FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

FRONTEIRAS E FRONTEIRIÇOS

Karoline Batista Gonçalves(CV)
Roberto Mauro Da Silva Fernandes
(CV)
Organizadores
Universidade Federal da Grande Dourados

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AS FRONTEIRAS DO TERRITÓRIO:
ENTRE O CONFRONTO E O DEVIR DE NOVAS TERRITORIALIDADES EM DOURADOS/MS 1

 

Marcos Mondardo
Doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF
Professor do Curso de Geografia da Universidade Federal da Bahia – UFBA
marcosmondardo@yahoo.com.br

 

Resumo
Compreender a produção de um território e suas territorialidades implica ver a produção de suas fronteiras materiais e simbólicas. Nesse ensaio, analisamos a produção do município de Dourados, no Mato Grosso do Sul, como um território de fronteiras, seja pela zona de fronteira internacional por estar localizado aproximadamente a 100 km da fronteira entre Brasil e Paraguai, seja pela fronteira agrícola territorializada a partir da década de 1970 por meio da expansão territorial da moderna agricultura com a produção de soja pelos migrantes “gaúchos” e, ainda, pelas fronteiras identitárias produzidas pela relação entre diferentes e divergentes sujeitos, notadamente, indígenas, paraguaios e “gaúchos” que configuram conflitos em torno de suas identidades possibilitando, pelas imposições e mesclas culturais, o devir de novas territorialidades.

Palavras-chave: território; fronteiras; Dourados/MS.

Abstract
Understanding the production of its territory and territoriality involves seeing the production of their material and symbolic boundaries. In this essay, we analyzed the production of Dourados, Mato Grosso do Sul, as a territory of frontiers, either by the international border area because it is located approximately 100 km from the border between Brazil and Paraguay, is the agricultural frontier from territorialized from the 1970s through the territorial expansion of modern agriculture with soybean production by migrants "gauchos" and also by the boundaries of identity produced by the relationship between different and divergent subjects, notably indigenous Paraguayans and "gauchos" who configure conflict around enabling their identities, by levies and cultural blends, becoming the new territoriality.

Keywords: territory, borders; Golden / MS.

 

1 – Introdução

A fronteira está na ordem do dia. “Esquecida” em certos momentos, “exaltada” em outros, a fronteira ascende e apaga no interior da realidade que a faz emergir do mesmo modo que no interior do universo acadêmico que a (re)inventa como ferramenta de análise. Problema do mundo moderno ou mecanismo de reorganização dos lugares, a fronteira adquire hoje uma infinidade de atualizações que a trazem a cena contemporânea e ao debate cotidiano e acadêmico por meio de problemáticas como dos migrantes internacionais, dos novos muros, do neoliberalismo e as mutações do Estado-nacional, dos conflitos entre territorialidades divergentes, da questão agrária até os choques e mesclas entre culturas. A fronteira vem se tornando, assim, uma preocupação que transpassa a vida cotidiana das maiores cidades até os menores cantões habitados desse planeta.
Falar de fronteira, portanto, confere uma trama de relações sociais que, ao mesmo tempo, em que separa e une sujeitos, grupos e instituições num certo campo de interação, condiciona lutas e instiga novas formas de territorialização. Desde sua concepção mais tradicional, definida pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel, no final do século XIX, seja como linha de separação construída para formação dos Estados nacionais, seja como zona de avanço de um Estado sobre o território de outro por meio da ideia de “espaço vital”, novas possibilidades de interpretação foram surgindo com o movimento de construção/desconstrução de fronteiras pelo mundo.
Atualmente, com a difusão da globalização, da “compressão tempo-espaço” (HARVEY, 1994),ou pela aceleração dos contextos que se tornaram alargados com o desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 2006), ou com o alongamento espaço-temporal dos lugares (GIDDENS, 1991), inúmeras outras concepções de fronteira foram sendo pensadas como respostas ao movimento e às transformações de uma sociedade em transição, do mundo e dos sujeitos envolvidos em lógicas do capital e do mundo simbólico (não dissociados uma da outra).
Hoje em dia, vemos uma explosão de discursos envolvendo a temática fronteira, seja na sua vertente mais empirista, ligada à lógica de transformação operada pelo capital monopolista e financeiro, aliado aos novos e cada vez mais modernos meios de comunicação, informação e transporte, seja pelo seu caminho epistemológico, estreitamente articulado com questões referentes aos novos paradigmas das ciências, a emergência da cultura, ou, ainda, fazendo referência às novas leituras das questões educacionais. Nesse sentido, surgem inúmeras perspectivas, formas de abordagem e de realidades materiais que evidenciam, trazem à tona, a discussão da temática fronteira para o entendimento e/ou problematização de situações emblemáticas da realidade movente e vivente contemporânea.
Na Geografia, muitos trabalhos, para além do enfoque mais tradicional ligado a figura do Estado ou dos poderes das grandes corporações multinacionais, deslocaram seu olhar e passaram a dar valor a outras escalas, ouvido a outras vozes, sujeitos e poderes para a manifestação de outras fronteiras, desde as chamadas “micro-fronteiras”, aquelas construídas pelas celas das cadeias ou pelas salas de aula, até as erguidas por meio de muros no interior de favelas para separar a expansão das moradias dos pobres sobre os prédios ou condomínios fechados dos ricos, até as fronteiras do cotidiano – estas com grande força nos dias de hoje – como aquelas produzidas no interior de relações culturais que estão em situação de tensão e conflito, e/ou imersas em formas híbridas de convivência potencializadas de novas territorialidades.
Nesse emaranhado de relações em que a fronteira passa a apresentar um potencial bastante interessante para uma leitura e problematização das questões que envolvem as mutações contemporâneas, corremos o risco de cair, ao tentar torná-la uma ferramenta analítica, em num certo modismo acadêmico. Por isso, é importante sempre, historicizar e geografizar de que fronteira estamos falando, quais os sujeitos que a produzem, qual o sentido e posição que a mesma permite aos sujeitos assumir no “jogo” das identidades, cuidados que nos proporcionam produzir uma diferenciação social na produção desse par dialético dentro e fora, desse espaço duplicado, dessas relações que aparentemente estão divididas, mas, que, ao mesmo tempo, selecionam momentos de interações conforme os jogos de diferenciação, de inclusão/exclusão, de entrada e de saída num campo de relação.
Iremos, assim, discutir e problematizar aqui algumas questões referentes à temática fronteira no movimento contemporâneo da Geografia e das demais Ciências Sociais.  Propomos pensar como a fronteira se torna uma ferramenta para a compreensão de identidades e territorialidades que entram em tensão, em conflito e em negociação através de diferentes processos de territorialização. Pelo choque e também hidridização de culturas, as territorialidades vão sendo produzidas e desenhadas no território por meio de limites políticos materiais e simbólicos que permitem o acionamento de identidades em jogos de inclusão/exclusão.
O objetivo desse ensaio é, diante dessaproblemática,compreender como Dourados é um território produzido, disputado e inventado constantemente como um território de fronteiras, seja pela fronteira internacional em relação a sua localização na faixa de fronteira situando-se aproximadamente a 100 km da fronteira entre Brasil e Paraguai, seja pela fronteira agrícola territorializada a partir da década de 1970 por meio da expansão territorial da moderna agricultura com a produção de soja pelos migrantes “gaúchos” e pelas fronteiras identitárias que são produzidas pela relação entre distintos e divergentes sujeitos, notadamente, indígenas, paraguaios e “gaúchos” que configuram conflitos de territorialidades e a emergência de “novas” e múltiplas identidades. Pelos diversos sujeitos que a personificam e na interação localizada dessas fronteiras, Dourados é produzido como um território singular e múltiplo, onde se configuram relações de conflito e de negociação, de aproximação e de distanciamento entre indígenas, paraguaios e “gaúchos”.
Por isso, entendemos nesse trabalho várias concepções de fronteiras, desde a fronteira internacional entre Estados-nações, a fronteira agrícola da moderna agricultura até a fronteira das identidades. No entanto, todas trazem em seu bojo elementos que as formam e que as negam a partir de algumas características como separação, união e mediação. Logo, propomos uma concepção ampla de fronteira e aberta ao devir propondo vê-la como um processo que, além de separar e unir, é constantemente uma condição socioespacial de mediação das relações sociais. A fronteira, nesse sentido, se materializa no território, seja no território estatal ou nos territórios construídos pelos diferentes sujeitos, grupos e/ou classes sociais.
As fronteiras, nesse sentido, surgem, se afirmame se negam na sua multiplicidade. A primeira forma que evidenciamos é a faixa de fronteira entre Brasil e Paraguai que constrói uma singularidade em Dourados pelas relações que são produzidas no trânsito entre brasileiros e paraguaios, seja pela circulação de brasileiros que se deslocam a cidade de Pedro Juan Caballero (Paraguai) para a compra de produtos no comércio de reexportação, seja pela mobilidade da força de trabalho dos migrantes paraguaios para Dourados, pela presença de paraguaios na cidade brasileira que possibilita mesclas de culturas, de hábitos e de comportamentos, ou também pelas visitas (e remessas de dinheiro enviadas aos parentes) por migrantes paraguaios residentes no Brasil para o Paraguai.
A segunda forma se apresenta como fronteira agrícola de expansão e “territorialização” da moderna agricultura da soja com a migração “gaúcha” a partir da década de 1970, que permit(iu)e a mercantilização da terra, a racionalização das técnicas de produção da agricultura com a implantação da “modernização da agricultura” e a difusão do agronegócio. Essa fronteira territorializou um modo de vida próprio, o do médio e grande produtor rural (ou do fazendeiro) que produz em grande escala para o mercado internacional e por isso diverge com a lógica da produção para subsistência de indígenas e camponeses, provocando processos de expulsão da terra, de precarização e proletarização desses sujeitos, bem como a construção de representações que se manifestam por meio de estigmas e preconceitos.
A terceira forma de fronteira é produzida pela convergência de distintas territorialidades e consequentemente por diferentes processos de territorialização de indígenas, paraguaios e “gaúchos” que acionam diariamente suas fronteiras identitárias– muitas vezes de maneira ambígua – na construção de suas relações e práticas socioespaciais. Essa fronteira se expressa materialmente pelos diferentes projetos político-econômicos que se revelam na produção de Dourados como na agricultura para subsistência e na do agronegócio, bem como nas representações negativas e positivas construídas entre o eu e outro, entre os indígenas e paraguaios de um lado, e entre os fazendeiros (“gaúchos”, em sua maioria) de outro. Além disso, pela convergência de identidades territoriais, ocorrem também mesclas culturais ocorridas por meio de processos de hibridização (CANCLINI, 2003), numa perspectiva mais positiva ou “aberta”, antropofágica (no sentido de Andrade [1995]), não somente no sentido de imposição ou fechamento cultural, mas,também, como estratégia de manutenção da unidade, posição ou status social de um grupo ou classe (no sentido de Whatmore [1999]) – que parecem configurar a produção de “novas” e múltiplas territorialidades.
Esse texto foi fermentado ao longo de três anos (2009 a 2011) por meio de observações e conversas cotidianas vivenciadas em Dourados e na região da Grande Dourados. Conversas que, ou estivemos participando como interlocutor, ou como ouvinte, nas quais pudemos verificar as veladas e explícitas tensões, conflitos e negociações entre as culturas de indígenas, paraguaios e “gaúchos”. Como migrante sulista (“gaúcho”, para a maioria dos sul-mato-grossenses), vivenciamos o processo de re-territorialização por meio da reconstrução de nossa identidade territorial através do contato pessoal com outros sujeitos, especialmente, com indígenas e paraguaios. Nesse processo, verificamos como outra geografia e outra história foi sendo territorializada por um discurso que afere uma certa produção de verdade por meio de um conjunto de práticas que desenham suas territorialidades e que inscrevem suas relações de poder num determinado território.
Após a escolha das ferramentas chave para o desenvolvimento do trabalho, notadamente, dos conceitos de fronteira,território e territorialidade, realizamos um levantamento minucioso de estudos (livros, artigos, teses e dissertações) relacionados à expansão da fronteira agrícola e do agronegócio globalizado no Brasil e no Mato Grosso do Sul, especialmente, em Dourados, coletamos dados primários junto à órgãos do governo (estadual e federal) como no Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), levantamos informações em jornais como o Jornal regionais e nacionais, além de realizar anotações das observações e entrevistas realizadas em trabalho de campo durante esse período. Ressaltamos, por fim, que a análise desenvolvida, aqui, é parte ainda inicial de uma problematização em torno das questões referentes à migração “gaucha” e a construção de multi e transterritorialidades em Dourados, Mato Grosso do Sul.

2 – “Fronteiras internas” e territorialidades

Desde o surgimento do capitalismo nas suas diversas fases (entre os séculos XV e XVIII)até a fase atual da globalização a fronteira tem desempenhado um papel de categorização e diferenciação, de inclusão e exclusão, de alteridade, o que se justifica pela inferiorização e exploração de inúmeros povos indígenas e africanos pelo longo processo de construção do mundo moderno-colonial.
As fronteiras internacionais foram, nesse processo, sendo construídas por meio da afirmação dos Estados territoriais ao incluírem o discurso de representação desse “espaço de transição” e de demarcação, o “front” que separa (e une) o “aqui” e o “lá”, o eu e o outro numa forma de categorizar cartesianamente o dentro e o fora, o sujeito nacional e o estrangeiro, o superior e o inferior, o negro e o branco, o colonizado e o colonizador. Nesse longo processo de colonização a dimensão discursiva da fronteira se refere à produção das nações como espaços e comunidades de pertencimento, como espaço de referência, mas também como espaço imaginado (ANDERSON, 2005) que possibilita a classificação e a emergência de um “nós” em que participam aqueles que estão entre os limites físicos e sociais estabelecidos pelas configurações territorial e geopolítica das nações.
Imaginar, portanto, a nação com espaço ao qual nós pertencemos não é independente das formas de controle entre nações, do movimento dos nacionais e estrangeiros dentro do território estatal. Assim como do repertório de imagens e símbolos de referências criadas para a possessão e/ou pertencimento, podemos entender as fronteiras tanto nas dimensões constitutivas da nação, no seu caráter territorial/geopolítico como discursivo/imaginário, ou seja, no imbricamento de aspectos semiótico-material para o exercício do poder estatal por um longo processo histórico de dominância do mundo moderno-colonial (MIGNOLO, 2003).
Nesse processo, as fronteiras e a lógica de diferenciação e dominação chamam a atenção para as questões de discriminação, exploração, inclusão/exclusão que tem lugar presente na atual fase, digamos, “subjetiva”, do capitalismo. Os limites se referem a entidades que estão configuradas historicamente e, portanto, as experiências relacionadas com a posição social e geopolítica dos sujeitos que passam por “territórios” ou assumem posições distintas e por vezes divergentes (RAFFESTIN, 1986).Assim, desde os primeiros estágios do capitalismo, a fronteira tem desempenhado um papel de categorização e diferenciação, de construção da alteridade e de inferiorização e estigmatização de inúmeros sujeitos imersos na lógica da fronteira colonial (QUIJANO, 2000).
No caso das “fronteiras internas”, uma modalidade utilizada pelo colonialismo, é importante notar que os estados nacionais são essenciais para o sujeito-nacional atuar como proprietário dentro da sua jurisdição, resultando na normalização do estatuto de cidadão de um território estatal, bem como de processos de apropriação de propriedade como particular. Dessa relação surgem realidades em que as fronteiras nacionais já não são puramente exteriores das “fronteiras internas”, visíveis e personificadas, por exemplo, na propriedade privada (terras, imóveis dentre outros) ou “aquelas invisíveis”, produzidas pelo cotidiano, pelo movimento da cultura, através das desigualdades sociais e/ou da natureza, ou seja, que estão “localizadas” “em toda parte e em lugar nenhum”, pois são internalizadas pelos sujeitos através das relações sociais (BALIBAR, 2005, p. 80).
Desde o século XIX a globalização moderna capitalista iniciou – conjuntamente com a “produção” do nacional e a “invenção” do estrangeiro – uma ampla reorganização do mundo por meio das grandes correntes de migrações. Como esta forma de vivência surge exatamente na época quando se formam e se consolidam os Estados-Nações, desenvolve-se um novo elemento social e identitário na sociedade, que ultrapassa (ou trans-passa) a ideia de nacionalidade: o migrante. Este traz a sua bagagem cultural de um lugar para um outro e forma, assim, espaços de encontros e desencontros culturais. Curiosamente, é apenas o desconstrutivismo pós-moderno construído pelos estudos pós-coloniais (exemplarmente demonstrado por BHABHA, 1998, HALL, 2004, e MASSEY, 2008) que focaliza na figura do “sujeito-cidadão fora do seu lugar”, do migrante, numa forma positiva e teórica. Isto significa que passa-se a ressaltar a importância de espaços híbridos (CANCLINI, 2003) que configuram novas identidades e territorialidades muito mais múltiplas e complexas, tendo, nos migrantes, o ser que se “posiciona” entre o nacional e local.
Bhabha (1998), por exemplo, aborda a discussão da nação moderna, sendo o mesmo descendente de imigrantes indianos na Inglaterra, e propõe uma teoria de “territorialização” sob o olhar dos migrantes, refugiados e émigrés. Sugere, como proposta – numa aproximação geográfica – a Locality, a “localidade da cultura” (p. 199), onde diferentes sujeitos, tanto nacionais como estrangeiros (migrantes) se encontram dentro do Estado-Nação, nos guetos, nos cafés, nos novos costumes, na língua do outro, ou seja, em locais que agregam uma multiplicidade de diferenças que estão a luz de um “território” e que colocam em xeque a pretensa unidade e homogeneidade cultural e política da nação. A nação é fragmentada, é pluri ou multinacional, é rasurada por outras vozes, pelas minorias, pelos migrantes não se encaixam na história e geografia oficiais construídas pela figura do Estado. A nação é um conjunto de vozes em disputa.
As considerações de Bhabha (1998) permitem, assim, buscar compreender a construção de novas territorialidades por meio das diásporas. Na diáspora, o autor destaca o processo da “DissemiNação”, um processo de pertencimento identitário simultâneo a “dois mundos”, o deixado e o encontrado. A questão do território é fundamental, pois nele oscila-se entre o espaço material e simbólico, entre lugar concreto e imaginado.
Assim, o migrante passa em por processos que (re)definem os territórios e territorialidades por meio das fronteiras “étnicas” no Brasil:

O que, enquanto migrantes, produzimos, construímos e inventamos em nossos encontros e desencontros? Relações de todos os tipos e de todos os jeitos, sendo que muitas delas têm definido processos de identificação/diferenciação, exclusivismos, compartimentações e coexistências espaciais: as territorialidades. As territorialidades/os territórios engendram/são engendrados também como processos de objetivação e de subjetivação, em que a produção de valores e sentidos de existência (e de referência “material” e “simbólica”) tomam a centralidade enquanto pensar e fazer de um sujeito, de um grupo, de uma classe ou de uma instituição. As migrações movimentam os valores e os sentidos, que se encontram e se desencontram, se “aproximam” e se “distanciam”, se juntam e se chocam, se entrecruzam e se sobrepõem. As migrações provocaram e provocam, em qualquer tempo e lugar, “choques de territorialidades”, o que definimos aqui por “transterritorialidades”. Choques e conflitos causadores de mal-estares agudos a ponto de fazer migrantes e não migrantes se “esconderem” uns dos outros como se a invisibilidade pudesse dar fim à angústia do estranhamento ou à falsidade de uma pretensa harmonia local, regional, nacional e até internacional (GOETTERT e MONDARDO, 2009, p. 102-103).

Como o Brasil é um país quase que exclusivamente formado por “culturas migrantes”, o processo da “DissemiNação” (BHABHA, 1998)  deve ser pensada como uma característica fundamental na configuração do país. Entretanto, percebesse que a temática é raramente abordada entre geógrafos e outros cientistas sociais, ainda menos existe uma teoria consistente para se pensar uma “hibridização geográfica”.
Quando se fala de migrantes e do ato de migrar, não se refere apenas a um deslocamento de pessoas por um dado motivo, mas falam-se também da transposição de contextos estruturais que “cercam” estes sujeitos como costumes, línguas, tradições históricas, sentidos e significados de lugar, enfim, das inúmeras fronteiras simbólicas e materiais que produzem as identidades e territorialidades. Assim, essas novas relações construídas pelos migrantes e/ou sujeitos deslocados de seu “território” (seja pelo movimento físico ou de relações sociais) podemos pensar como as fronteiras nas suas dimensões concomitantes, material e simbólica, produzem, pelo diálogo ou conflito, novas territorialidades.

3 – Pela zona de fronteira entre Brasil e Paraguai: o trânsito de territorialidades em Dourados

            O munícipio de Dourados está localizado na faixa de fronteira internacional, situado aproximadamente a 100 km do limite entre Brasil e Paraguai. Essa condição lhe permite algumas interações com a/na fronteira internacional, seja por relações historicamente construídas, como pela presença de migrantes paraguaios no munícipio, pelas relações de compra de produtos pelo comércio de reexportação, no trânsito de identidades, ou, ainda, pela tensão entre territorialidades étnicas, de classe e nacionaispolarizadas por indígenas e fazendeiros ou entre brasileiros e paraguaios.
A presença, por exemplo, dos paraguaios em Dourados remete a Guerra contra o Paraguai ou da Tríplice Aliança (1864-1870), ao período da extração da erva-mate (1900-1940) até o desenvolvimento, na década de 1970, da modernização da agricultura que produziu uma singularidade a esse território de fronteira pela mobilidade da força de trabalho, seja como mão-de-obra nas fazendas de gado, grãos no setor sucroalcooleiro, ou notrabalho do setor do comércio ou dos serviços, produzindo, com isso, intensas relações entre brasileiros e paraguaios e fazendo com que a fronteira – na sua dimensão internacional – se manifeste constantemente pela presença do outro, do estrangeiro.
Há, inclusive, em Dourados, dois “territórios” para os paraguaios: a Colônia paraguaia, “território” de confraternização para realização das festas, e a Praça Paraguaia, que representaa religiosidade desses sujeitos por meio de uma capelaconstruída para abrigar a Virgem de Caacupé, Santa Paraguaia, bem como pela presença dos símbolos como o do tereré, além das cores da sua nação estar fixadas nesselocal que, demonstra, portanto, a territorialização desses sujeitos – simbólica e materialmente, nessa porção do Mato Grosso do Sul. Essa praça se localiza também no entorno de um dos bairros com o maior número de migrantes paraguaios, o Jardim Itália.
Além disso, as interações com o Paraguai, especialmente, com Pedro Juan Caballero (Paraguai) ocorrem em função do comércio de reexportação pela compra de mercadorias, por parte dos brasileiros que se deslocam de Dourados estabelecendo um trânsito em busca de produtos importados. Essa interação faz com que Dourados mantenha vínculos funcionais, das compras, do comércio, com o Paraguai, produzindo um trânsito nessa zona de fronteira e mantendo, por meio da diferença de câmbio, um fluxo de mercadorias que alimenta o município brasileiro com produtos oriundos do comércio paraguaio. Existe, nesse fluxo criado, um conjunto de trabalhadores brasileiros e paraguaios envolvidos no comércio lícito e ilícito de mercadorias que entram no Brasil por essa parte da fronteira.
Constroem-se também ligações mais afetivas ou familiares entre paraguaios (e seus descendentes) que moram no Brasil e no Paraguai, seja pelas visitas de migrantes paraguaios que estão em Dourados e que se deslocam para municípios paraguaios para visitar seus pais, irmãos, tios dentre outros, seja pelas remessas de dinheiro que são enviadas por estes para seus parentes no outro país, ou ainda, por “fronteiriços”, sujeitos que ao nascerem na fronteira desses dois países não se identificam com um ou outro território, mas, sim, com os dois (ou, até mesmo, em certa medida, com nenhum), pois se afirmam como fronteiriços, isto é, vivem literalmente nos/os limites.
Contudo, muitos indígenas que estão na Reserva de DouradosJaguapiru e Bororó2 têm familiares – das suas famílias extensas – em reservas no Paraguai e acabam, com isso, estabelecendo relações, mantendo vínculos familiares, criando territorialidades específicas, inclusive, estratégicas, de re-existênciana luta pelo retorno a terra, ao seu território – na língua guarani,tekorá –, estabelecendo de alguma forma redes de relações sociais na zona de fronteira internacional.
As fronteiras das identidades são demarcações de força, de sentidos, de valores e representações por territorialidades em confronto. A fronteira assume, assim, pelas inúmeras relações construídas, a condição de trânsito, de “com-fronto” e de-encontro com o Outro numa potencial possibilidade de reconstrução do sujeito:

(...) “fronteira”, no nosso ponto de vista, muito mais do que uma linha divisória que separa (no sentido mais estrito de limite), é um lugar de encontro (ou, em outras palavras, do com-front[o] e do des-encontro), o espaço em que, ao nos depararmos com um Outro, realizamos o movimento mais explícito de (re)definição de nós mesmos – seja pelo aprofundamento do próprio olhar sobre nossa singularidade, seja pela indagação colocada pelo olhar do outro que nos impõe, ao mesmo tempo, contestações, afirmações e relativizações (HAESBAERT, 2011, p. 11).

Seja pela lógica mercadológica no comércio de reexportação ou até mesmo nas relações afetivas, de ligações entre sujeitos, brasileiros e paraguaios, que se beneficiam de algumas condições estratégicas da situação de zona de fronteira internacional, como a diferença de câmbio, para criarem territorialidades específicas, funcionais e/ou até mesmo afetivas, assumindo, algumas vezes, uma identidade (trans)fronteiriça, ambígua, como a dos fronteiriços ou “brasiguaios”. Estes últimos, vinculados à expansão territorial da fronteira agrícola.
A fronteira, desse modo, incita o movimento e o trânsito, a alternância de territórios e fluxos liminares de relações. Nesse processo complexo de contornamento de fronteiras e, por extensão, de territórios, a produção de novas territorialidades, em constante devir, ocorre por meio dos processos de hibridização. Nessa relação múltipla, podemos vislumbrar a potencialidade para a emergência de multi ou transterritorialidades:

Assim como o hibridismo não corresponde a uma condição estanque, propriamente um “estado”, mas um processo em incessante ir-e-vir – ou, em outras palavras, em constante devir – , amulti ou transterritorialidade também deve ser vista, sobretudo, dentro de um movimento de entrada, saída e, mais do que isto, de trânsito entre diferentes territórios. O que mais importa aqui é a condição de possibilidade, sempre em aberto, de nossa inserção em “território alheio” (que também passa, assim, de forma ambivalente, a ser “nosso”), a abertura desses territórios que coloca permanentemente a possibilidade de entrar, sair e/ou transitar por essas territorialidades (HAESBAERT E MONDARDO, 2010, p. 34).
           
Nessas novas territorialidades construídas pelo encontro, desencontro e confronto de identidades, podemos verificar a importância da fronteira, seja material ou simbólica, para a territorialização de formas mais híbridas de coexistência entre uma multiplicidade de sujeitos.
Um “território” paradigmático para a multiplicidade dessas fronteiras e territorialidades divergentes é a fronteira agrícola. Nela convivem inúmeras identidades que entram em conflito, negociam e mesclam seus projetos políticos e suas culturas como podemos verificar em Dourados, no Mato Grosso do Sul.

4 – A fronteira agrícola: os fronts de territorialidades

Uma das manifestações da condição de fronteira, de front, ocorre pela fronteira agrícola, na sua expressão de frente de expansão e de frente pioneira, no sentido atribuído por Martins (1997), que caracteriza a primeira como expansão da “sociedade nacional”, branca, sobre a indígena por meio da economia de subsistênciaea última como uma nova racionalidade econômica, pela constituição formal e institucional de novas relações políticas, pela criação do “novo” vinculado à expansão dos mercados, induzindo a processos de modernização – na maioria das vezes de ordem global – e novas concepções de vida. Ou, ainda, pela modernização da agricultura, pelas noções de cidade do campo (SANTOS, 2006), ou cidade do agronegócio (ELIAS, 2006), e, hoje, cada vez mais, como parte da economia globalizada por meioda fronteira do agro-negócio.
Um primeiro aspecto a ser compreendido e problematizado é a noção de fronteira no âmbito de novos contextos (“alargados”, na expressão de Milton Santos [2006]), interesses e contradições, reinterpretando-a a partir de um novo olhar, por exemplo, pela manifestação do meio técnico-científico-informacional. Na medida em que o uso de técnicas modernas formam a base da produção do espaço numa economia mundializada, os diferentes tipos de territórios de fronteira passam a diferenciar-se por sua diferente capacidade de oferecer rentabilidade, capacidade técnica e informacional. A fluidez e a velocidade das técnicas da informação, que articulam as demais técnicas, produzem territórios de fronteiras com novos conteúdos, ocorrendo o processo de (re)estruturação com a participação de ações políticas de Estados e instituições que contribuem para alterar a dinâmica local/regional/global.
Esse casamento cada vez mais presente nos territórios entre técnica, ciência e informação, vai constituir o que Santos (2006)considera como meio técnico-científico-informacional, resultando na cientificização e tecnicização da produção, que é rapidamente alterada por atender aos interesses dos sujeitos hegemônicos, o que se vincula aos fenômenos de globalização, conferindo uma nova racionalidade a essa fronteira, resultando, consequentemente, na produção de uma nova geografia, pois:

São os novos fronts, que nascem tecnificados, cientificizados, informacionalizados. Eles encarnam uma situação: a da difusão de inovações em meio “vazio”. Se o movimento pioneiro de São Paulo, magistralmente descrito por Mombeig e Ari França, teve o comando dos grandes plantadores capazes de construir estradas de ferro, atrair imigrantes e incorporar um maquinismo moderno, hoje as frentes pioneiras são abertas sobretudo pelas grandes empresas, com a cooperação do poder público (SANTOSe SILVEIRA, 2003, p. 119).

As fronteiras, e nesse caso, as fronteiras agrícolas surgem com o meio técnico-científico-informacional tendo, cada vez mais importância e participação desses elementos combinados, em diferentes graus e intensidades, para a expansão da moderna agricultura na forma de agro-negócio. Se, como considera Bernardes (2006), no primeiro momento a expansão da fronteira ocorria pela ocupação de novas áreas, a fronteira atual prioriza-se a construção de um novo modelo de produção calcado na maior rentabilidade por meio da maior capacidade detecnificação. É preciso considerar que pela incorporação da técnica na produção ocorre um aumento de produtividade, circulando, com isso, maiores capitais e lucros e aumentando, consequentemente, o poder de grupos hegemônicos internacionais. É preciso mencionar, ainda, que o acesso à técnica implica, inclusive, o acesso a recursos de crédito, imprescindível a agricultura modernaque depende de vultosos recursos financeiros.
No Brasil, a partir da década de 1970 o desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional demonstrou a expressão geográfica da globalização no território. Assim, o território brasileiro ganhou (desigualmente) novos conteúdos, novas relações, novos usos, apropriações e dominações graças às enormes possibilidades da produção, mas, sobretudo, das novas capacidades de circulação dos insumos, dos produtos, do dinheiro, das ideias, das informações, das ordens e, em grande medida, de pessoas na condição de personificadores da mobilidade do capital ou na condição de força de trabalho para o capital (VAINER, 2005).
Inserido neste contexto, o estado de Mato Grosso do Sul vive uma fase de transformações desde a década de 1970 (o sul do então Mato Grosso, até 1977 quando foi desmembrado o estado de Mato Grosso do Sul), com cada vez mais importância e participação da ciência, da técnica e da tecnologia no processo de produção/organização do território e da mobilização do capital e da mobilidade da força de trabalho, tendo grande destaque, por sua magnitude e quantidade, a de origem sulista. Surgiram novas territorializações do capital com o complexo agroindustrial da soja (MÜLLER, 1989) e novas territorialidades com a mobilidade espacial de certos grupos como a dos sulistas que migraram de seus estados de origem para o Mato Grosso do Sul em busca de terras e do interesse em adentrar no mercado da moderna agricultura da soja nas terras planas.
Essa “fronteira tecnificada” começa a se desenvolver a partir de 1970, com a mobilidade de “gaúchos” que chegaram em Dourados para reproduzir sua condição de produtores agrícolas desencadeando, com isso, um processo de desterritorialização nessa fronteira agrícola por meio da expulsão de pequenos produtores do campo, além, dos indígenas, que foram sendo encurralados para a reserva indígena, para fundos de fazendas ou em bairros periféricos da cidade de Dourados. 
Nesse sentido, a fronteira foi sendo territorializada por um novo padrão de produção, o da agricultura moderna, capitaneada, pela produção de soja e milho, sobretudo, que desencadearam um profundo processo de re-territorialização pelos novos sujeitos –os sulistas, especialmente, os da classe dominante – que “detonaram” um novo padrão de produção territorial, tendo o território focado na produção da agrícola moderna, altamente concentradora de terras e de renda, e desintegradorada produção de subsistência que vinha até então sendo desenvolvida. O território para ser fruto da fronteira agrícola moderna tecnificada, seja no campo pelo agronegócio, seja na cidade pela urbanização corporativa que dá apoio a esse campo moderno em expansão. 
Nesse sentido, como já afirmamos em outro trabalho:

Com a migração sulista do capital e do trabalho houve a ocupação e apropriação privada de amplas parcelas de terras que se acelera na década de 1970 e que se consolida na década de 1990 com a ampliação do fluxo de migrantes sulistas (...) e de empresas do agronegócio (em sua grande maioria, de mesma origem geográfica) para Dourados e Mato Grosso do Sul. O resultado desse processo de ocupação e de apropriação privada da terra foram os conflitos desencadeados com os indígenas e com as populações locais que viram suas terras (parte ou grande parte delas) transformadas em mercadorias e atualmente supervalorizadas pela monocultura da soja [e atualmente, também, da cana] e por um mercado imobiliário do qual, também, participam muitos latifundiários sulistas reproduzindo um forte controle territorial sobre a produção do espaço agrícola e urbano (MONDARDO, 2009, p. 184).

Podemos ver, assim, a expressiva migração sulista do capital (ou dos sujeitos que personificam o capital) e da força de trabalho que se deslocaram para o estado de Mato Grosso do Sul. A partir dos dados dos Censos Demográficos do IBGE podemos assinalar que no ano de 1970 migraram para o estado 44.213 sulistas, destacando-se o fluxo de origem paranaense com 38.111 migrantes; em 1980 migraram 116.365 sulistas, sendo 98.571 de origem paranaense; em 1991 deslocaram 67.664 para o estado, sendo 51.363 oriundos do estado do Paraná; e, em 2000 o fluxo migratório aumenta consideravelmente deslocando-se 164.012 sulistas para o território sul mato-grossense sendo, destes, 114.641 de origem geográfica do Paraná. É importante fazer uma ressalva em relação a esses dados, pois a aparente maior participação de paranaenses durante o período de 1970 a 2000 é relativa, tendo em vista que muitos sujeitos migraram em partes, ou aos pedaços, originando-se do Rio Grande do Sul e passando por Santa Cantarina ou Paraná, onde fixavam residência por meses ou mesmo anos antes de chegarem ao Mato Grosso do Sul e, especialmente, a Dourados.
Entretanto, nessa fronteira tecnificada, a contradição se revela em consequência de pressões decorrentes da expansão das áreas agrícolas modernas, em que povos indígenas têm funcionado como “barreiras” ao avanço da fronteira tecnológica, tonando-se encurralados em “territórios de contenção” – como no caso da reserva de Dourados onde vivem aproximadamente 13.000 indígenas das etnias Guarani e Kawoiá –, os quais são afetados em função das transformações territoriais do entorno em termos de destruição do ecossistema, levando, por exemplo, à extinção de espécies de animais,da contaminação e assoreamento de rios e, sobretudo, pelo controle do acesso a terra. Logo, o modo de vida desses povos vem se deteriorando em função da precariedade de seu território de vivência, já que eles não têm como fazer avançar sua fronteira.
Assim:

Com a entrada avassaladora da monocultura da soja e do agronegócio em Dourados, as manifestações de mudanças operaram-se tanto sobre o espaço agrícola que se alterou com o novo aparato técnico e tecnológico se tornando homogêneo e geométrico, e sobre o espaço da cidade que ganha novas formas e funcionalidades, sobretudo aquelas ligadas ao agronegócio, a cultura da soja e ao capital internacional. Por isso, tanto o município de Dourados bem como grande parte do estado de Mato Grosso do Sul, especialmente, a sua porção sul, revelam processos contraditórios da recente modernização implementada, pois transformaram-se simultaneamente em espaços de produção de riqueza e espaços de produção de pobreza manifestando conflitos e crises, como, por exemplo, entre latifundiários e indígenas. Esse conflito atualmente ganha novos contornos e maior tensão com a proposta do Estado, juntamente com a FUNAI, para a demarcação das terras indígenas no estado que estão acarretando discussões, protestos e mobilizações de ambos os lados envolvidos na questão, desembocando tensões no interior do município de Dourados e em vários outros municípios de Mato Grosso do Sul (MONDARDO, 2009, p. 184).

Esse processo de modernização do território sul-mato-grossense se insere numa dinâmica muito mais ampla da criação de espaços mundiais econômicos – ou do alargamento de contextos (SANTOS, 2006), por meio da expansão da fronteira agrícola, onde uma rede planetarizada interliga-se através de redes de informação/circulação/produção de conteúdo técnico e tecnológico, que permitem novos ritmos muito mais acelerados de produção provocando intensas transformações sócio-territoriais.
Entender o fenômeno da expansão da fronteira agrícola pela agricultura moderna, significa perceber a desterritorialização de atividades tradicionais por outras mais modernas e do ponto de vista da lógica da acumulação, mais rentáveis, da existência de populações tradicionais, da re-existência e precariedade dos povos indígenas ou, ainda, das famílias camponesas“encurraladas”, do seu difícil acesso a terra, do trabalho precário e temporário indígena nas fazendas ou usinas de cana-de-açúcar, da exploração dos recursos minerais e vegetais voltados para a acumulação, significar ver o território como espaço de mediação política pelos confrontos de diferentes e por vezes divergentes territorialidades.
Na fronteira há sempre desterritorialização e re-territorialização, embora, se, para alguns essa re-territorialização pode implicar melhoria nas condições de vida e acumulação de renda e de terras, como para os fazendeiros, para muitos outros esse processo pode implicar a precarização das suas condições materiais e simbólicas de vivência, como a dos camponeses e indígenas. É vendo a fronteira como conflito, como front das tensões entre divergentes sujeitos, que podemos ver e problematizar as fronteiras da identidade e as múltiplas territorialidades.

5 – As fronteiras das identidades: territórios e territorialidades em confronto

Nas fronteiras agrícolas do Brasil contemporâneoa mobilidade do capital e da força de trabalho tem possibilitado o encontro de diferentes sujeitos, grupos, classes sociais e/ou instituições que configuram com isso choques e conflitos entre diferentes territórios e territorialidades. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, os povos indígenas têm suas condições materiais extremamente precarizadas e sua “expressão simbólica-cultural-material” na maioria das vezes negada por pessoas, grupos, classes e instituições hegemônicas “não-indígenas”, que se personificam atualmente nos médios e grandes produtores rurais ou, os chamados, fazendeiros. Isso não quer dizer que os povos indígenas vivam exclusivamente suas territorialidades, ao contrário, mesmo subalternamente, veem-se obrigados ao trânsito descontínuo entre as suas e as territorialidades do Outro, hegemônicas, como a dos fazendeiros, em movimento intenso e descompassado de tensões e conflitos tanto na cidade ou no campo, especialmente, em Dourados onde se encontra a Reserva Indígena Jaguapiru e Bororó.
Essa condição pode ser verificada em Dourados que, desde 2009, é relativamente comum ver em faixas em frente a casas de setores nobres da cidade ou em adesivos em camionetes, frases do tipo “Demarcação Não, Produção Sim”, em clara manifestação de oposição, pelos médios e grandes proprietários rurais e urbanos, aos processos de identificação e demarcação de terras indígenas na região.  Por isso, essa problemática emerge como muita força neste município (bem como em Mato Grosso do Sul e em partes do interior do Brasil) demonstrando conflitos entre territórios e territorialidades que possibilitam pensarmos nas relações de poder que se expressam e manifestam por meio das disputas territoriais, sejam econômicas e simbólicas, emergentes.
Por isso, em Dourados, a partir da década de 1970, como já analisamos anteriormente,ocorre com a migração “gaúcha” de trabalhadores e do capital a expansão sócio-territorial da fronteira agrícola por meio da monocultura da soja, que produziu um novo espaço ao mesmo tempo, homogêneo e fragmentado pelas distintas e divergentes territorializações que passaram a se fazer presentes como a dos “gaúchos” (difusores do agronegócio e/ou da moderna agricultura), dos indígenas (antigos moradores) e dos paraguaios (migrantes empurrados em busca de trabalho ou fugindo de conflitos políticos de seu país).
Com todo esse processo de modernização implantado, tanto no campo quanto na cidade, se inscrevem no espaço com essa nova organização e produção, “novas” territorialidades, especialmente, aquelas vinculadas ao agronegócio ou, em outras palavras, à mobilidade do capital e da força do trabalho. Por isso, a cidade de Dourados passou a ser o espaço de convergência de múltiplas territorialidades como, por exemplo, aquelas dos migrantes sulistas que implantaram lojas no comércio ligadas à agricultura moderna e/ou científica, e as territorialidades dos trabalhadores atraídos dos estados do Sul para essa atividade. Aliado a isso, foram modificadas e estão em constante processo de transformação, as territorialidades, já existentes, como a dos indígenas e a dos migrantes paraguaios que ocupam/vivenciam/transitam por inúmeros e variados “territórios” da/na cidade.
Dourados, portanto, apresenta uma realidade de posições divergentes afirmadas, em torno, por exemplo, das questões vinculadas à demarcação das terras indígenas. Essas posições divergentes podem ser verificadas em notícias recentes publicadas em jornais sobre os conflitos que permeiam as demarcações das terras indígenas em Dourados. Para exemplificar, vejamos a “fala” de um indígena Guarani Kaiowá sobre a queima de sua casa no dia 18 de setembro [2009], à beira da BR 486: “Queremos declarar que estamos muito perplexos e tristes por ser expulso da nossa terra. Esses fazendeiros queimaram as nossas casas para a gente sair da nossa terra” (Adital, 21/09/09). E, ainda, “Entidades ligadas a produtores rurais da região já se manifestaram de forma contrária a novas demarcações. Em março [de 2009], a declaração final de um encontro de fazendeiros em Dourados (MS) foi ‘tolerância zero para demarcações indígenas e para a infração dos direitos do produtor rural’. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, há 87 processos envolvendo conflitos entre fazendeiros e índios, cujo problema central é a disputa de terras. ‘Entendemos que a política indígena tem que evoluir com o trabalho da FUNAI para um modelo de assistência, de integração do índio ao sistema capitalista’, diz Eduardo Corrêa Riedel, vice-presidente da FAMASUL (Federação de Agricultura e Pecuária do MS). (...) ‘Os brancos muitas vezes dizem que estão na terra há muito tempo, mas não se dão conta que os índios estão há milênios’, afirma o indigenista e ex-presidente da FUNAI, Sydney Possuelo” (UOL Notícias, 15/07/09).
Em Dourados as tensões e disputas entre divergentes territorialidades são possíveis pela diversidade cultural e territorial que o município apresenta e, em sentido mais estrito, a cidade comporta pela “coexistência espacial” (MASSEY, 2008) de “múltiplas territorialidades” (HAESBAERT, 2006) que transitam por distintos territórios, desde o território do lar ao território do comércio, da rua, da escola, da fazenda, do supermercado dentre outros, nos quais os encontros e desencontros entre distintas identidades acabam potencializando relações transterritoriais, de mesclas ou cruzamentos de identidades, que se expressam por territorialidades que se configuram como “hegemônicas” – como a dos fazendeiros sulistas que na maioria das vezes tentam impor seus objetivos, seus projetos, suas visões de mundo, seu modo de trabalhar sobre os indígenas e paraguaios – e as “territorialidades subalternas” – aquelas dos migrantes paraguaios e indígenas que na maioria das vezes precisam se “adaptar” ao novo meio geográfico e a condição de subalternidade que se inserem nas relações, mesmo que, expressando resistências às práticas de dominação simbólicas e materiais. Essas relações possibilitam a esses distintos sujeitos e grupos sociais, múltiplos trânsitos muitos, inclusive, efetivos, da mobilidade entre opostos territórios e territorialidades que, em algumas vezes, possibilitam o “jogar” e o acionar de identidades e de territorialidades dependendo da relação e dos objetivos que estão situados no campo de ação.
Nesse complexo e múltiplo processo de entrecruzar de territórios e de culturas em Dourados, muitos “gaúchos”, empresários rurais e urbanos acabam mantendo uma “territorialidade fechada” no sentido de tentar “preservar” sua cultura e, sobretudo, para atingir seus objetivos enquanto grupo ou “classe” agrícola difusores do novo através da modernização da agricultura. Já, os migrantes paraguaios e os indígenas – embora, esses sujeitos são distintos também em muitos aspectos – se inserem nas relações com os migrantes gaúchos personificadores do capital, na condição de subalternidade tendo, na maioria das vezes, sua “territorialidade aberta”, pois precisam se “adaptar” às regras e normas do capital. Por isso, indígenas e paraguaios acabam transitando por alguns territórios da cidade de Dourados, absorvendo e traduzindo aspectos da cultura urbana e mudando suas identidades e territorialidades pela mobilidade entre diferentes “contextos” culturais e políticos da cidade.
Assim, entendemos que ocorrem em Dourados hibridizações de territorialidades e de identidades entre “gaúchos”, indígenas e paraguaios que, tendo suas territorialidades “abertas” ou “fechadas”, acabam “assimilando” mais ou menos os comportamentos e os sentidos de vivência do Outro através das relações de entrecruzamento e de tradução, relações que são de necessidade, do trabalho ou do capital, relações de amizade e de vizinhança, relações familiares – nos casamentos e nos namoros –, relações de convivência e de coexistência espacial entre esses sujeitos em Dourados nos mais variados encontros onde os confrontos acabam aparecendo, tornam-se emergentes.

6 – A mutação das fronteiras:múltiplos trânsitos, entradas e vivências

           
Buscamos desenvolver aqui uma problematização a partir dos olhares sobre a fronteira, inter-relacionando três processos geográficos, seja na forma de faixa de fronteira internacional, fronteira agrícola e fronteira da identidade. Nesse cenário, entendemos que Dourados – e até mesmo o estado de Mato Grosso do Sul – é um território de fronteiras onde, convergem, coexistem e disputam “territórios” diferentes e divergentes territorialidades como as de indígenas, paraguaios e “gaúchos”. Essa territorialização impõe limites, algo difícil nesse “território” em disputa, poisse conjuga com o processo histórico de ocupação da faixa de fronteira internacional que foi e é permeada por conflitos e contradições entre Estado, grupos internacionais, fazendeiros, indígenas, paraguaios, camponeses dentre outros.
Compreender as fronteiras que formam Dourados,é entendê-las pelo processo de modernização, tanto para a formação de trânsitos e/ou fluxos comerciais e afetivos com o Paraguai, comopela expansão territorial da fronteira agrícola com a moderna agricultura da soja, ou, ainda, pelas fronteiras das identidades que criam o eu e o outro, o sujeito do “progresso” que difunde o moderno”, os fazendeiros sulistas (o colonizador), e o sujeito do “velho” que produz para a subsistência, para a reprodução de um modo de vida tradicional como, por exemplo, o dos indígenas (o colonizado). Olhar a produção do território de Dourados pelos ângulos da fronteira, permite ver o processo de desterritorialização das formas mais antigas de produção e de modos de vida por formas de produção modernas com o surgimento de novas territorialidades, aquelas vinculadas à difusão do agronegócio. Nesse deslocamento do olhar para as margens é que podemos visualizar e problematizar os conflitos desencadeados nessa porção do território brasileiro.
Neste contexto conflituoso e ao mesmo tempo diverso emque convivem desigualmente indígenas, paraguaios e “gaúchos”, podemos perceber também os processos de mesclas e trocas culturais, seja por imposição para os sujeitos subalternos que precisam se “adaptar” ao trânsito funcional por inúmeros territórios, seja daqueles sujeitos que acabam usando da outra cultura como estratégia de resistência onde sair, entrar ou transitar pelo território do outro é o que permite a luta pelo retorno a terra, ao tekorá, como a dos indígenas.
Por isso, nesses choques e interações de culturas, geram-se, pelas aproximações e distanciamentos, pelas aberturas provocadas por relações afetivas como em casamentos ou em namoros, ou, ainda, pelas relações estratégicas de luta pelo território do outro, a construção de novos comportamentos e de novas territorialidades, muito mais múltiplas e algumas vezes mescladas, o que estamos chamando de transterritorialidades. Assim, focar as fronteiras na produção do território, permite ver e problematizar a multiplicidade de relações de poder, de força, que constroem as diferentes e divergentes territorialidades dos sujeitos hegemônicos e subalternos envolvidos nesse processo.

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Jornais eletrônicos
http://www.adital.com.br
http://www.uol.com.br

1 Uma versão simplificada desse artigo foi apresentada na IX ENANPEGE, na UFG, em Goiânia, de 8 a 12 de Outubro de 2011. Agradecemos as sugestões dos colegas na oportunidade da apresentação desse trabalho.

2 A reserva de Dourados foi criada pelo decreto nº 404, de 03 de setembro de 1917, devidamente titulada e registrada na folha 82 do livro nº 23, em 14 de fevereiro de 1965, no Cartório de Registro de Imóveis na Delegacia Especial de Terras e Colonização de Campo Grande (MS). A mesma foi reservada para abrigar os índios Guarani (LOURENÇO, 2008).