TURyDES
Vol 7, Nº 16 (junio/junho 2014)

PESCA, CULINÁRIA, HOSPITALIDADE E TURISMO NA BAÍA DE TODOS OS SANTOS

Elizabeth Kyoko Wada (CV) y Ricardo Frota de Albuquerque Maranhão (CV)

Introdução
Este trabalho teve como foco principal as comunidades de pescadores artesanais que pontilham o litoral brasileiro. Para dar início ao conjunto desta pesquisa, foram feitas visitas durante um ano e meio em 25 comunidades de pescadores artesanais de 7 estados litorâneos brasileiros, a saber: Maranhão, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina. Em todas elas, a recolha de depoimentos orais de pescadores e de membros de suas famílias foi decisivo. Depoimentos que revelam a complexa natureza das técnicas de pesca artesanal, além da fruição comum de uma culinária de peixes, frutos do mar e vegetais bastante elaborada. Do ponto de vista etnográfico, esse tipo de depoimento é “matéria prima indispensável para reconstruir a lógica que rege cada sociedade” (Pessanha, 1966, apud Silva, 2005, p. 34).
Embora atentos, do ponto de vista etnográfico, às suas rotinas pesqueiras, sua culinária de peixes e frutos do mar e sua hospitalidade comunitária, preocupou-se também com o fato de que o crescimento do turismo vem demandando a emergência de uma hospitalidade de negócios, em especial de bares e restaurantes, a partir de iniciativas dos próprios habitantes das comunidades pesqueiras. Verificou-se com clareza essa tendência na região escolhida para esta pesquisa, a da Baía de Todos os Santos. Mediante um estudo de caso de uma cozinheira de uma das comunidades da região, procurou-se verificar como se organiza o comportamento de trabalho e acolhimento hospitaleiro nesse atendimento ao turista regional.
O ponto de partida foi a percepção de que, em comunidades tradicionais, a presença da hospitalidade e da dádiva é muito presente, como se pode depreender da leitura de Mauss (1974).
No caso das comunidades de pescadores, em particular das que ainda não foram atingidas pela expansão urbana ou pelo turismo massivo, muitas observações de campo mostraram a vigência dessa característica hospitaleira, desde a frequente troca de alimentos e serviços de pesca entre as famílias dos agrupamentos, até a oferta eventual de preparos culinários de peixes a turistas, às vezes mediante pagamento. Há um estudo preliminar sobre essa interação em Scorsato (2006), em que se analisam as funções pertinentes no relacionamento entre comunidades e turistas.
O fato é que a maioria dos turistas que se dirigem a recantos de sol e mar tem uma visão idealizada dos confortos e prazeres que seu lazer vai auferir. A preparação para a viagem, as compras, os debates em família, tudo aponta para uma imagem idealizada, em que a natureza pródiga se oferece desfrutável, em que o conforto da praia se mistura com a satisfação gastronômica, e tudo o mais.
Na vida real, as coisas são muito mais complexas, a começar pelo frequente desrespeito aos elementos da vida e da cultura das comunidades de pescadores, praticada por muitos turistas. Quanto aos visitantes que desenvolvem uma vocação para melhor usufruir a praia respeitando seu meio ambiente e os seus moradores, isso naturalmente abre espaço para uma interação muito positiva; dentro dela, pode surgir campo para a emergência de uma hospitalidade de negócios autêntica, nascida da prática da hospitalidade comunitária e culinária dos pescadores.
Foi o que procurou ver neste trabalho, e para isso buscou a investigação de elementos básicos da história da região e das características etnográficas de sua importante atividade pesqueira.
 
1 Pesca e História

Em inúmeros pontos de quase todo o litoral brasileiro, nos primeiros dois séculos da história, os colonizadores tomavam posse das terras próximas ao mar, escravizando, expulsando ou matando os seus ocupantes indígenas. A Baía de todos os Santos não fugiu a essa rotina, e, pelo contrário, assistiu muito cedo a esse conflito, por ter sido uma das mais antigas áreas coloniais, com a presença branca desde meados do século XVI. Enquanto ocorria essa disputa fatal entre invasores e primeiros habitantes, todos pescavam, como elemento essencial de sobrevivência. Radel (2005) diz:

O indígena era grande apreciador de peixe e, pela época do Descobrimento, preparavam-no melhor que os africanos. Gostavam dos peixes frescos. Só moqueavam para conservar. Assavam no espeto e no buraco na areia. Cozinhavam o peixe moqueado. Quando o peixe não era muito grande, eles cozinhavam-no com escamas e com vísceras, sem sal e sem temperos. Faziam piracuí, verdadeira paçoca de peixe assado, batido no pilão com suas espinhas, que eles comiam com a inquitaia, pimenta socada no sal. Faziam a piriquiya, que era processada com o piracuí, batido no pilão, mas associado à farinha de mandioca. Pescavam bem, com uma parafernália que incluía um sem número de armadilhas. À noite, usavam o facho, a batida (baticum) e o arpão; de dia, usavam flecha, arpão e lança (Radel, 2005, p. 24).

Entre os peixes de maior porte usados pelos primeiros habitantes da Bahia, além das baleias, estavam o tubarão, o peixe-serra, o beijupirá e o camurupi. Desde o século XVI, cronistas como Souza (1971) tecem uma série de elogios ao beijupirá:

O mais estimado peixe do Brasil, (...) cujos ossos são muito tenros e desfazem-se na boca em manteiga. (...) Eles também se admiram com o camurupi, “outro peixe prezado e muito saboroso (...) e são muitos deles de tamanhos que dois índios não podem com um às costas atado num pau (Souza, 1971, p. 142).

Souza (1971) ainda gasta muitas linhas com as possibilidades culinárias dos peixes, e é de se notar que a quase totalidade dos que cita ainda está sendo pescada na Baía de Todos os Santos.

1.1 Caranguejos e mariscos

Quem chega ao município de São Francisco do Conde, nessa mesma Baía, a menos de duas horas de Salvador, vê logo sua paisagem exuberante, marcada por enseadas, mangues e ilhas, com uma população que mescla o calor e a simplicidade com uma atitude bem humorada e hospitaleira, desassombrada e à vontade com os estranhos. Atitude, aliás, comum à maioria do povo das pequenas cidades da região.
A praça principal de São Francisco, à beira-mar, fica sobre uma pequena enseada que na maré baixa ostenta uma lama que surpreende o visitante à primeira vista, pois parece se mexer toda: o que se agita na verdade são as patas de milhares e milhares de caranguejos, que os índios chamam de uçá.
Tanto esses crustáceos como outros, como siris, guaiauçás, aratus e goiamuns, vivem no manguezal, esse bioma tão fundamental para a vida marinha e que ocupa cerca de 70% da costa da Baía de todos os Santos. O mangue tem solo lodoso, formado de um húmus alcalino. Uma vegetação específica de pequenas árvores e arbustos se apoia sobre essa massa negra, riquíssima em micro-organismos e pequenos animais, vital como ponto de alimentação, desova e criadouro de peixes e frutos do mar.
Agarradas às raízes do mangue nascem e se criam milhões de ostras, de grande consumo pela população e pelos turistas, e cuja casca é usada para fazer cal. Junto a elas prosperam outros moluscos de conchas, como o sernambi, a lambreta e o principal deles, o sururu.
Desde sempre o povo da região tem atividade regular de coleta desses animais, e seu uso é um elemento da vida da comunidade. Catados em grupos, normalmente de mulheres, esses frutos do mar são repartidos pela vizinhança, ou oferecidos aos amigos ou visitas próximas que vêm à casa de quem os têm. Na atualidade, alguns animais tem maior valor de mercado, como o siri mole. Quem fala do assunto é Almir, pescador da Ilha do Paty, pequena comunidade de uns 500 habitantes em São Francisco do Sul:

Siri mole de quantidade a gente apanhava aqui de noite, naquele tempo não tinha lanterna elétrica, a gente fazia uma tocha com diesel ou palha para focar os siris. Tirava vinte, trinta partes de palha e saía pela areia ou mangue. A gente tinha uma panela, nela a gente pegava assim uns sete ou oito quilos. Cansava de trazer siri mole.1

1.2 Técnicas pesqueiras
Almir, como seus pais e sua família, nasceu numa das casinhas coloridas da Ilha do Paty, onde todo mundo pesca. Como relata em seu depoimento:

Sempre pesquei, a gente pega uma perna de rio e sai por aí pescando, com redes de tainheira também. Aqui dá muita tainha, mas aí fora dá também curimã. Agora, o que pesca mais além da tainha é o cabeçudo e o vermelho, na pesca de linha, onde também dá arraia. Antes pegava bem robalo, mas agora está muito explorado.

Outro pescador próximo, o mestre de rede Sr. Tiago, de São Francisco do Paraguaçu, recoloca a questão das técnicas de pesca:

O pescador, principalmente o que é dono da rede, ele conhece o local de pescar, sabe pescar, porque não é todo mundo que vai tomar conta de uma rede. Por exemplo, aqui tem um pegador, eu sei, o outro já não sabe, então aqui o dono procura pessoa que sabe trabalhar, pra não colocar a rede em perigo e nem lascar a rede.

Na rotina desse trabalho, a pessoa que “sabe trabalhar” participa da divisão do produto da pesca, nessa organização comunitária tão característica da pesca artesanal.  Técnicas diversas, grande variedade. Por exemplo, na vizinha comunidade de Maragogipe, o pescador Antonio Santos Oliveira explica:

Hoje eu pesco de rede, rede grande, redinha, camarãozeira. Mas quando eu estava novinho com doze, treze anos eu comecei com pesca de gruzeira. Gruzeira é um monte de anzol, cada braço e meio tem um anzol e joga pelo mar afora preso em duas pontas. Aqui uma ponta e lá do lado de lá outra ponta. Deixa solta e vai visitando de vez em quando. Passa uma hora, uma hora e meia nós vamos ver quando pega um peixe e vemos a arrancada do peixe.

Mas Antonio usa outras redes também:

Uso arrieiro, paroeira, caçoeira, todos estes tipos de rede. E tem a rede do camarão, malha vinte e malha vinte e cinco, que são próprias para o camarão. A menor eu pego camarãozinho menor e a vinte e cinco eu pego camarão graúdo. Mas atualmente eu pesco mais camarão de redinha, pesca quatro homens, que ficam cada um com uma parte para levar para casa. Os camarões que nós pegamos são aqueles camarões assim, miúdos, camarão para torrar mesmo. Torrado, defumado.2

As cunhãs que trabalharam para a cozinha do português logo ensinaram seus preparos e iguarias naturais, e em contrapartida aprenderam depressa a usar limão, alho, cebola e cheiro verde. Elas também implantaram suas pimentas capsicum, como a vermelha e a comari, de cheiro, além de substituir a malagueta africana pela brasileira – e ainda aprenderam com os africanos e lusos a não comê-las apenas cruas: passaram a prepará-las em molhos.
Notável, também, foi a adesão ao azeite de dendê, o óleo de palma africano, e ao azeite doce, de oliva – mas este, importado do Reino, era muito caro, enquanto o de dendê logo passou a ser feito aqui. Outro ingrediente que passou a ser essencial na culinária praiana foi o leite de coco: trazido da Polinésia pelos lusitanos, o coqueiro logo povoou todo o litoral baiano e temperou para sempre pratos como as moquecas, que hoje se incorporaram à toda a cozinha brasileira. Na verdade, no que diz respeito às moquecas, tudo começou com a poqueca indígena, o peixe preparado dentro de folhas, sob brasas. Além de ganhar os temperos dos dois lados do Atlântico, o prato acabou saindo de dentro das folhas para as panelas, com ou sem pimentão, com ou sem mil variedades, e em alguns lugares como o Espírito Santo, sem dendê e sem leite de coco.
Outra grande aquisição gastronômica foi o pirão, aliás característico da hospitalidade comunitária, por se encontrar sempre que as pessoa praticam a comensalidade conjunta.

É difícil encontrar um prato da cozinha baiana que não seja escoltado por acompanhamento de pirão. O pirão indígena era diferente (...) era preparado como, hoje, se prepara o escaldado. O escaldado é preparado a partir do depósito no fundo do prato de cada um dos comensais de uma camada regular de farinha com um dedo de espessura e sobre ela é despejado o caldo (molho) ainda quente (pelando). O comensal com as pontas dos dedos vai misturando aos poucos, aos bolos, a massa e pondo-a na boca. Por cima do bolo, é colocado na boca um bocado de peixe, ou de caranguejo. Já o pirão foi uma adaptação desse escaldado, feita pelos portugueses (...) o líquido fervendo no fundo da panela e a farinha sendo despejada em fio sobre ele, enquanto o preparador mexe todo o tempo para não deixar embolar a massa até que ela descole do fundo da panela (Radel, 2005, p. 76).

2 Comunidades pesqueiras vizinhas

Muitas histórias, algumas parecidas, marcaram as cidades vizinhas de São Francisco, como Cachoeira, Santo Amaro da Purificação e Maragogipe. O esplendor da vida dos engenhos durou desde o último quartel do século XVI até o século XIX, apesar da lenta decadência que a concorrência dos produtores de açúcar das Antilhas impôs à produção nordestina, a partir da segunda metade do séc. XVIII. Mas as vilas da região e seus engenhos resistiram por muito tempo, e ao longo desses séculos, foram se formando nos municípios povoados de pescadores, que brotaram na beira das lagunas, nos estuários e nas ilhas. Zenilda é uma cozinheira de São Francisco do Conde, mas que nasceu numa dessas vilazinhas menores, sobre as quais ela diz:

Eles têm mais pessoas que vivem da pesca mesmo. E eles herdam aquele lado de ilha, de nativos bem distantes do movimento e daquela violência da capital, entendeu? Hoje esses povoados ainda conservam os nomes, e as famílias, ainda tem muita família, fulano é parente de fulano, fulano é parente de Maria.3

Em São Francisco, há vilarejos como o da Ilha do Paty, já citada anteriormente, e da Ilha das Fontes, mais pobre e precária, mas também com grande atividade pesqueira, em particular das mulheres marisqueiras. E há também a ilha Bimbarra.
A vizinha Santo Amaro da Purificação, muito antiga, de 1557, terra de Caetano Veloso, também começou com um grande engenho de açúcar, o Engenho Real de Sergipe, de Francisco de Sá, filho do Governador Geral Mem de Sá.  Em seu município, entre outras comunidades de pescadores, chama atenção a de Acupe. Povoado com sete mil habitantes, muito antigo, foi criado por ex-escravos próximo a velhos engenhos hoje desativados. Tornou-se assim um centro de manifestações de cultura afro-brasileira; mas sua atividade fundamental ainda é a pesca.

Como diz o Edilson, pescador com base no porto da vila: “O comércio aqui roda todo em torno da pesca. Da pesca que é a atividade econômica fundamental. Desde pequeno que eu pesco. E o que me dá trabalho e para minha família é a pesca”. “Comecei pescando com canoa, canoa indígena a remo. Agora que aos poucos está industrializando aqui a pesca, um pouco, está começando a ter canoa de motor. É um dos últimos lugares, porque a maioria por aí já tem. Mas o pessoal daqui ainda tem de madeira, não queria comprar de metal, não tem costume. A arte ainda continua sendo artesanal, olha essa rede aí. É caçoeira pra apanhar corvina, porque a corvina ela fica mais funda. É feita manual, não é mecanizada. Tudo é arte aí. E todo mundo da pesca trabalha assim, e forma uma gente unida.4

O pequeno porto escondido à margens do Açu tem um movimento intenso. Mulheres dos pescadores também ajudam, crianças também auxiliam e brincam na água, lavam animais no rio. “Aqui não para não, é 24 horas esse porto aqui. Daqui a pouco está saindo gente, chegando gente, vai até de noite, tem, uma parte que pesca de dia e outra parte que pesca de noite. De dia pega mais camarão branco, de noite é camarão rajado”, conclui Edilson.5
Interessante notar que tanto em Acupe quanto nas comunidades da região há diversas pessoas salgando peixe e pondo para secar ao sol, peixes como a carapeba e a sardinha. Não são vendidos para os atravessadores, grandes compradores que levam o peixe fresco gelado para Salvador; são vendidos para as cidades do interior da Bahia. Nelas, o pessoal de baixa renda faz o seu ensopado ou cozido de peixe, que dá gosto acompanhado com legumes como jiló e maxixe, e também com batata doce, mandioca e inhame.

2.1 Panelas e saveiros

No caminho de Acupe a Maragogipe há o povoado de Coqueiros, onde mulheres artesãs fazem panelas de barro, bonitas e resistentes. A senhora Maria mostra as vasilhas que está fabricando, enquanto explica em seu depoimento:

Aqui não usa forma, nem máquina, é no olho. Na mão e no olho. A gente arruma o barro, e o formato, e daí vai para secar. Aí hoje não bota no sol, amanhã a gente bota para secar, para quando ela estiver seca a gente queimar. É assim, a gente arruma ela e forra, e agora a gente forra ela com a lenha por dentro e bambu. Aí põe fogo na lenha e queima.

 As panelas de Coqueiros, de bela coloração vermelho escura, já foram objeto de muito comércio. Saveiros grandes vinham de Salvador até o porto do Acupe ou o de Maragogipe para buscar panelas, e também para buscar moringas de cerâmica. Hoje a estrada de rodagem é uma opção mais econômica, as panelas de barro já não são tão procuradas assim, e a maior parte dos saveiros está abandonada.

2.2 Restaurante e preparos culinários

Múltiplas técnicas para pescar. Como se prepara o pescado? Bem em frente à orla, na praça principal de São Francisco do Conde, fica o restaurante Barro e Lenha, da Zenilda, uma cozinheira legítima representante do que pode chamar de “cozinha praiana”, como Radel (2005) denomina essa cozinha que tanto deve aos indígenas quanto aos portugueses e aos africanos, que não abre mão de alho, cebola, limão, pimenta, azeites e leite de coco, que tem uma personalidade muito singular ao entremear com qualidade as heranças culturais e que tem na Baía de Todos os Santos um de seus eixos mais antigos.6
O Barro e Lenha é um lugar extremamente confortável, onde uma brisa marinha torna a estada agradável e onde se comem escaldados, ensopados, assados, frituras, cozidos e até pratos moqueados. Enquanto prepara uma cavala, Zenilda conta: “Sou filha nata daqui mesmo de São Francisco. Antes de criar um restaurante eu era cabeleireira. Aí mudei radicalmente. Eu já cozinhava e fui me profissionalizar, fiz curso de gastronomia, curso superior lá em Salvador.”
Enquanto prepara uma moqueca de siri catado com camarão, finíssima iguaria, Zenilda conta de outros preparos, como o do xangó, peixe do qual tira a espinha e arruma em camadas. Anuncia suas preciosidades: além de uma boa moqueca de siri, há um peixe frito, um frango muito especial preparado com açafrão, um feijão doce, um vatapá, só para começar e mostrar o vasto campo de possibilidades culinárias.
Zenilda fala com tranquilidade sobre as virtudes dessa cozinha que tanto deve aos indígenas quanto aos portugueses e africanos, e que não abre mão de alho, cebola, limão, pimenta, azeites e leite de coco.
Entretanto, o mais importante para definir o universo de Zenilda e sua visão de hospitalidade é a narrativa sobre sua atitude profissional:

Tenho este restaurante há 4 anos. Hoje a exigência do mercado é muito grande, não é? E a gente tem que buscar sempre uma novidade para atrair o cliente. Na verdade meu objetivo foi criar um restaurante regional com a cara do município, e que agregasse valores do município aonde a gente tem a nossa sobremesa que acompanha todos os pratos oferecidos na casa. Tem essa bananinha, tem a cocada, inclusive as nossas sobremesas, são sempre de frutas naturais. Tem sorvete de goiaba, de cupuaçu.

Explica o sorvete: “Goiaba, um pouco de leite em pó, creme de leite, água. Eu bato todos os ingredientes à base do leite, para que ele fique cremoso. Ah, e vai leite condensado.”
Zenilda se estende sobre a necessidade de servir, depois de pratos muito bons, também sobremesas de alta qualidade, “a minha intuição, meu pensamento é esse, eu faço com que a pessoa sinta a mesma linguagem, perceba que eu estou querendo é agregar todo esse sabor”. É uma forma elaborada de hospitalidade.
A chef não se limita a suas panelas, tem também toda uma visão sobre o meio ambiente em que se produzem suas matérias primas. E conta que em uma exposição feita em Salvador sobre tradições, ela e os seus amigos arrumaram um estande que apresentava nada mais nada menos do que um manguezal.

Quando eu arrumei esse estande, eu levei o manguezal ao vivo, quer dizer tive que permitir permissão ao Meio Ambiente porque eu queria defender o manguezal; porque poucos conhecem o manguezal, pessoa do sertão mesmo não conhece. E pra gente é um privilégio, a gente é presenteado, a gente é presenteado porquê do manguezal a gente tira o sururu, tira o aratu, esse caranguejo vermelho, tira a ostra, tira o peguari, essa ostrinha pequena, e outros. Só que a cidade está crescendo, então o povo está invadindo, entendeu? E a gente corre o perigo de perder esse espaço, então eu queria fazer algo que chamasse a atenção.7

A cozinha desta chef baiana tem uma personalidade singular, ao entremear com muita qualidade as suas heranças culturais. Tudo isso se junta numa forma superior de hospitalidade, em que a proprietária do restaurante tem plena consciência das posturas necessárias para manter o interesse do cliente, e as pratica com muita clareza de objetivos.
Na verdade, Zenilda manifesta uma tendência que, se vitoriosa, pode significar uma excelente adequação da tradição das comunidades artesanais com a modernidade do turismo. Tanto é que ela tem uma visão muito precisa do significado da chegada dos turistas e de seus problemas:

O forte aqui é o São João, a festa que a gente reúne a cultura do município, entendeu? A praça e as ruas, daqui até lá, viram uma passarela, pra você entrar na cidade tem que chegar cedo; é tanta gente de fora que até descaracteriza um pouco aquele lado da cultura tradicional que nós tínhamos, da gente reunir a família, ir pra rua, o São João passou por ali...  E as famílias iam de casa em casa, você abria sua porta pra dar comida pras pessoas que iam lá... Entendeu essa tradição? Mas hoje não, hoje entrou Chiclete com Banana, Zezé de Camargo, ficou uma coisa muito ‘elevada’. Isso aí desfocou a nossa origem, a cultura de interior; mas, de outro lado, a população ganhou: a pessoa ganha pra guardar os carros, e eu tenho o tradicional feijão, termina a festa bate o caldo do feijão. Você termina o show 5 horas da manhã, vou ali bater o caldo de feijão, ai você toma um caldo de feijão de manhã cedo entendeu? Então nós ficamos com esse lado das festas, a pessoa já ganha vendendo feijão, as casas são alugadas, o povo já tira esse dinheirinho. Esse lado de comércio é bom, a gente perde um pouco as nossas origens, mas a cidade tem condições financeiras elevadas, a terceira arrecadação da Bahia.

Pragmatismo? Aceitação forçada? Provavelmente há um pouco de cada elemento, mas a fala de Zenilda tem o sabor de uma reflexão que abre caminho para um debate mais objetivo sobre a relação turismo e comunidades artesanais, na aplicação de hospitalidade aos negócios.

3 Considerações finais

Como resultado preliminar da pesquisa deste artigo, ficou clara a vocação objetiva de membros de algumas das comunidades pesqueiras da Baía de Todos os Santos para o exercício de uma prática específica da hospitalidade, a serviço do atendimento ao turismo. O aperfeiçoamento objetivo de suas habilidades culinárias e a preocupação expressa da cozinheira, cujo caso particular foi estudado, com a necessidade de se adequar ao turismo também contribuiu para essa prática. A pesquisa mais geral deverá estender e aprofundar o assunto tanto nessas comunidades como nas muitas outras dos diversos estados em que deram início à investigação.

Referências

Chagas, M., Jr, S. M., & Duarte, A. (2013). Análise do processo de formação da imagem de destinos turísticos de sol e praia: um estudo em Canoa Quebrada/CER. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 456-475.

Diegues, Antonio C. (org.). (2004). Enciclopédia Caiçara, 5 vols., São Paulo: HUCITEC / NUPAUB / CEC / USP.

Mauss, Marcel. (1974). Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedade arcaicas. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp.

Pessanha, Elina. (2005). Fronteiras disciplinares e o uso da história oral, in Meihy, José C. (Re)introduzindo história oral no Brasil, São Paulo: USP/História, 1966, apud Silva, Luiz G. História e Memória Caiçara, in Diegues, Antonio C. (org.) Enciclopédia Caiçara, vol. IV, São Paulo: Hucitec/NUPAUB.

Radel, Guilherme. (2005). A Cozinha Praiana da Bahia. Salvador: Ideia Nova.

Scorsato, Simone M. (2006). Hospitalidade: o desfio das populações de pescadores que se transformam em fornecedores de serviços turísticos. Revista Hospitalidade. São Paulo, ano III, no. 2, p. 77-89, 2º sem.

Souza, Gabriel Soares de. (1971). Tratado Descritivo do Brasil em 1587. (4ª edição). São Paulo: Companhia Editora Nacional e EDUSP.

Recibido: 7/04/2014
Aceptado: 10/05/2014
Publicado: Junio de 2014

1 Depoimento aos autores, abril de 2013. Todos os trechos dos depoimentos serão apresentados em itálico.

2 Depoimento ao Autor, abril de 2013

3 Depoimento ao Autor, abril de 2013.

4 Depoimento ao Autor, abril de 2013

5 Depoimento ao Autor, abril de 2013

6 Op. cit., passim

7 Depoimento ao autor, abril de 2013.



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