TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

Fátima Velez de Castro
João Luís J. Fernandes
(Coordinadores)

Universidade de Coimbra

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OS ESPAÇOS EM VOLTA: SOBRE MICHAEL SNOW

Fausto Cruchinho
Universidade de Coimbra faustocdpereira@gmail.com

Quando um filme começa, a adaptação ao ecrã faz do espaço um plano, uma superfície plana, chata, bidimensional. Precisamos de nos adaptar a uma nova dimensão espacial, a do ecrã, a única que verdadeiramente existe no filme. O que a imagem visual nos dá é uma dimensão fotográfica de algo que teve dimensão, contexto, lugar e que aconteceu num momento dado e irrepetível. A imagem sonora também existiu nesse contexto de produção, agora ausente.
A imagem é imagem de si mesma, não se refere a nada, é ela mesma uma mesmidade de si. A imagem, que é o princípio do mundano, instala um contínuo esvair de formas, de durações, de cores, movimentos e sons. Essa pulsação escorre em intervalos de luminosidade e obscuridade, não é nada que informe, seduza ou irrite. O passo a passo não altera uma regra universal que a imagem estabelece: não precisa do mundo. O mundano, o que se presta ao reconhecimento, não é mensurável nem nomeável. Existe como razão de que a imagem há-de ter um nome.
A imagem é abstração, nada de imanente, nada de semelhante, tudo é o lugar dela no fluxo da imagem contínua. Se vemos como se articula a imagem visível com a audível, sobretudo ela continua um mesmo registo de propriedade artista: o que será que deu origem a esta combustão de pontos e picos que se manifestam? Essa grossa massa de buracos e relevos é a imagem, sonora e visual, uma pontilhação de elementos que formam a imagem.
A imagem não tem plano, a imagem não tem diversidade, é una e solitária. O seu ser é de existir como formação de enigmas e trânsito da inteligência perceptiva. Assim se define a entomologia, ciência do interior do que se toma como etnologia, ciência do mundano exterior à imagem. Então, no seio da imagem temos tudo: o mundano e o interno, as condições da essência desta existência. O que se manifesta como produção de imagem é a sua condição de vida, a sua natureza mesma. O propósito da imagem é existir, ser. Ela torna o seu ser o ser mundano, o de ninguém pairando numa essência una. Das suas características sobressaem a sua impossibilidade de se delimitar em termos mensuráveis: ela é o noema, o pensamento.
A imagem é criada onde? Existe fora de um plano de criação ou é o que existe como já criado? Nasce do nada ou não nasce, já é? A imagem tem existência própria porque é essência. O pensamento não nasce, já existe desde sempre. Então, não há criação, geração espontânea, nem imanência. Estamos no plano da transcendência, pura abstração que se manifesta e é dada ao conhecimento. A sua existência atinge o mundano no momento da inteligência: eu conheço porque eu sou. A abstração, o pensamento, instrumenta a imagem para ser cognoscível, inteligível, ser.
A imagem, oriunda do mundano e aí vivendo, desenvolve relação consigo mesma, não tem relação possível com outro alguém. A imagem totaliza a possibilidade da imagem, esgotando na sua unidade qualquer pluralidade. Ela não é criada, ela não é objeto. Ela existe em si, não sendo devedora a priori e a posteriori, só é sujeito impessoal, uno. A sua natureza impessoal liberta-a de intencionalidade e de recetividade. A sua vida não depende senão de si mesma e, como tal, não nasce nem morre. A natureza da imagem é intransitável, não permite alteração de si mesma nem altera o que lhe é exterior. É inexpugnável e só dentro de si encontra os instrumentos da sua própria configuração, os modos de ser.
A imagem não tem, por natureza, autonomia em relação ao seu criador e ao seu destinatário. Ela é o produto de uma intenção frustrada de comunicar, só pode existir enquanto coisa em si ligada àquilo que lhe deu origem (a criação) e não tem qualquer relação de proximidade com o seu objeto: não duplica, não substitui, é uma coisa como outra qualquer no mundo. A imagem não diz o que quer dizer nem diz o que não quer dizer, a imagem não fala, não diz, é muda. Não provoca qualquer efeito de perceção (semelhança, dissemelhança) ou de sensação (o que vê, como vê), é o recetáculo de tudo o que lá se quiser depositar. A imagem é criação mental, é exteriorização de estruturas pré-existentes e sua arrumação em estruturas recriadas fora da mente, a que é dada oportunidade de se expressar artística ou tecnicamente, com ou sem intervenção mecânica. Como natureza não autónoma, ela tende a ser incluída numa massa mais geral de elementos de significação que se constituem como linguagem.
Assim, é possível referenciar a imagem por assimilação com outras confi- gurações de imagem (escrita, volume, cor), compreendendo um universo de manifestações do ímpeto inicial de exteriorização da imagem. Porém, nenhuma imagem substitui outra, são o produto do momento inicial de figuração do processo mental que lhes deu origem. A imagem não é reflexo nem representa- ção de nada. Ela não repete o que existe nem retoma nada sob outra aparência. Ela é pura criação mental sem origem em nada existente, nasce de manifestação de pensamento que origina uma sua tradução: imagem ou discurso igualam-se na manifestação desse pensamento. Esse pensamento é organizado e toma as vestes da imagem, com ela esgotando o primeiro propósito do pensamento: existir. Outra imagem que retenha elementos da primeira é ainda uma imagem, a mesma imagem, não sendo possível existir mais que uma imagem, assim como não sendo possível existir mais que uma mente. Toda a imagem se preenche de mais ou menos elementos, não sendo possível adicionar ou subtrair outros com qualquer modificação: será sempre a mesma imagem.
O filme mergulha-nos no seu tempo, o tempo da história. Não há tempo cronológico, tempo contado maquinalmente, tempo somatório de segundos, minutos e horas. O tempo é agora o sujeito, inabalável entidade que é o ser cognoscível e ser do pensamento. Não temos mais uma coerência entre sujei- tos da criação, mas entre o sujeito transcendente do pensamento e o sujeito imanente mundano. A passagem de um ao outro faz-se pelo canal da história, não a história narrativa, sim a história que decorre da presença de duas ausên- cias: quando (tempo) ocorre a fusão de dois tempos de sujeitos distintos com tempos distintos.
Sabemos que a ocorrência de várias circunstâncias permite a ilusão do tempo no filme. A compressão dos factos sucedidos ou a sua reiteração ou expansão distinguem os momentos do enunciado. O trabalho do tempo, abstrato como o espaço, é de subtrair ao sujeito o controle dos acontecimentos, restaurar a primazia do sujeito sobre o objeto e tornar visível a impostura do filme. O filme não é uma sucessão de momentos temporais; o filme é um só momento temporal, o do sujeito, que não coincide com o do filme. Ao sujeito não ocorre fundir-se com o objeto, entidade sempre imanente e seu exterior. O sujeito distancia-se do objeto para sozinho organizar o que ficou do tempo, o traço da duração.
O filme é monocular dado que reúne num só ponto de vista os vários pontos de vista. Não compreende todos os postos de vista, só os reúne. Outro ponto de vista igualmente reúne todos os pontos de vista. Então, o filme tanto inclui com exclui vários pontos de vista, como um ciclope, o ponto de vista único orientado para o mundo. Esse monóculo corresponde a um só espaço e a um só tempo, na descontinuidade e reunificação da mundanidade, na sua natureza unária e totalizante. O espaço e o tempo compreendem o dentro e o fora, o visível e o invisível, o compreensível e o incompreensível, são uma totalidade essencial que nada nem ninguém completa ou esgota, já são assimilados no filme como um todo inseparável.
Temos assim que a visibilidade ótica é determinada pelo espectro solar, suas cambiantes de cor, sua intensidade luminosa, sua capacidade de reter por algum lapso mas não muito para poder ligar à seguinte no espectro sem desfazer a primeira impressão calórica. A primeira impressão é, então, a pior porque não está dependente da seguinte. A seguinte mistura-se com a anterior e com a posterior, formando um núcleo compósito. Não é da natureza da imagem ótica ser interrogativa, antes sensitiva. Desse modo, a ótica fornece mecanicamente ao centro sensor uma informação completa, para além de permitir avaliar a intensidade dessa mesma informação: como reagir aos sinais exteriores? Esta ótica não comporta movimento, não traduz ações simultâneas e contraditó- rias, é inerte perante a escolha a decidir entre mais que um foco de atenção. O olho ótico não pressupõe a simultaneidade de dois olhos, dois pontos de visão diferidos numa angulação de semicircunferência – a desconcentração ocular deriva então para uma concentração ótica, sendo esta a junção de dois pontos de vista oculares. Porém, como entender então o lugar da visão monocular da câmara de filmar?
A câmara não repete os movimentos oculares, antes os multiplica até ao limite. Habitualmente centrados nos movimentos horizontais e verticais no eixo cervical, mimetizando o olhar humano, o ponto de visão da câmara é, literalmente, o ponto de vista da câmara aparelho, não o do espetador e ainda menos o do operador ou realizador. A primitiva forma monocular, com uma objetiva, um cano, uma retina e um diafragma repete o olho humano, mas só um. O outro olho, a outra origem ocular não é sobreposta porque não é considerada no protocolo original da constituição da imagem ótica, ainda que venha a conhecer desenvolvimentos que aqui nos interessam: como conceber vários meios oculares sobrepostos, isto é, em erro de paralaxe? Estaremos então condenados a seguir um olho de cada vez ou a perder as informações provenien- tes de cada olho. O somatório de cada um dos olhos ou visões oculares, não está ainda próximo da síntese que representa a reunião dos olhos concêntricos da visão humana. Trata-se, ainda assim, de dois pontos de vista (ou mais) de um mesmo assunto. A sobreposição corresponde, efetivamente, a dois ou mais olhos, quiçá a dois ou mais sujeitos.
Esta segunda hipótese, a mais aliciante, leva-nos a discutir a pressuposta existência e pertinência do autor. Nos trabalhos que aqui queremos abordar, a questão mecânica é a mais saliente. Ela traduz uma natureza mecânica na con- ceção da obra, distinta e distante do caráter sobrenatural atribuído ao artista. A mecânica da câmara é razão de existir de mais do que um eixo de visão ocular. A sua transformação em ótica faz repensar o lugar do sujeito como criador e do filme como objeto. O filme, antes ou para lá do cinema, é o resultado de várias operações, com e sem câmara, resultando em outras tantas soluções pré-
-cinematográficas: imagem e som figurativos ou não figurativos. A figuração, a existir, acidental ou preparada, estabelece a relação ótica e mecânica com um cosmos inexistente fora do processo de captura ocular, quer dizer fora das suas coordenadas. Estas coordenadas, estabelecidas pela quadratura da máquina de cinema, são pontos de fuga para uma amplitude e, em simultâneo, para um esmagamento da imagem, compactada e controlada nos rígidos contornos do quadro. O quadro, frontal, só devolve meia calote esférica. O momento simul- tâneo oposto será situado fora do quadro: a tentativa totalizante será o de que o momento presente apanhe o momento anterior e posterior.
A imagem é, assim, foneticamente abecedário, correspondência hipotética dum léxico gramatical de caráter lógico-simbólico, de assimilação entre pro- cesso comunicativo de linguagem oral e símbolo sígnico. Cada imagem, plano, quadro tem uma matriz de natureza simbólica, juntando por significação, por oposição, por sobreposição. Por sinonímia e antinomia, movimentos de plano, na verdade movimentos de câmara na exploração das horizontais e ver- ticais, na horizontal baixa e na horizontal alta, na vertical esquerda e na vertical direita, na diagonal de cima para baixo e de baixo para cima, direita-esquerda e esquerda-direita. Os movimentos de câmara corporizam a expressão da câ- mara como extensão da mão, não do olho. O interesse do ótico manifesta-se pela gramática do plano em movimento, enuncia a palavra, a voz, a entoação, sinónimo de locução. Cada enunciação repõe o alfabeto, construindo com isso uma pauta musical, usando a métrica e a numérica. O plano é cacofónico até ao momento de se constituir como expressão barroca duma ideia – como se exprime por imagem uma ideia? A que corresponde uma unidade sonora temporalmente em imagem? É, umas vezes, o tempo inteiro, o tempo parti- do, o tempo diferido, o tempo dilatado, o tempo suprimido. É, outras vezes, o espaço alterado, o espaço simulado, o espaço aumentado, o espaço ausente. As três entidades sonoro-espácio-temporais concorrem para a construção de unidades sempre diluídas na sua expressão unária. Digo, não concorrem para o estabelecimento de uma norma, antes para a multiplicação de possibilidades combinatórias. Com tais possibilidades, pode o filme organizar-se em torno do modelo declarativo, não enunciativo, do plano: nenhuma entidade enuncia- dora, nem um antes, nem um depois. Haverá similitude sem haver igualdade. O princípio de organização será o de isolar cada unidade em função de uma declaração unitária. Cada unidade é reformulação da mesma e única ideia: o que a câmara dá não o dá de uma só vez, nem poderá dá-lo por inteiro. As posições da câmara repetem-no o tempo todo, o mesmo se podendo dizer do sonoro – é infinito, como o tempo. A sua existência imaterial alia-se ao espaço e ao tempo numa multiplicação de imateriais alheios ao que se pode entender por material: a existência física do mundano. Estamos então perante uma imaterialidade sonora, tão imaterial como o espaço e o tempo. O mundano representa o princípio do reconhecível e intangível. Daí nasce o princípio da semelhança por equivalência, da convenção por repetição.
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Michael Snow encara o processo cinematográfico como processo mecânico, processo maquinal, o que a máquina de filmar filma tecnicamente em resultado dos procedimentos óticos e sonoros proporcionados pelo invento tecnológico do filme. De igual modo, a ausência de linguagem e de subjetividade, pelo retirar da função do enunciar e do descrever, colocam o seu trabalho fora do cinema entendido como continuação da estética romântica obra-autor. Desse modo, não há narrativa, nem psicologia, nem representação, nem relação espaço-tempo, nem espetador.

Wavelength 1966-67

16mm film, colour, sound, 45 min.
Filmed over one week in December 1966, edited and first screened early the following year, Wavelength was not Michael Snow’s first film but the groundbreaking work that catapulted him out of the painter’s studio, where it was shot, into the international avantgarde. The film was recognized on sight as having resolved in a perfectly integrated and remarkably efficient form the emerging desire among experimental filmmakers for simplicity and directness of cinematic expression, and for making imaginative use of the specific properties of the medium.1

Wavelength (1966-67) apresenta um décor interior que vai sendo progres- sivamente alterado por décors exteriores, aproximando o ponto de interesse à medida que vão sendo alterados os componentes da imagem, mais que o décor. A imagem vai alterando a cor, várias filmagens do mesmo décor vão sendo sobrepostas, com várias ações e com várias escalas de plano. Enquanto isso, o som de sirene vai subindo de ciclo à medida que um pormenor do décor se vai aproximando. Figuras vão entrando e saindo e este trânsito repete-se por igual nas várias repetições das filmagens, sobrepondo ação. O sentido é, pois, unidirecional, do mais longe para o mais perto, sem mudar de posição nem de lugar. Do geral para o particular, uma indução que se termina num novo lugar
– o mar, ou melhor, uma onda do mar numa fotografia. Velocidade da onda.

O zoom é contínuo e progressivo o que não impede de ser interrompido e pirateado por toda a sorte de sobreposições, colagens, intervenções na película, inversão de cor e de a ação se repetir e se atrasar ou adiantar. O som, dir-se-ia, é o garante de que a ação é unária e progressiva até ao limite do insuportável zumbido, fazendo um zoom contínuo e progressivo do som. Assim, temos uma sonoridade unívoca e atonal com um só emissor, execução de uma peça sonora unidirecional do mais baixo para o mais alto. A progressão sonora acompanha a progressão visual ou, por vezes, antecipa a progressão visual. A exposição visual em campo aberto e o progressivo fechamento permite, desde o início, augurar algo da exploração da imagem, do que possa ser alterado; porém, as várias intervenções no suporte químico da imagem traduzem uma intervenção intencional do artista em desestabilizar a proeza técnica do zoom, afinal falso zoom. Essa intervenção remete, pois, para a falsa objetividade da câmara-olho, da câmara de vigilância, afirmando ainda assim que é no campo da imagem que tudo se passa e que só a tecnologia intervém no processo. Não temos até agora noção de que qualquer sujeito intervenha no processo declarativo, seja ele autor ou espetador. A obra existe, portanto, como tentativa de autonomia dos sujeitos enunciador e hermenêutico, como manifestação duma vontade involuntária. A obra existe, então, como exercício do zoom, uma técnica que é simultaneamente uma estética do processo artístico. Ao ir mais longe do seu lugar, a câmara não se desloca mas afasta-se do ponto inicial. Está, digamos, entre o zero e o infinito, está aqui e alhures, está em todos os pontos do zoom e é sempre uma e a mesma. Não está, portanto, no lugar do olho humano, não repete o que o olho humano pode alcançar, nem orgânica nem inorganicamente. Não é humanista, não replica o mundo do humanismo, não procria a invenção do mundo após a ilusão ótica.

Back and Forth 1969

16 mm film, colour, sound, 52 min.
The camera pans back and forth across an outside wall of a classroom while a man crosses part of the field. The pan resumes inside the class- room in a fixed trajectory, revealing an asymmetrical area including part of a blackboard and a door on a far wall, two pairs of windows on the wall closer to the camera, and desks in front of the blackboard; trees, building and occasionally passing vehicles are partially visible through the doors and windows.2

Back and Forth (1969) constitui uma sugestão de exploração do movimento da câmara semelhante a Wavelength, desta vez não em frente, mas para um lado e para o outro, na horizontal e na vertical panorâmica, num arco inferior a 180º. A câmara panoramica para a esquerda e para a direita e para cima e para baixo a um ritmo marcado por uma sonoridade de motor, por um metrónomo. O processo é, então, o de não descrever o aparato visual que vai mudando; o de não realizar panorâmicas exatamente iguais no ponto de chegada e no ponto de partida; o de fazer um processo semelhante a Wavelength em que, à força de manter a mesma referência visual, nem por isso ela se mantém igual. O jogo seria, pois, o de desafiar a câmara a superar a velocidade do operador até ao limite da invisibilidade: é possível fazer mais do que uma panorâmica em um vinte e quatro avos de segundo? Snow destitui a panorâmica do seu caráter descritivo, tornando-a, portanto, o movimento que separa dois pontos opostos da semicircunferência. A sonoridade trabalha no mesmo sentido que no filme anterior, acelerando o ritmo sonoro que contagia o ritmo da câmara.
A arbitrariedade do número incontável de panorâmicas é o objeto estético do filme. Estas panorâmicas são repetidas sem corte e repetidas com corte. O corte não se faz sempre no início da panorâmica, podendo ser do início a meio ou do meio ao início ou ao fim. São, digamos, semipanorâmicas dentro das panorâmicas, sendo panorâmicas mesmo assim. O filme é alusivo, não um registo direto, por mais concreto, físico e material que a panorâmica pareça ser. A interrogação situa-se no uso inútil de um movimento de câmara tão comprometido com o realismo no cinema narrativo, sendo associado ao referente da realidade e na sua transposição para filme. Esse uso abusivo desgasta o objetivo da panorâmica porque elas se realizam num lugar fechado e limitado. É uma espécie de ventoinha visual, sem préstimo e incansável.

Por outro, esse excesso de descrição do que se encontra entre os pontos extremos da panorâmica continua a não revelar o que não se encontra dentro desse arco. É mesmo isso que a panorâmica quer afirmar: a não existência de qualquer outro fora desse arco, a não existência de espaço e de tempo, pois o movimento é só movimento, mas um movimento parado, fixo e imutável. O segmento final traz várias panorâmicas verticais, mais rápidas ao ponto de ser completamente impossível reconhecer referências visuais. A abstração deste segmento faz, com o segmento anterior, um movimento de baixo para cima e vice-versa que representa uma cruz ou o sinal matemático +. O título alternativo do filme é um símbolo matemático, com tradução literária:   <---> Back and Forth.

La Région Centrale 1971

16mm film, colour, sound, 180 min.
La Région Centrale was made during five days of shooting on a deserted mountain top in North Quebec. During the shooting, the vertical and horizontal alignment as well as the tracking speed were all determined by the camera’s settings. Anchored to a tripod, the camera turned a complete 360 degrees, craned itself skyward, and circled in all directions.3

La Région Centrale (1971) coroa a investigação levada a cabo por Snow em torno das possibilidades e impossibilidades técnicas da câmara de cinema. É tam- bém, do ponto de vista da sonoridade, uma construção sinfónica que joga com a construção de posições de câmara. Rotação vertical no eixo a 360º no sentido inverso aos ponteiros do relógio em picado. Panorâmica vertical a 360º de baixo para cima. Panorâmicas horizontais a 360º da esquerda para a direita sobre a terra e depois sobre o céu. Panorâmicas horizontais a 360º câmara invertida da direita para a esquerda. Panorâmica horizontal de baixo para cima a 360º. Panorâmica vertical a 360º da direita para a esquerda. Rotação vertical a 360º no sentido in- verso aos ponteiros do relógio em contrapicado. Rotação horizontal no eixo a 360º no sentido inverso aos ponteiros do relógio. Panorâmica horizontal de cima para baixo a 360º. Panorâmica oblíqua de cima para baixo da direita para a esquerda. Panorâmica horizontal a 360º da direita para a esquerda. Panorâmica horizontal a 360º da esquerda para a direita com zoom in e com zoom out. Rotação horizontal no eixo a 360º no sentido inverso aos ponteiros do relógio com panorâmica hori- zontal da esquerda para a direita. A linha do horizonte não é horizontal, é vertical. A linha do horizonte, quando é horizontal, tem a terra em cima e o céu em baixo. Rotação horizontal no eixo a 360º no sentido dos ponteiros do relógio.
A complexidade do exercício de Snow vem das posições inabituais da câmara que sacode de vez o antropomorfismo da estética cinematográfica e coloca a câmara a fazer toda a sorte de movimentos nas mais variadas posições e nos mais variados sentidos. À semelhança dos filmes anteriores, La région centrale é orquestrado pela sonoridade electrónica que regista nuances de aceleração e desaceleração que acompanham ou precedem os movimentos da câmara. Essa sonoridade mecânica, como as dos filmes anteriores, acompanha o afastamento do antropomorfismo da câmara através do afastamento da lógica narrativa atribuída ao som em cinema. O exercício, como nos trabalhos anteriores, é estéril: visa esgotar o aparato técnico do cinema e fazer a apostasia da sua futilidade.

Rameau’s Nephew by Diderot (Thanx to Dennis Young) by Wilma Schoen 1972-74
16mm film, colour, sound, 270 min.
The “authentic ‘talking picture’”, as Michael Snow describes Rameau’s Nephew, is an epic treatment of the spoken word and other sounds generated by the human body that are susceptible to recording. The film is a segmented series of encounters with figures in recognizable or at least nameable settings who are conversing, reciting, reading, discoursing, or otherwise generating sound. Some of these emissions are effortful, such as tapping, whistling, or smashing.4

Rameau’s Nephew… (1972-74) constitui-se como um alfabeto, uma enci- clopédia. O que é estar perto, o que é estar longe? Como se concebe distâncias pelo poder da proximidade e da lonjura? Demonstrações práticas: o som está perto ou longe conforme o instrumento de emissão e o instrumento de registo estão perto ou estão longe; a imagem está perto ou está longe conforme o objeto visado e o instrumento de registo estão perto ou estão longe; a escala, em sentido visual e musical, determinam escolhas dentro das escolhas, isolam o que foi isolado previamente – o plano e o volume.
Panorâmicas verticais de cima para baixo e de baixo para cima para li- gar personagens verticais que estão na horizontal da imagem. Panorâmicas horizontais da esquerda para a direita e da direita para a esquerda para ligar personagens verticais invertidas na vertical. Panorâmicas no eixo da vertical a 360º no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio. Panorâmicas no eixo da vertical a 360º no sentido dos ponteiros do relógio.
Alteração cromática em função do volume sonoro das palavras, escala de cor em função da escala de som.
Ação invertida e revertida, de trás para a frente e espelhada em esquerda/ direita.
Vocalização – focalização, emissão de voz – emissão de luz.
Uma palavra – um plano. Uma palavra longa – um plano aberto.
Ação – dicção, dizer – fazer, o dito – o visto, ver – ouvir, verso – inverso, verso – reverso.
Porque para um plano? Para o tempo e para a razão da sua existência. Não há fluxo cortado, nem interrupção, súbita suspensão do ato de encontro entre uma vontade e uma potência. O plano não tem de parar porque ele não tem começo: a sua suspensão determina um período (um excerto) da sua total imanência. Não será afetada a totalidade na parcialidade. Esta é o todo da parte conhecida, fica o outro da outra parte conhecida, chamada desconhecida. A paragem não é a morte da ação em potência, é a sua suspensão e o regresso ao estado limbo. Não se vê diferença entre potência e ato, o ato sendo a realização plenipoten- ciária da potência. O ato, assim, sucumbe ou realiza-se independentemente da potência, sendo esta consentânea daquela. Então parar é a continuação do não parar e faz parte intrínseca do ato em si, sem antes nem depois. Retomar não é continuar nem voltar ao princípio, é ser outra vez o mesmo de antes de parar, interrompido pela suspensão do tempo e pela natureza improvável do corte.

To Lavoisier, who died in the Reign of Terror 1991

6 mm film, colour, sound, 71 min.
To Lavoisier opens, in silence, with a close-up of a wood-burning stove and then a hand feeding the flames. After a time, we hear an unmistakable crackle. Sustained more-or-less throughout the film’s remaining 40-odd minutes, the sound of the fire comes to seem the song of the medium...What’s extraordinary about To Lavoisier is not what the film shows (or how it shows it) but the film stuff itself... The footage looks as if it were developed in a bathtub and baked in the oven. The emulsion is scarred, lightstruck, watermarked, solari- zed, explosively blotched with a deep blue or golden orange overlay.5

To Lavoisier... começa com ruído das chamas: a sonoridade vem logo a seguir, por horror ao silêncio e percorre todo o trabalho: o crepitar da fogueira (da inquisição). O zoom in volta como tema central do processo, como em Wavelength. Impercetível, sempre direito ao centro da imagem, deixando de fora o centro da atenção. Ele sobrepõem-se e é sobreposto por duplas e triplas camadas de cor (da bandeira francesa), formas e figuras abstratas parasitas da imagem, compósitos da imagem. É, à semelhança de Rameau’s Nephew..., enumerativo de várias ações. Elas reportam-se a atividades durante o dia em contexto doméstico de caráter lúdico básico: comer, dormir, tomar banho, jogar. Opõem-se-lhe cozinhar, imprimir, alimentar o fogão de sala, estudar. Os apontamentos da vida privada são a ausência da vida pública, a desconti- nuidade temporal, não progressão da ação. A continuidade sonora mantém-se no constante crepitar da lenha da fogueira. A dissociação do motivo sonoro em confronto com o motivo da imagem lembra que é a senha musical que relembra a revolução francesa. É repetitivo e aleatório, ao mesmo tempo que não mecânico nem narrativo. Os planos horizontais são filmados na vertical, sendo o zoom in sobre o elemento central do eixo da imagem. Cada plano é a própria definição de plano: o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Cada um contém o outro: no grande está o pequeno e o pequeno inclui o grande.

Bibliografia

Gidal, Peter (1978). Structural Film Anthology. Londres: British Film Institute.
Green,  J.  Ronald  (2013.  Animation  Diagnostics:  Power  and  the  Loop.  Disponível  em:
http://sensesofcinema.com/2013/feature-articles/animation-diagnostics-power-and-the-loop/.
Sitney, P. Adams (2002). Visionary Film. The American Avant-garde 1943-2000. Oxford: Oxford University Press.
Youngblood, Gene (1970). Expanded Cinema. Nova Irque: P. Dutton & Co.

Sitografia

Michael Snow Dossier . Disponível em: http://offscreen.com/issues/view/vol6_11, 2002.