MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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2.6 - Rap: uma postura de resistência?

Partindo do conceito de resistência descrito por Bosi em Literatura e Resistência (2002), no qual o autor aponta que as narrativas literárias de alguns escritores se baseiam numa espécie de ideologia anti-burguesa, ou seja, alguns textos carregam consigo uma mentalidade de negação aos desejos dominantes, conforme afirma Bosi,

As opções de cada escritor, por diferenciadas que fossem, se destacavam todas de um mesmo fundo axiológico, que se pode qualificar de mentalidade anti-burguesa gerada dialeticamente como um não à ideologia dominante (BOSI, 2002, p. 129).     

Desse modo, o rap parece se encaixar nesse conceito de Bosi, pois é um gênero legitimado, como se viu anteriormente, justamente na recusa, na resistência, na subversão e no revide contra a ideologia dominante que, não rara, é excludente.
Faz-se necessário o questionamento: mas quem são os disseminadores de ideologia dominante?  Para lançarmos luz sobre essas questões, é preciso traçar um panorama da história da comunidade negra desde sua chegada ao Brasil até os dias de hoje.
A resistência dos povos indígenas ao processo de escravidão empregado pelos portugueses teve duas consequências evidentes: a sua massiva exterminação e a busca de africanos que aqui foram deportados para cumprir o que os índios não fizeram. É a partir disso que se abriu o caminho ao tráfico negreiro que trouxe ao Brasil milhões de africanos que foram escravizados para fornecer força de trabalho para o desenvolvimento da colônia portuguesa em nosso país.
A escravidão foi o meio que os portugueses encontraram para tirar maior lucro da colônia, e foi esse regime escravista que fez do Brasil uma sociedade (mesmo que negada por muitos) dividida e organizada em duas partes desiguais: uma formada por homens livres, que “por coincidência histórica” é branca, e outra formada por homens e mulheres escravizados que, também “por coincidência histórica” é negra e que aqui foram destituídos de sua humanidade através de uma violência gratuita que fez deles apenas força animal de trabalho, coisas, mercadorias que podiam ser compradas e vendidas (Cf. MUNANGA, 2006).     
O caráter de resistência vinculado ao rap se manifesta na esfera da linguagem e da cultural.  Para melhor compreendermos o rap como uma manifestação de resistência cultural, utilizamos o conceito de Cultura Popular proposto por Marilena Chauí em Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil (1986). Afirma ela:
 
embora de difícil definição, a expressão Cultura Popular tem a vantagem de assimilar aquilo que a ideologia dominante tem por finalidade ocultar, isto é, a existência de divisões sociais, pois referir-se a uma prática cultural como Popular significa admitir a existência de algo não-popular que permite distinguir formas de manifestação cultural numa mesma sociedade.(CHAUÍ, 1986 p. 28,)

Para alcançar esta conceituação, Chauí baseou-se nos conceitos de ideologia de Marx e de hegemonia de Gramsci, além da utilização do conceito de alienação: ao abordar o primeiro, a autora explicita a visão de que ideologia é um conjunto de representações, valores e ilusões criado pela classe dominante, mas com tendências universalizantes que legitimam e naturalizam a exploração e a dominação; já o conceito de hegemonia        “ultrapassa o conceito de ideologia porque envolve todo o processo social vivo” (CHAUÍ, 1986, p.21). Sendo assim, o conceito de hegemonia dessa autora parece colocar-nos a cultura como processo social global que forma a visão de mundo de uma determinada sociedade.
Pode-se dizer que, para Gramsci, a hegemonia é a cultura numa sociedade de classes. Hegemonia não é um sistema – um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão fixados e interiorizados, mas por ser mais que ideologia, tem capacidade para controlar e produzir mudanças sociais. (CHAUÍ, 1986, p. 21) Assim, a hegemonia não produz somente alienação e passividade – ela deve ser a todo o momento recriada e reconfigurada ao mesmo tempo em que é resistida e desafiada. Aqui nos cabe apresentar o conceito de contra-hegemonia, que é a oposição e resistência à hegemonia dominante, ou seja, dentro dessa última surgem brechas por onde emerge a cultura popular. Muitas vezes a cultura popular é ignorada, mas em alguns casos, ela é assimilada e transformada até tornar-se de acordo com a hegemonia dominante, perdendo assim seu potencial de resistência. Para nós, o conceito de contra-hegemonia pode ser aplicado ao rap, já que este ao mesmo tempo em que desafia a hegemonia em muitos aspectos, acaba sendo absorvido por ela em outros. Desse modo, devemos:

 
[...] aproximarmo-nos da Cultura Popular como expressão dos dominados, buscando as formas pelas quais a cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto quanto as formas pelas quais é recusada, negada e afastada, implícita ou explicitamente, pelos dominados. Procuraremos aborda-la como manifestação diferenciada que se realiza no interior de uma sociedade que é a mesma para todos, mas dotada de sentidos e finalidades diferentes para cada uma das classes sociais. [...]não tentaremos abordar a Cultura Popular como uma outra cultura ao lado (ou no fundo) da cultura dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela (CHAUÍ, p.21, 1986)

Partindo das ponderações feitas por Chauí, é possível entender  por que muitos dos rappers se auto intitulam um efeito colateral do sistema e também um sobrevivente. É dessa cena que surge, do eu-enunciador (MC) do rap, o caráter opositor, de resistência e de recusa, o seu contra-discurso: 

        
Ei senhor de engenho eu sei
bem quem você é
Sozinho cê não guenta
Sozinho cê não guenta
Admito seus carro é bonito é
Eu não sei fazer Internet, video cassete
Uns carro loco
Atrasado eu tô um pouco, pô eu acho
Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
De carnaval a carnaval
Eu vim da selva sou leão
Sou demais pro seu quintal
(RACIONAIS MCs, 2002)

Num café matinal entre políticos malditos
Parasitas cínicos
Assassinos sociais
Os poderosos são demais
Derramam pela boca seus venenos mortais
Poluindo a mente dos que são de paz
A gente segura atura estas criaturas
Como pode mas um dia explode
E a idéia sai (então vai)
Eu vou eu vou de vez
Vejam só vocês
No meu Brasil em ano de eleição
O que se vê pela periferia são
Palanques panfletos carros de som
Promessas em alto e bom tom de que as coisas vão melhorar
Mas como acreditar
Se os que prometem sempre estiveram lá
Desses eu Gog sempre quer estar a anos luz
(GOG, 2000)


E eu não mudo, mas eu não me iludo
Os mano cu de burro, eu tenho eu sei de tudo 
Em troca de dinheiro e um cargo bom 
Tem mano que rebola e usa até batom
Vários patrícios falam merda, pra todo mundo rir
Ha ha! pra ver branquinho aplaudir 
É na sua área tem fulano até pior 
Cada um, cada um, você se sente só
(RACIONAIS MCs, 1998)

 

Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho
A minha vida é aqui e eu não preciso sair
É muito fácil fugir mas eu não vou,
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou
Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim, 
Ensinamento da favela foi muito bom pra mim
Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão                                             
Eu sempre respeitei.
(RACIONAIS MCs, 1998).
  

Rap nacional é o terror que chegou é o terror!
É o terror meu estilo meus planos de guerra
Comunidade do morro que não se rende a lei da selva
Eu sou mais um parceiro desse submundo
Trazendo a tona notícias são só por alguns segundos
Falo do crime de um povo que sofre
Enquanto nas mansões da minoria transbordam os cofres
O burguês descrimina
Fala mal de mim de você da sua mina apóia a chacina
Desmerece o artista o ativista
Deturpa a entrevista
Eu sou plebeu até a cabeça e o apogeu
No negro escravo correu sangue meu
Meu ancestral sofreu e o seu?
(GOG, 2000)

Os trechos acima são emblemáticos da postura de oposição e recusa assumida por alguns rappers, que se dá no sentido da denúncia, da não corrupção sua e de seu povo, de não se vender ao sistema do “senhor de engenho”. Para Zeni, isso é fruto de uma conscientização que compreende

 
A valorização da ascendência étnica negra, o conhecimento histórico da luta dos negros e de sua herança cultural, o combate ao preconceito racial, a recusa em aparecer na grande mídia e o menosprezo por valores como a ganância, a fama e o sucesso fácil (ZENI, 2004, p.07).

Na mesma esteira do pensamento de Zeni, seguem as ponderações feitas por  Waldilene Miranda,

Em contrapartida, também apresenta a palavra como estratégia de resistência à violação do corpo social. A linguagem aparece como arma simbólica que, embora de natureza ambivalente, vem de modo a diminuir a dominação. Em outras palavras, o sujeito excluído por uma elite dominante que exclui, manipula e aprisiona, utilizando-se de mecanismos que se dão por meio da linguagem, agora, recorre a estratégias que lhes foram negadas para assim, através da palavra, (re)construir identidades deterioradas pela violência. Seja ela sob a aparência da pobreza, do estigma, do crime ou da repressão policial formas de resistência podem emergir da constatação e da contestação destes sujeitos em relação ao mundo, pensamos a resistência a partir da perspectiva de que são discursos de (re)significação, ou melhor, são construções que rasuram discursos dominantes e revelam a presença significativa desses grupos na (re)construção de identidades em processo e na (re)invenção do imaginário (MIRANDA, 2011, p. 9).

Em janeiro de 1998, Mano Brown concedeu uma entrevista à revista Caros Amigos, onde deixa claro sua opinião frente aos meios de comunicação midiáticos. Indagado sobre como reagiria se um de seus clipes fosse apresentado num programa dominical vespertino, ele respondeu: "Como é que a gente vai impedir de tocar nossa música? Se quiser passar, passa, mas a gente não vai lá". E a outra pergunta sobre o significado de ir a um programa desses, ele responde:

 
O começo da derrota dos rebeldes. Estamos começando a ganhar uma pequena batalha de uma grande guerra. Tudo está no controle dos caras: televisão, a música... Os Racionais não pode trair. Muita gente conta com a nossa rebeldia. (BROWN, 1998, p. 33)

A expressão "muita gente" possivelmente se refere a quem ele escolheu como seu público: comunidades marginalizadas. Além desse público, o rap, ou melhor, o movimento hip hop como um todo, também desperta o interesse das universidades de muitos países e já se tem conhecimento de um número significativo de teses sobre este assunto; isto corrobora a urgência com que a academia absorveu tais estudos desde os primeiros rumores do seu  acontecimento. Porém existe ainda a resistência de alguns grupos de rap e de escritores de literatura marginal em relação ao mundo acadêmico trata-se de uma desconfiança comum aos outros escritores, sobretudo porque eles temem que seus produtos e ações sejam interpretados sob o signo do exótico e do inferior, ou apropriados por membros de grupos sociais privilegiados.
   Mas esse compromisso não fica só na palavra falada. Ele se inscreve naquilo que esses artistas chamam de atitude. Essa atitude consiste numa forma de se posicionar eticamente criando também expressões tatuadas na fisionomia que devem revelar as emoções do espírito de uma juventude dominada pela revolta. Uma ética que obriga esses artistas a se responsabilizarem pela mudança da situação em que vivem. Essa mudança não  significa que quando os rappers progridem em suas carreiras e ganham dinheiro, irão morar num bairro de classe média ou rica, para se sentirem a salvo da ameaça constante de serem mortos como mais um dos sacrificados por esta violência desenfreada. O compromisso dos artistas do hip hop é com a sua comunidade, não apenas consigo e com a sua família. Muitos desses artistas, mesmo alcançando sucesso e dinheiro, não se mudam de onde nasceram e cresceram, e se alguém o faz, continua ligado à comunidade por meio de sua arte.               
O compromisso com a mudança de que falam é com a mudança de todos.  Almejam mudar a vida das populações marginalizadas, enfrentando e tentando eliminar a miséria, o preconceito racial e a violência. Partindo deste objetivo, o hip hop se fortaleceu como um dos movimentos socioculturais constituidores de lideranças que atuam em comunidades de periferia, através de inúmeras formas de militância política suprapartidária. São reforçados pelo grande número de produção acadêmica e por várias obras que abordam esse tema e, principalmente, também por organizações como o Movimento Negro Unificado que lutam pelos direitos civis e políticos, de cidadão, do negro. Entendemos que o conceito de cidadão se dá no sentido de indivíduo dotado de direitos civis e políticos dentro de uma sociedade, assim cidadania é uma qualidade do cidadão e só pode ser amplamente exercida se houver democracia, regime que está intrinsecamente ligado à liberdade e a igualdade dos cidadãos em seus direitos e deveres.
Com certeza, não é fácil promover isso num país profundamente marcado por um enorme distanciamento entre ricos e pobres. Marcado também por diferenças culturais as quais geram um maior distanciamento entre os cidadãos e o autoritarismo sócio-político que gera preconceitos, racismos, prepotência, arrogância, marginalização e, sobretudo, exclusão social.        

Nesse contexto, pode-se dizer que o rap, entre outras coisas, tem o intuito de promover e consolidar a cidadania às camadas sociais marginalizadas com foco principal nas comunidades negras a partir de uma mobilização social. Desse modo, a construção da cidadania requer uma ordem social mais igualitária, em que os indivíduos não sejam marginalizados e excluídos por causa da sua etnia, condição econômica e cultural. Enfim, tem o intuito de promover uma sociedade na qual negros e brancos, mulheres e homens, pobres e ricos sejam tratados de forma igual.