DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

3.2. O sentimento do mysterium tremendum – arrepiante

Para Rudolf Otto o tremendum é considerado irracional, ou seja, que não pode ser explicado através de conceitos, palavras; ele somente se manifesta através do sentimento e da reação que a pessoa desencadeia na psique. Tais sentimentos só podem ser manifestos mediante expressões simbólicas, cuja expressão está relacionada ao sentimento primário do individuo, ou seja, este busca ligação com um determinado objeto.
Essa manifestação denominada de mysterium tremendum só pode ser alcançada com o sentimento de espiritualidade bastante elevado da pessoa, é um poder tão grande que chega a confundir os sentidos humanos. Esse sentimento, ainda, só se manifesta através do estado de pura devoção meditativa do ser. Sem tal sentimento de espírito devotativo é impossível a pessoa alcançar esta manifestação, quando isto ocorre há um desvanecer da alma e a pessoa novamente se vê no estado profano.

“Por esta razão, o homem moderno, ao tentar racionalizar o sagrado, perdeu o significado mais profundo da sacralidade, dado que ela constitui uma das dimensões mais intangíveis e irrecusáveis do homem. Assim, o sagrado implica na luta entre o mysterium e o tremendo, o temor e o tremor. A luta entre o amor e o ódio, Deus e o diabo. O mysterium conduz ao admirável, ao assombroso, ao pasmo, à contemplação”. (MARCHI, 2005, p: 41)

Em contra partida, Otto adverte para uma questão fundamental no que tange ao conceito de tremendum, indagando sobre “a criatura se humilhar para quem e perante o quê. Perante o que está contido no inefável mistério acima de toda a criatura”. (Otto, 2007, p. 45). Observa-se com isso que apesar dele fazer tal indagação esta se dá de forma positiva e não negativa como parece à primeira vista. Pois a intencionalidade empregada por ele é experimentada através dos sentimentos que se manifestam nas pessoas.

“O atributo tremendum é, para começar, uma caracterização do que estamos tratando. O termo latino tremor em si significa apenas medo ou temor [Furcht] – sentimento “natural” bastante conhecido. É uma designação bastante próxima daquilo a que queremos nos referir, mas que não passa de uma analogia para uma reação emocional muito especifica que se assemelha ao temor e permite que este dê uma pista dela, mas a reação em si é algo bem diferente de temer”. (OTTO apud Bay, 2004, p.11) 

Nota-se com isto que Otto busca uma aproximação dos termos temor e tremor, mas estes, por sua vez, são apenas uma analogia, pois os termos vão além do que realmente querem expressar. “Santificar”, por exemplo, é outra palavra utilizada por ele para expressar um sentimento diferenciado que não deve se confundir a outros aspectos comuns, mas que deve tão somente ser relacionado à categoria do numinoso, por este motivo, Otto se reporta ao Antigo Testamento que é  rico nestas categorias de manifestações do tremendum.

“Desse “receio” em sua forma “bruta”, dessa sensação do “misterioso” alguma vez irrompida pela primeira vez, a emergir estranha e nova nos ânimos da humanidade primitiva é que partiu toda a evolução histórico-religiosa. Sua eclosão deu inicio a uma nova era da humanidade. Dela provem os “demônios” bem como os “deuses” e o que mais a “apercepção mitológica” ou a “fantasia” tenha produzido em termos de objetivações dessa sensação. Se ela não for reconhecida como fator primeiro e impulso básico, qualitativamente peculiar e inderivável, todas as explicações antigas, mágicas e etnopsicológicas para o surgimento da religião estarão liminarmente mal encaminhadas, passando ao largo do verdadeiro problema”. (OTTO, 2007, p. 47)

Verifica-se, assim, através destas categorias que já se manifestavam na antiguidade, a presença do misterioso, que também foi designado de assombro. O que existia naquele período era uma espécie de medo comum manifestado pela presença do pressentimento misterioso, que se revelava de maneira primitiva e bruta. Esta forma de assombro só era revelada à pessoa que manifestasse uma predisposição psíquica, advinda das faculdades naturais do ser.
Otto adverte ainda ao examinar as passagens do Antigo Testamento que enfatizam ao demoníaco-fantasmagórico, essa denominação corresponde à clara noção de “ira de Deus”. E esta ira por sua vez é o próprio “tremendum”, que se manifesta de forma totalmente irracional correspondendo ao âmbito natural do psiquismo humano, chegando ao caráter numinoso que não pode ser alcançado por nenhum soberano sobre a terra há não ser pelo misterioso. Assim de acordo com a autora Dutra Bay:

“O mysterium gera três sentimentos, os quais passamos a explicar. O mysterium tremendum que em sua forma primitiva faz tremer, causa calafrio. Manifesta-se pelo tremor místico, o grau de maior profundeza e interioridade do sentimento religioso. Este elemento é muitas vezes descrito nos textos bíblicos como a “ira de Deus”, que na forma racionalizada transforma-se na “justiça divina”, punição das transgressões”. (DUTRA BAY, 2004, p. 8)

As manifestações primitivas são apresentadas na forma de “receio demoníaco”, peculiar das religiões dos primitivos que se davam de maneira “ingênua e tosca” 1, sendo mais tarde superadas por estágios mais desenvolvidos como o numinoso. “A sensação do numinoso em seus níveis mais elevados é muito diferente do mero receio demoníaco”. (OTTO, 2007, p. 49) Observar-se que este aspecto não perde valor quando elevado ao seu mais alto grau de manifestação do numinoso, ao contrário, a alma encontra o estremecimento até alcançar as raízes mais profundas do tremendum.
Assim, é diante deste fato que a criatura continua no estágio de arrepio místico, ou seja, o sentimento de criatura ocasiona a sensação de nulidade do ser. A criatura é vista à sombra do criador, sua existência assim, se dá a partir da imagem que lhe é projetada. Dessa forma, entende-se que o mysterium que se manifesta constitui-se no elemento primeiro, e o sentimento de ser criatura é por sua vez secundário.
Essa sensação de temor [tremor] sentida pela psique humana é característica do aspecto numinoso, trata-se da ira de javé que reaparece no Novo Testamento. Lembrando que essa ira nada tem haver com o caráter moral, pois ela se manifesta de modo enigmático, ou seja, como força natural oculta na própria pessoa, que só se revela para o individuo que se aproxima dela. Essa ira por sua vez é próprio tremedum, ou seja, é totalmente irracional que se manifesta naturalmente através do psiquismo humano.


1  Expressão utilizada por Rudolf Otto na obra O Sagrado