todas as religiões, visto que, tal experiência (que será detalhada mais adiante) é a origem do fenômeno religioso e configura o sagrado, que surge no indivíduo e o faz ver as coisas como distintas, solenes, separadas, especiais, ou seja, sagradas. Percebe-se aqui que Otto se afasta, notoriamente, do sagrado institucional, e induz a ver este como mais uma conseqüência de um todo mais complexo.
Vale ressaltar ainda o caráter fenomenológico que sua obra apresenta, expondo de forma clara o fenômeno numinoso 2 e seus aspectos tremedum e fascinas; além de estabelecer valor aos elementos irracionais para expressar a estrutura de significação e interpretação do sagrado como uma categoria. Esta estrutura necessita de fundamentação e ligação entre o elemento racional e irracional, uma interconexão entre os mesmos. Com isso, Rudolf Otto expressa que o elemento racional tem sido utilizado como via de acesso para se chegar à compreensão do sagrado.

“Acontece que nos habituamos a usar “sagrado” num sentido totalmente derivado, que não é o original. Geralmente o entendemos como atributo absolutamente moral, como perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à lei moral. Só que isso seria simplesmente a vontade moral perfeita”. (Idem, 2007)

Ao longo da história buscou-se dar uma definição para o sagrado, a partir da concepção ética e, também, descrevê-lo enquanto uma representação, porém é importante frisar que segundo estudos da obra de Rudolf Otto, não é da concepção ética que provém o sentido de sagrado e nem a manifestação do mesmo, por isso é necessário desprender-se do aspecto moral e recorrer às características racionais para expressar através de conceitos claros e nítidos a manifestação do sagrado, configurando assim, o elemento racional como uma categoria a posteriori. Por isso, Otto expõe o sagrado como algo que não se decompõem e nem é apreendido a partir de uma concepção moral, este é único. E o que é passivo de conceituação é apenas a manifestação deste, e não o elemento irracional – sagrado propriamente.


1  O termo central heilig será traduzido por “sagrado” ou “santo”, para que venham à tona todas as conotações do original (OTTO, 2007, p.37)

2 Na reflexão ottoniana, o conceito de numinoso é derivado de numem e significa aquilo que é próprio dos deuses e nele está o cerne irracional do sagrado em toda sua potência. Numen é algo totalmente distinto de qualquer outra experiência. (MARCHI, 2005, p: 40)