MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

MARGINALIDADE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO DESLOCAMENTO DISCURSIVO E SUAS TENSÕES

Cleber José De Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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A CENTRALIDADE NO EU: VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS A PARTIR DA FAVELA

2.1- A poesia lírica do rap

De início faz-se a pergunta: rap é poesia lírica?
A princípio o rap parece ser uma espécie de desdobramento da poesia lírica que carrega, em seu discurso, um caráter de resistência, uma retórica subversiva. Partindo desse pressuposto, as análises que se seguirão, dos poemas: “Negro Drama” (2002), “Capítulo 4 versículo 3” (1997), “Fórmula mágica da paz” (1998), “Voz ativa” (1996), dos Racionais MCs, e “Brasil com P” (1990) do rapper brasiliense GOG, desenvolvem-se no sentido de lançar luz as seguintes inquietações, a saber: a) o rap é um gênero lírico? b) de que maneira o Eu (MC) se configura dentro do rap? c) para quem o eu (MC) do rap fala? d) quem é seu interlocutor? e) no gênero rap o caráter ficcional permanece?
Para responder tais perguntas, entendemos que se faz necessário, agora, apresentar alguns conceitos do gênero poesia. Sobre o que é poesia, diz o Houaiss (2004), “gênero literário (lírico ou dramático) em forma de versos /a arte de compor e escrever em versos” (p.578). Já o Dicionário da Língua Portuguesa (2001) aponta que poesia: “é a arte de comunicar imagens, sentimentos e idéias por meio de uma linguagem em que sons e ritmos se combinam com os significados” (p.683). Como se vê este último refere-se à poesia como sendo algo que vai além da composição em verso, há toda uma gama de procedimentos cujo intuito principal é comunicar. Nesse sentido, é possível atribuir, com mais facilidade, o status de poesia ao rap, já que, entre outras, comunicar e informar também são características e objetivos deste gênero.
Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (1977), aponta um conceito de poesia no qual reside o caráter de resistência e subversão envolto à poesia frente aos discursos dominantes:

Na verdade, a resistência também cresceu junto com a "má positividade” do sistema. A partir de Leopardi, de Hölderlin, de Poe, de Baudelaire, só se tem a consciência da contradição. A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio. O canto deve ser "um grito de alarme” (BOSI, 1977, p.142).

E continua,

Diante da pseudototalidade forjada pela ideologia, a poesia deverá "ser feita por todos, não por um", era a palavra de ordem de Lautréamont. Este "ser feita por todos" não pôde realizar-se materialmente, na forma da criação grupal, já que as relações sociais não são comunitárias; mas acabou fazendo-se, de algum modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. E quero ver em toda grande poesia moderna, a partir do pré-romantismo, uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes. A resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia). Nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando. O que ela não pôde fazer, o que não está ao alcance da pura ação simbólica, foi criar materialmente o novo mundo e as novas relações sociais, em que o poeta recobre a transparência da visão e o divino poder de nomear (BOSI, 1977, p 143).

Promovendo um diálogo com as ponderações feitas neste excerto, o mesmo autor, agora, em Leitura de Poesia (2003), reafirma o caráter subversivo que a poesia pode tomar para si: “a poesia não é apenas espelho da ideologia dominante, mas pode ser seu avesso e contraponto”. Desse modo, seria o rap o avesso da ideologia dominante? A poesia dos excluídos? O verso da favela?
Entendendo a partir dos conceitos de poesia lírica, vistos logo acima, guardada as singularidades, pode-se dizer que o rap parece se encaixar no viéz poético do qual Bosi faz referência, pois traz consigo desde sua origem um inflamado discurso crítico subversivo frente ao discurso dominante, como se pode ver nos trechos abaixo:

Hey, Senhor de engenho
Eu sei, bem quem é você
Seu jogo é sujo
E eu não me encaixo
Eu vim da selva sou leão
Sou demais pro seu quintal
(RACIONAIS MCs, 2002)
 
Preferencialmente preto, pobre, prostituta
Pra polícia prende
Por que pobre pesa plástico
Papel papelão
Pelo pingado
Pela passagem,
Pelo pão,
por que?
(GOG, 2000)
 
Além disso, demonstra também uma reação de resistência frente ao tipo de consumismo que corrompe os valores pregados e difundidos por seus antecessores:   

Em troca de dinheiro e um carro bom
Tem mano que rebola e usa até batom
Seu comercial de tv não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Efeito colateral que seu sistema fez
(RACIONAIS MCs, 1998)
 
Conscientemente o rap apresenta a condição histórica de seus produtores:

Pesquisa publicada prova
Preferencialmente preto
Pobre prostituta pra polícia prender
Pare, pense: por quê?
(GOG, 2000)

60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial 
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
A cada 4 horas, um jovem negro
Morre violentamente em São Paulo
(RACIONAIS MCs, 1998)

Bosi aponta algumas características da modernidade que são apropriadas para pensarmos o poeta que se expressa no rap.

A modernidade se dá como recusa e ilhamento. A metáfora da avestruz que cobre a cabeça diante do inimigo é eloqüente demais para exigir comentário. E o inimigo avança sem maiores escrúpulos. No entanto, se não há caminho, o caminhante o abre caminhando, é a lição do poeta Antônio Machado. Autoconsciência não é paralisia. Baudelaire: "O poeta goza desse incomparável privilégio de poder, à sua vontade, ser ele mesmo e outro (BOSI, 1977, p 143).

Em meio a toda essa discussão é preciso que se ressalte que o rap, por meio de seus produtores, manifesta o desejo de ser reconhecido como sendo expressão poética de grupos excluídos socialmente, uma arte negra (des)elitizada. Desse modo, pensamos o rap como um discurso lírico, crítico e subversivo. Um texto que prioriza o retrato das vivências de seus próprios produtores e de suas comunidades. A estrutura dessas composições, em grande parte, segue as características encontradas na poesia tradicional, ou seja, é um texto escrito exclusivamente em verso, com certa preocupação com a rima, mas não aquela dos parnasianos.
Contudo, entenderemos a poesia também como sendo “um campo de manifestações muito mais amplo que o que se revelou, a partir do século XVIII, por poema”, viés proposto por Frederico Augusto Garcia Fernandes (2003, p. 20). Para este autor o rap mantém uma forte ligação com a tradição da poesia oral: “a poesia oral, no caso o rap, deve ser compreendida em seu contexto de produção, pois é nesse contexto que a voz coletiva se faz presente” (Cf. FERNANDES, 2003). O mesmo autor afirma que “a poesia oral e a escrita encontram-se num eixo comum que é o próprio significado de poesia”(FERNANDES, 2003, p.20). Além de lançar luz sobre a questão da oralidade existente no rap, Fernandes aponta também para a questão da voz coletiva que se faz presente no discurso do rap. No decorrer deste capítulo lançaremos também nosso olhar sobre essa questão no intuito de entrever a configuração que se explicita entre o eu e o tu do rap. Dito isto, a seguir, desenvolveremos uma análise do poema “Jesus chorou”, dos Racionais MCs, na qual se observará alguns aspectos poéticos do rap tais como: rimas, figuras de linguagem, lirismo e oralidade. Segue a análise:

O que é o que é?
Clara e salgada,
Cabe em um olho
E pesa uma tonelada
Tem sabor de mar,
Pode ser discreta
Pode ser causada
Por vermes e mundanas
E o espinho da flor
Cruel que você ama
Amante do drama
Vem pra minha cama por querer
Sem me perguntar me fez sofrer
E eu que me julguei forte
E eu que me senti
Serei um fraco quando outras delas vir
Se o barato é louco e o processo é lento
Deixa eu caminhar contra o vento
O que adianta eu ser durão
E o coração ser vulnerável
O vento não, ele é suave,
Mas é frio e implacável
É quente borrou a letra triste do poeta (só)
Correu no rosto pardo do profeta...
Diz que homem não chora, tá bom, falou
Não vai pra grunp irmão, aí, Jesus chorou!
(RACIONAIS MCs, 2002)

Nesse fragmento pode ser visto uma referência ao mundo das tradições orais das ‘adivinhas’ de o que é o que é? Em seguida, são apresentados sentimentos conflitantes, por meio da metáfora que utilizam o esquema: lágrima versus vento. Esses elementos são mostrados como de que se misturam e se confundem a lágrima pode ser entendida como sendo a manifestação externo-concreto do mundo interno-abstrato do eu lírico. No mundo conflituoso do eu lírico a lágrima representa e simboliza, ao mesmo tempo, fraqueza e força, derrota e vitória.  É sabido que verter lágrimas está na tensão entre a tristeza e a alegria, o eu lírico traz a imagem de Cristo, que segundo a narrativa bíblica chorou antes de sua morte, para, talvez, “atestar” que chorar é um sentimento nobre e humano.
Continuando a análise só que agora com os poemas “Negro Drama”, também dos Racionais  e “Brasil com P”, do rapper brasiliense Gog, segue:

Negro drama,
Eu sei quem trama,
E quem tá comigo,
O trauma que eu carrego,
Pra não ser mais um preto fudido
(RACIONAIS MCs, 2002)


Pedro Paulo
Profissão pedreiro
Passatempo predileto, pandeiro
Pandeiro parceiro
Preso portando pó
Passou pelos piores pesadelos
Presídios, porões
Problemas pessoais, psicológicos
Perdeu parceiros passado presente
Pais parentes principais pertences
(GOG, 2000)

O que se destaca de imediato nas estrofes são as figuras de linguagem, principalmente as aliterações, as rimas e os versos livres. Isso para ficar em alguns exemplos. Aliteração é uma das figuras de linguagem largamente utilizada em poesia, que consiste em repetir fonemas num verso ou numa frase, especialmente as sílabas tônicas de forma a obter um efeito expressivo. Esta figura ajuda a criar uma musicalidade que valoriza o texto literário. Mas não se trata de simples sonoridades destituídas de conteúdo. Geralmente, a aliteração sublinha (ou introduz) determinados valores expressivos. A musicalidade também se manifesta nos trechos entendida aqui como sendo a esfera da rima dentro do processo de criação do rap. Como se vê, os fragmentos(apresentados acima) manifestam diversos aspectos poéticos os quais atestam o teor poético dessa produção contemporânea da cultura popular.