MUSEUS, TURISMO E TERRITÓRIO

MUSEUS, TURISMO E TERRITÓRIO

Paulo Carvalho
Universidade de Coimbra

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ECOMUSEU TRADIÇÕES DO XISTO (SERRA DA LOUSÃ): DA TRADIÇÃO À DINAMIZAÇÃO E VALORIZAÇÃO TERRITORIAL

     Luiz Alves
     Paulo Carvalho

Resumo

No contexto das dinâmicas de desenvolvimento territorial, sobretudo nos lugares de matriz rural, são vários os projetos e ações que procuram induzir efeitos positivos através das tradições que a eles lhe são reconhecidas ou que estes reclamam como suas. Neste quadro, um certo sentimento nostálgico de ligação histórica com as gerações passadas e com as suas práticas e usos é evidente em alguns dos programas disponíveis no mercado da animação territorial procurando, em simultâneo, a preservação das suas tradições.

            Assim, com este artigo, procuramos aferir a relação entre as atividades/programas desenvolvidos no seio do Ecomuseu Tradições do Xisto (Serra da Lousã) com o conceito de tradição, sobretudo a partir da análise dos meios e materiais de divulgação dos mesmos.

Palavras-chave: Tradição. Dinamização Territorial. Ecomuseu Tradições do Xisto. Aldeias do Xisto de Góis. Serra da Lousã.

1. Em torno do conceito de tradição

            O termo tradição tem a sua origem no termo “latim traditio que significa transmissão, sendo, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa a transmissão de valores e de factos históricos, artísticos e sociais, de geração em geração, através da palavra ou do exemplo” (Cabeleira, 2010:27).
            Em sentido geral, a noção de tradição pode ser entendida como complexa e ambivalente, “podendo consequentemente ser aplicada a várias situações, geralmente associadas a práticas e/ou métodos passados e ancestrais de comum utilização. Embora o seu significado, do ponto de vista cultural, seja sensivelmente do senso comum e a sua definição esteja sistematizada em diversas fontes, englobar a totalidade dos aspetos desta conceção, remete para mais do que apenas a condensação das suas linhas gerais” (Cordeiro, 2012:14).
            Nas palavras do antropólogo Maddox (1993:9/10, citado por Cabeleira, 2010:27), “a tradição envolve uma invocação do passado para os objetivos do presente, e está constantemente a ser inventada e reinventada por forma a assegurar arranjos sociais presentes”. 
            Uma outra visão, porventura uma das mais interessantes, é apresentada por Cormier (2010:58), considerando que “a tradição é, precisamente, aquilo que não envelhece que é eternamente novo, pois tem a originalidade da fonte, o frescor de um eterno começo”.
            Segundo Silva e Silva (2006:1), a “palavra tradição teve originalmente um significado religioso: doutrina ou prática transmitida de século para século, pelo exemplo ou pela palavra. Mas o sentido expandiu-se, significando elementos culturais presentes nos costumes, nas artes, nos fazeres que são herança do passado”. Assim, numa visão mais simples, a tradição assume-se como “um produto do passado que continua a ser aceite e atuante no presente. É um conjunto de práticas e valores enraizados nos costumes de uma sociedade” (Silva e Silva, 2006:1).
            Apesar dos vários sinónimos que lhe são atribuídos (transmissão, consignação, ensinamento e narração), existe sempre um elemento imutável: “a passagem de um conjunto de dados culturais de um antecedente a um consequente (sejam estes famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades)” (Cordeiro, 2012:14, citando Romano, 1997: 166).
            Na era da “desterritorialização de identidades e lugares devida ao fenómeno da globalização, a tradição deixou de ser considerada como algo que deve ser associado a um lugar ou a uma determinada comunidade. Assumindo o fim do seu significado absoluto, a tradição deverá ser considerada como um repositório de ideias com valor, que têm que ser conhecidas e preservadas” (Mateus, 2013:29, citando Alsayaad, 2004:12).
            Pese embora as considerações atuais em torno do conceito teórico, parece ser “consensual a ideia de que o conceito de tradição não diz respeito a um dado cultural imutável, mas a uma construção cultural dinâmica, portanto inventada num certo período e sob certas circunstâncias” (Raposo, 2010:21). 
            Quanto ao modo de apresentação das dimensões culturais designadas como tradições (em especial as designadas como populares), como refere Raposo (2010), estas têm sofrido adequações regulares aos contextos sociais, históricos e culturais em que se desenvolvem. Assim, por um lado, “as tradições expressam um nostálgico sentimento de continuidade histórica com as gerações passadas, embora frequentemente este não seja vivido com uma complacência melancólica; por conseguinte, a preservação «pura» ou «autêntica» das tradições nem sempre é o melhor recurso para a sua continuidade. Acresce, paralelamente, que representam o «passado» como uma espécie de mundo-espelho, opondo-se ao ritmo caótico do «presente», mas simultaneamente permitindo a cristalização e a revivificação de um impreciso mundo perdido; deste modo, comemoram a memória cultural local e celebram a diferença, ao mesmo tempo que reinventam as suas heranças, num processo que não pode ser classificado nem como genuíno nem como espúrio. Por outro lado, as tradições mobilizam sentimentos de pertença e permitem repensar as fracturas internas, explicitando formas de publicitar uma dada identidade pública; geram também novas geometrias entre os eixos e os fluxos, entre centros e periferias, envolvendo-se num diálogo com outros níveis de identidade – nacional, regional e local – e com os seus diversos poderes” (Raposo, 2010:33).
            No âmbito do conceito de tradição, podemos considerar a existência de dois domínios fundamentais: a tradição escrita e a tradição oral. A tradição escrita pode ser considerada como a transmissão de factos através de documentos escritos. A tradição oral corresponderá à transmissão de saberes por via da oralidade. “Estes saberes tanto podem ser os usos e costumes das comunidades, como podem ser os contos populares, as lendas, os mitos e muitos outros textos que o povo guarda na memória (provérbios, orações, lengalengas, adivinhas, cancioneiros, romanceiros, etc.)”, conforme advoga  Parafita (2005:30, citado por Cabeleira, 2010:30).
            Mas, efetivamente, quanto tempo é necessário para que algo seja considerado tradição? Esta é uma das questões mais frequentes quando se aborda a origem temporal de uma determinada “tradição”. Seguindo a linha de pensamento de Shils (1981:15, citado por Cabeleira, 2010:27) este considera que “qualquer «coisa» tem que durar pelo menos três gerações – sejam elas longas ou curtas – para ser uma tradição”.

2. Da tradição ao desenvolvimento local

            Nas últimas duas décadas o desenvolvimento rural ganhou uma ampla visibilidade. Como assinala Carvalho (2009:152), “assistimos à crescente revalorização da importância do mundo rural (onde se redescobrem novas centralidades com base na qualidade) e dos valores da ruralidade (também estes em mudança) para o equilíbrio e coesão do próprio sistema”.
Neste sentido, as tradições populares apoiadas por uma promoção qualificada guiada por padrões de qualidade, autenticidade e inovação, podem desempenhar um papel importante no desenvolvimento dos territórios, porventura com maior relevo nos de matriz rural.
Com efeito, aos territórios rurais têm sido “atribuídas novas funções regeneradoras e, para o seu desenvolvimento sustentável, promoveu-se a diversificação das atividades aí realizadas, em especial as não agrícolas como, por exemplo, o turismo e o artesanato, com os objetivos de assegurar a manutenção das comunidades rurais e preservar os ecossistemas e as paisagens construídas pela agricultura. A expressão mais utilizada desde então é «multifuncionalidade do espaço rural», que, em princípio, seria geradora de novos recursos e de melhoramentos das condições de vida das populações” (Almeida, 2007:310). Assim, o triângulo “virtuoso” – turismo, ambiente e agricultura – integra as atividades que melhor podem contribuir para um desenvolvimento rural sustentável das áreas mais desfavorecidas (Covas, 2008).
É, neste quadro, que importa referir as atividades de animação turística e socioculturais alicerçadas em tradições e saberes locais, com vista a promover o território e alcançar o mercado do turismo e lazer, a montante, e a valorizar os recursos endógenos de qualidade nos domínios do setor primário e derivados transformados, a jusante. 
Em Portugal, de acordo com quadro normativo nacional, as atividades de animação turística são enquadradas pelo Decreto-Lei nº 95/2013, de 19 de julho, no qual a animação turística é entendida como “(…) as atividades lúdicas de natureza recreativa, desportiva ou cultural, que se configurem como atividades de turismo de ar livre ou de turismo cultural e que tenham interesse turístico para a região em que se desenvolvam, tais como (…)” caminhadas e outras atividades pedestres, atividades de orientação, passeios e atividades em bicicleta, montanhismo, arborismo, espeleologia, surf, canoagem, atividades e experiências de descoberta do património etnográfico (participação em atividades agrícolas, pastoris, artesanais, enogastronómicas e similares – por exemplo: vindima, pisar uva, apanha da azeitona, descortiçar do sobreiro, plantação de árvores, ateliers de olaria, pintura, cestaria, confeção de pratos tradicionais, feitura de um vinho), entre outras.
Desta forma, a própria animação poderá ser importante na dinamização da tradição, no seu desenvolvimento, abrindo portas à inovação. Como salienta Quintana (1993:35), a animação sociocultural tem vários níveis. O primeiro é: “(…) a difusão cultural e a recuperação das tradições. A animação tenta mobilizar pessoas e grupos para que conheçam os feitos culturais e o divulguem como património comum”. A animação poderá promover o “(…) seu estudo e divulgação, recriá-las no presente para projectá-las no futuro. As tradições só sobreviverão como referências de um povo, se forem permanentemente recriadas em bases de respeito pelo passado, mas atendendo às condições do presente. (...) Como não entendemos o turismo de uma forma isolada do meio e meramente como factor económico, consequentemente invasor, as actividades de animação cultural tomam especial relevo (…). Deverão ser desenvolvidas de forma a serem respeitadas as tradições locais, o seu quotidiano, proporcionando a integração entre o visitante e o visitado.”

3. Ecomuseu Tradições do Xisto: conservação e valorização das tradições das Aldeias do Xisto de Góis

“Existe um mundo onde tudo se aproveita: as padieiras das portas e das janelas são de castanho, as lajes de xisto estão nos beirais, por cima das telhas e nas soleiras. Há telhas de canudo e as ferragens das portas são antigas! Dos soutos vêm as castanhas e a sopa de castanha é famosa até hoje. A cabra come-se quando velha e, macerada pelo vinho tinto, torna-se macia e dá sabor à chanfana. Das pequenas hortas vêm grelos frescos que, misturados com a broa e o azeite, chegam a migas deliciosas. Das urzes e com muitas abelhas ainda hoje se faz um excelente mel. O pão faz-se em casa e o seu cheiro perfuma as estreitas ruas. Os cabritos andam serra acima, serra abaixo, e isso faz deles pratos deliciosos quando o tempo próprio chega!
E depois neste mundo, com umas quantas casinhas encavalitadas nas encostas, parecem apenas existir “quartos com vista”! Mas não! Não é verdade! Existem pessoas, em regra com grandes rostos de avó, que partilham toda a sabedoria de um mundo em que tudo é escasso! Esse mundo tem nomes: Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena (concelho de Góis) […]” (Turismo Centro de Portugal, 2007:47/48) e está representado no Ecomuseu Tradições do Xisto.

3.1. O Ecomuseu Tradições do Xisto
O Ecomuseu Tradições do Xisto é uma iniciativa da Lousitânea (Liga de Amigos da Serra da Lousã) que pretende assumir-se como um projeto dinâmico, integrador e promotor da coesão territorial com vista a preservar e valorizar o(s) património(s) cultural (material e  imaterial) e natural associado às aldeias do Xisto de Góis, com enfoque nas tradições/cultura serrana e na conservação da natureza, através de seis núcleos, para além de outros que se encontram em fase de preparação (figura 1):
– Núcleo Asinino das Aldeias do Xisto; alberga três burros de raça mirandesa, com o objetivo de “conservação e manutenção desta espécie em vias de extinção, recriação dos espaços de currais tradicionais e de fomentar passeios pedestres com burros” (Alves e Carvalho, 2014:15).
– Núcleo do Forno e Alambique da Família Claro; imóvel particular, com uso protocolado entre os proprietários, a Lousitânea e a Câmara Municipal de Góis, sendo “um espaço pleno de tradição, onde a confeção de aguardente de mel e de broa de milho são a sua imagem de marca” (Alves e Carvalho, 2014:15).
– Núcleo da Coirela das Agostinhas; corresponde a um espaço cedido pelos habitantes locais e que funciona como horta pedagógica. Neste espaço, para além da componente pedagógica, “destaque ainda para a produção de alimentos hortícolas, entre outros, que servem de base para a confeção das refeições temáticas servidas nesta aldeia” (Alves e Carvalho, 2014:15).
– Núcleo da Maternidade das Árvores; configura “um espaço de educação ambiental e, em simultâneo, de viveiro de espécies arbóreas e arbustivas autóctones da Serra da Lousã. Dispõe de milhares de árvores e arbustos cujo destino é, essencialmente, para plantações na área da Rede Natura 2000 da Serra da Lousã” (Alves e Carvalho, 2014:15).
– Núcleo de Interpretação Ambiental; serve de “espaço interpretativo da Serra da Lousã, estando preenchido com painéis informativos e artefactos/peças, alusivos aos vários temas representativos dos principais elementos da Serra da Lousã, a nível ambiental: fauna; flora; geologia; paleontologia; clima; Rede Natura 2000; espécies invasoras” (Alves e Carvalho, 2014:16/17).
– Núcleo Sede do Ecomuseu Tradições do Xisto; instalado em edifício (recuperado para o efeito) localizado na Aldeia de Aigra Nova, é a “porta de entrada” do espaço museológico vivo das Aldeias do Xisto de Góis (Alves e Carvalho, 2014).
O Núcleo Sede “apresenta-se como a «casa mãe» do Ecomuseu. Neste espaço, as «populações locais» levam-no a uma visita pelo passado, pelas histórias, tradições, saberes e sabores da região, numa relação íntima com cada objeto” (Alves e Carvalho, 2014:14).
A estrutura deste Núcleo é exposta numa casa com traça tradicional, e que alberga quatro áreas distintas, a saber: Introdução aos Serranos (os povos destas aldeias); Programa e Rede das Aldeias do Xisto; Aldeias do Xisto do concelho de Góis; e seis Temáticas/ciclos: mel; milho; castanha; hortas tradicionais; festas e tradições; e caprinicultura. Incluí ainda expositores gráficos, com imagem e vídeo das tradições vivas desta região, e terá um espaço de exposições temporárias.
A sua estrutura territorial, no presente, materializa uma abordagem vinculada às quatro Aldeias do Xisto do concelho de Góis: Aigra Nova, Aigra Velha, Comareira e Pena, prevendo-se, a médio/longo prazo, expandir o projeto do Ecomuseu Tradições do Xisto a outros locais da Serra da Lousã (Alves e Carvalho, 2014).
No que diz respeito ao número de visitantes nas Aldeias do Xisto do concelho de Góis1 , os dados apresentados por Alves e Carvalho (2014)2 indicam uma média de cerca de 4200 visitantes por ano, entre 2011 e 2014, o que consubstancia “valores muito interessantes para estes micro-territórios, ainda para mais se tivermos em linha de conta que o número total de habitantes destas quatro aldeias não chega (na atualidade) aos 20 residentes” (Alves e Carvalho, 2012:17).
Ainda neste âmbito, a análise atinente ao número total de visitas ao Ecomuseu Tradições do Xisto, desde 2011 até 2014, permite destacar algumas tendências de crescimento do efetivo total de visitas realizadas. Assim, no cômputo geral de todos os núcleos do Ecomuseu Tradições Xisto podemos verificar que, em quatro anos, já contou com um total de 6980 visitantes o que representa, em termos médios, 1745 entradas anuais nas estruturas deste Ecomuseu.

3.2. Plano de Animação das Aldeias do Xisto de Góis valorização das tradições do xisto
            Para além do forte impulso dado pelo Ecomuseu Tradições do Xisto na salvaguarda, valorização e dinamização das tradições destes lugares serranos, quer nos conteúdos apresentados nos espaços museológicos, quer no contacto que promove entre visitantes e habitantes locais, a Lousitânea implementa um Plano de Animação das Aldeias do Xisto de Góis, em que as atividades desenvolvidas apresentam um foco muito relevante no domínio da valorização das tradições inerentes ao património cultural das referidas aldeias.
De igual modo, as iniciativas têm como base a recolha oral (e o registo) das tradições relatadas pelas populações locais, procurando sempre que os habitantes intervenham, de forma ativa, na organização e animação dos eventos, de forma a transmitir e valorizar o (seu) saber fazer, quer em recriações etnográficas, quer em workshops ou em programas temáticos associados a estas tradições que fazem parte do património cultural e das vivências das aldeias serranas. A própria entidade dinamizadora, a Lousitânea, na promoção e divulgação destas atividades aplica, invariavelmente, o termo “tradição”, com o objetivo de evocar e valorizar o passado no que concerne às práticas, usos e saberes da comunidade local.
            Com efeito, no domínio da promoção turística e na perspetiva de dinamização destes lugares, apesar das suas fragilidades (despovoamento, envelhecimento populacional, baixas densidades, entre outras), o apelo constante à memória coletiva passada, cristalizada num determinado momento histórico, onde subjetivamente se crê que é o melhor período de representação da memória cultural local é um argumento sentimental muito forte na captação de visitantes e assistentes para as atividades que evocam as tradições dos lugares, e que promove, quase sempre, uma retórica comparativa entre o(s) tempo(s) passado(s) e o presente. É, neste contexto que frequentemente são aplicadas expressões como: “tradição”, “à moda antiga”, “como no tempo dos nossos avós”, “como antigamente”, “a autêntica tradição”, entre outras, para promover atividades que evocam a ligação ao tempo ido, à dita tradição.
            Desta forma, no âmbito da implementação do Plano de Animação das Aldeias do Xisto de Góis, a Lousitânea promove, de forma cíclica, atividades que remetem para a tradição, para o saber fazer ancestral, para os modos de vida passados, para as antigas vivências destes lugares serranos, como sejam: “Milho Rei – Descamisada e Abraço”; “Programa do Mel – O Doce da Urze”; “Magusto e Castanha Pilada”; “Programa do Alambique – Alambicada na Aigra Velha”; “Entrudo das Aldeias do Xisto de Góis”. 
            Uma análise aprofundada aos textos de apresentação de cada um dos programas/atividades permite retirar algumas conclusões interessantes quanto ao uso da terminologia “tradição”, “como antigamente” e “à maneira antiga”, que pretende demonstrar ao potencial turista/visitante que as atividades que lhe são propostas se baseiam com rigor na reprodução genuína das tradições propostas que, na verdade, são em muitos casos recriações e workshops temáticos, inseridos num contexto de saber-fazer. Assim, podemos dividir a análise, individualmente, destacando-se os seguintes elementos por atividade/evento.
3.2.1 Milho – Descamisada e Abraço
A recriação da descamisada do milho (figura 2a) procura, na atualidade, manter viva a prática ancestral (sem recorrer a utensílios/processos mecanizados), de acordo com os costumes destes lugares serranos.
Por norma, as descamisadas, além de se efetivarem como uma lavoura de extrema importância no seio da comunidade rural, resultado de vários meses de trabalho intenso e contínuo, consubstanciava-se como um dia de festa. Nesta jorna juntavam-se, por vezes, as populações de várias aldeias vizinhas e, em grupo, era feito todo o processo de recolha, descamisada e debulha, até estender o milho na eira para secar.             Além da labuta implícita a esta tarefa, seria comum, no seio do grupo, alguma animação incutida pelos cantares, pelas histórias contadas e pelo “reviver dos tempos idos”.   
            Neste contexto, o programa apresentado pela Lousitânea inclui a recolha do milho nos campos, o seu transporte para a eira, a descamisada ou desfolhada “como de outros tempos” e, como faz notar a informação patente no programa “a tradição do abraço que só é realizada se entre as espigas amarelas aparecer o milho rei – a espiga vermelha”. O processo termina com a debulha do milho, após a qual este é erguido e estendido na eira para secar. Esta atividade é acompanhada, de acordo com o texto de divulgação, “com animação etnográfica e desgarrada à moda antiga com um grupo etnográfico com figurantes e tocadores”, por norma a cargo do Grupo Etnográfico da Região da Lousã, apresentando-se “com o belo do bailarico à moda antiga”.
Assim, são evocados, neste programa, “chamamentos” claros e apegos aos termos já enunciados em pontos anteriores que procuram, de certa forma, atestar ou certificar esta atividade de recriação como algo tradicional, realizado de acordo com as “normas” inerentes a uma determinada dimensão temporal já vivida, da qual apenas restam, nestes lugares, relatos emanados pelos seus habitantes (pese embora alguns ainda cultivem milho mas sem esta ligação comunitária na gestão do trabalho). Essa vertente está, indubitavelmente, presente em algumas expressões utilizadas, como sejam: “tradição” ou “à moda antiga”, numa tentativa de alocar ao evento uma conotação direta com as práticas de outrora, no seu estado mais puro.  
3.2.2 Mel – O Doce da Urze
O programa do mel, intitulado como “O Doce da Urze” (figura 2b), pode ser entendido em duas vertentes fundamentais: por um lado, é alicerçado num contexto de recriação e, por outro, é inserido num contexto de workshop com transmissão de saber fazer dos habitantes locais. A atividade inclui, ciclicamente, a visita a um apiário na Aldeia do Xisto de Aigra Nova, onde é possível realizar todo o processo de recolha, transporte, extração e prensagem do mel, com o acompanhamento do apicultor residente na aldeia, que exemplifica todo o processo, num quadro de transmissão de conhecimentos usando, como refere o programa, “as práticas tradicionais nos domínios da apicultura, nos antigos cortiços”.
Neste programa é, igualmente, possível participar num workshop onde os intervenientes podem aprender a fazer licor de mel, de “acordo com as técnicas tradicionais e ancestrais e guiados por um habitante local”, num alambique “tradicional, usado por várias gerações, consubstanciando-se com um recanto rico em histórias e onde as tradições eram transmitidas aos mais novos”.
Tal como se verificou no programa anterior, também neste caso estão latentes as expressões que nos remetem para as “tradições”, para o “tradicional”, com o propósito de garantir a singularidade e genuinidade pelo facto de o guia ser um “habitante local” que ainda produz mel nos “cortiços antigos”.
Na informação/comunicação do programa é percetível o uso propositado da terminologia que remete para a “tradição” e o “antigo”, no sentido mais puro do termo, o que revela a preocupação de garantir ao possível cliente que o serviço que estão a adquirir é, indubitavelmente, genuíno, tradicional e acompanhado por pessoas que habitam nestes lugares e, consequentemente, herdeiras de um legado cultural relevante. Assim, todos estes apelos pretendem, de certa forma, rotular e atestar a originalidade e autenticidade do programa.
3.2.3 Magusto Tradicional e Castanha Pilada
O programa do Magusto Tradicional e Castanha Pilada (figura 3a) pretende valorizar um dos produtos endógenos de excelência destes lugares serranos, a castanha, que representava um elemento muito importante na alimentação quotidiana das populações e um dos bens transacionáveis muito relevante na economia rural, assente na trilogia “agro-silvo-pastoril”.
A atividade começa com a visita aos “caniços criados para fumar e desidratar a castanha de forma tradicional”, em Aigra Nova, e com a “visita aos soutos centenários e atelier da castanha pilada, com acompanhamento de um “habitante local, utilizando as práticas e saberes tradicionais, com recurso a ferramentas e técnicas ancestrais”, no período da manhã.
Por sua vez, à tarde, “segue-se o magusto e a prova de castanhas, e jeropiga caseira, com animação etnográfica, revivendo os magustos tradicionais que se realizam nas aldeias, no Outono”.
Este programa, tal como os demais já apresentados, não deixa de evocar os mesmos argumentos, assentes nas expressões “tradicional”, “saberes tradicionais”, e salientando o acompanhamento de um habitante local, com o intuito de dar garantias de que a “tradição será respeitada e será cumprida”.
Por outro lado, os participantes nos programas, têm sempre a oportunidade de fazer parte da «tradição», quer no processo de recriação, quer na aprendizagem das técnicas e saberes transmitidos pelos «habitantes locais», quer na possibilidade de poderem realizar e participar em alguns dos processos executando tarefas e, quando o programa o permite, provando os resultados provenientes do programa realizado.
3.2.4 Programa do Alambique Alambicada na Aigra Velha
A alambicada (figura 3b) está inserida num programa que decorre no Núcleo do Forno e Alambique da Família Claro, em Aigra Velha, e que permite aos participantes acompanhar o fabrico de aguardente de mel e bagaceira, dois produtos característicos destes lugares serranos, “aprendendo com os habitantes locais o processo de fabrico destas”. Faz ainda parte do programa, cozer a broa no forno junto ao alambique, e após tudo preparado provar a broa quente com a aguardente, consubstanciando-se estes como “produtos típicos locais”, sempre acompanhado de animação etnográfica.
Nesta atividade, na sequência das explicações teóricas correspondentes ao processo de funcionamento do alambique e do forno, são enunciadas e explicadas as várias técnicas necessárias para que produção seja de boa qualidade, respeitando “o saber tradicional, com acompanhamento de um habitante local”.
Para além da participação na execução de várias tarefas necessárias para a produção dos produtos inseridos neste programa, uma parte fundamental do mesmo é a possibilidade que os participantes têm de provar o resultado da atividade, sendo este um elemento muito importante na satisfação geral do cliente, na senda das experiências de grande valor simbólico, bastante apreciadas pelos entusiastas do património cultural.
3.2.5 Entrudo das Aldeias do Xisto de Góis
            O Entrudo das Aldeias do Xisto de Góis é, porventura, no seio das atividades de recriação promovidas pela Lousitânea, a que a entidade considera como a mais “tradicional” e emblemática, pela sua simbologia, pelas práticas e pela capacidade de envolvimento de vários agentes, internos e externos, às aldeias.
Como refere o programa desta atividade, “nestas aldeias o Entrudo vivia-se de forma simples. Procurava-se roupa e objectos velhos, algo que ocultasse o rosto e de seguida brincava-se… Foi uma fotografia antiga que encontrámos que nos inspirou! No Entrudo eram realizadas “corridas” às aldeias vizinhas, onde tudo era permitido: declamar quadras jocosas sobre os habitantes dessas aldeias, atormentar as velhas e seduzir as novas! Propomos que venha brincar connosco e motivar estas gentes para o convívio, enaltecendo as suas vivências".
Assim, “para se manter a tradição a Lousitânea tem procurado manter rigor no grupo de pessoas que fazem parte desta corrida com o intuito de manter a tradição e para que esta não caía em algo que nada tenha a ver como as nossas tradições, com a nossa raiz cultural”.
            Nesta atividade, a alusão a um certo «fundamentalismo» no apego à expressão tradição torna-se evidente, principalmente na sua defesa, na sua valorização e promoção, com o objetivo de contrariar a introdução de elementos dissonantes daqueles que fazem parte do regulamento criado para os participantes nesta folia, que celebra o Entrudo, vulgarmente conhecido como Carnaval.
            A título de exemplo, a divulgação da IXª Corrida do Entrudo das Aldeias do Xisto de Góis (Figura 4a), destacava a importância de os participantes poderem desfrutar “da verdadeira tradição vivenciada por estas gentes nestas aldeias da Serra da Lousã”, vincando de sobremaneira que este evento consubstancia-se como a “verdadeira tradição”, o que constitui um bom exemplo do mencionado «fundamentalismo» e da «rotulagem» no sentido de demonstrar que este é um evento genuíno, e assim cativar turistas/visitantes.
3.2.6 Outras atividades/eventos
            Ainda numa outra ótica, podemos destacar, de igual modo, dois programas que, não sendo cíclicos, estão disponíveis para realização mediante contratualização prévia: o Programa da Broa e do Queijo, e o Programa do Manjar na Aldeia – Refeição Temática (figura 4b), e que, de modo análogo aos anteriores, encontram-se repletos de alusões a terminologia como “tradicional” e “saberes ancestrais”, com o objetivo de evidenciar aos participantes, ou possíveis clientes, uma mensagem que procura vincar que as práticas destes programas se encontram, de facto, alicerçadas em determinadas “tradições” com raízes nestas aldeias da Serra da Lousã.      
            Posto isto, a análise aos programas anteriormente apresentados deixa em aberto, de certa forma, algumas dúvidas na aplicação da terminologia utilizada na evocação das tão mencionadas “tradições” parecendo, em alguns momentos, que o seu uso procura evidenciar junto do público-alvo para os quais estes são dirigidos que as atividades/programas ocorrem, genuinamente, de acordo com as tradições dos lugares onde decorrem, num mensagem por vezes exaustiva e que parece forçar a “rotulagem” dos eventos ao apego do termo no seu expoente máximo.
            Por outro lado, os vários programas (e respetivos textos de divulgação) tornam-se repetitivos na alusão, invariável, ao “chamamento” da tradição, da sua evocação, procurando demonstrar que o visitante/turista terá, certamente, contacto com as “verdadeiras” e “genuínas” práticas destes lugares da Serra da Lousã. Para consolidar o emprego do termo “tradição” são associados a este outros que procuram dar robustez à mensagem que se pretende transmitir, refletindo-se numa redundância terminológica com o mesmo propósito: vincar e atestar o contacto com as tradições locais, através de várias expressões, já enunciadas: “à moda antiga”, “como antigamente”, “a verdadeira tradição”, “com habitante local”, entre outras; a par de uma miscelânea entre outros conceitos que, no fundo, traduzem estes programas/atividades em recriações e/ou workshops temáticos, consoante os casos apresentados.    

4. Conclusão
Apesar de serem várias as observações empíricas em torno do conceito de tradição, quanto à forma, quanto à dimensão temporal, quer mesmo em relação à ligação “real-inventivo”, entre outros, parece ser consensual a ideia de que o conceito de tradição não diz respeito a um espectro cultural fixo, mas sim a uma construção cultural dinâmica, evolutiva e, assim, inventada num certo período e sob certas circunstâncias (Raposo, 2010). 
Ainda assim, muitos têm sido os casos de alocação do desenvolvimento dos territórios no quadro da promoção das tradições dos lugares, procurando atrair visitantes/turistas por conta da vivência ou contacto com essa respetiva tradição (gastronomia, festividades, entre outras).
Com efeito, em certos casos, as tradições populares apoiadas por uma promoção qualificada guiada por padrões de qualidade, com critério e inovação, podem desempenhar um papel relevante no desenvolvimento dos territórios, porventura com maior relevo nos de matriz rural.
            É, neste sentido, que a Lousitânea (Liga de Amigos da Serra da Lousã) tem procurado fomentar os programas/atividades no âmbito do Ecomuseu Tradições do Xisto, através dos quais pretende valorizar o saber fazer em estreita colaboração com os habitantes locais, quer em recriações etnográficas, quer em workshops ou em programas temáticos associados a estas tradições.
            A análise aos textos de apresentação de cada um dos programas/atividades desenvolvidos por esta entidade permitiu retirar algumas conclusões. Constata-se a utilização de vários termos em ligação estreita e apelo ao tradicional, sendo os mais usuais: “tradição”, “como antigamente”, “à maneira antiga”, com o propósito de demonstrar ao potencial visitante/turista que as atividades que lhe são propostas se baseiam com rigor na reprodução genuína das tradições propostas que, na verdade, são em muitos casos recriações e workshops temáticos, inseridos num contexto de saber-fazer.
            Com o intuito de aferir a relação prática entre as atividades/programas desenvolvidos, tornar-se-á pertinente, numa fase posterior a esta primeira abordagem empírica e de análise de conteúdo dos programas disponíveis para consulta, estabelecer a relação entre essas “evocações” da tradição com o acervo documental do Ecomuseu Tradições do Xisto e, imperativamente, com a realização de entrevistas aos residentes das aldeias, para contrapor as suas memórias com as práticas recriadas no seio dos programas disponibilizados pela Lousitânea.
            Ainda assim, acreditamos que com a dinamização do património cultural dos lugares, no qual cabem as tradições, os territórios poderão capitalizar mais-valias importantes nos processos de desenvolvimento devendo, para isso, procurar a diferenciação e a inovação na forma como expressam e promovem as tradições, no seio de um mercado cada vez mais exigente e diverso no que diz respeito à valorização das singularidades culturais dos territórios.

Referências bibliográficas

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1 A este propósito importa, em primeiro lugar, explicitar que o registo é efetuado na Loja das Aldeias do Xisto de Aigra Nova pelo que, nem todas as visitas às outras aldeias possam estar aqui plasmadas. Porém, como praticamente a totalidade das pessoas que visitam o núcleo de Aldeias do Xisto do concelho de Góis percorre sempre as 4 aldeias (salvo raríssimas exceções), pelo que, os dados aqui apresentados serão muito próximos do verdadeiro número total de visitantes.

2 Importa referir que, neste artigo, encontram-se plasmados os dados atualizados dos visitantes referentes ao ano de 2014.