INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.1 Os números naturais.

Os números 0, 1, 2, 3, . . . , constituirão a nossa espécie fundamental de números; são chamados números naturais. Infelizmente a expressão é um pouco ambígua, pois alguns autores incluem o zero entre os naturais, enquanto outros não o fazem, mas não nos preocupemos com isso. A idéia intuitiva que temos dos números naturais é que são todos os números cada um dos quais pode ser obtido principiando com o zero e somando um, tantas vezes quantas forem necessárias.

O matemático italiano Peano foi o primeiro a organizar as leis fundamentais desses números em um corpo axiomático; o seu conjunto de cinco axiomas é notável. Examinemos esses axiomas para conhecermos mais de perto os números naturais e para vermos, em seguida de que modos outras espécies de números podem ser reduzidas à espécie natural. Os axiomas de Peano, postos em palavras, são estes:

1. Zero é um número natural.

2. O sucessor imediato de qualquer número natural é também um número natural.

3. Números naturais distintos nunca têm o mesmo sucessor imediato.

4. Zero não é o sucessor imediato de qualquer número natural.

5. Se algo vale para zero e, valendo para um dado número, também vale para o seu sucessor imediato, valerá, ainda, para todos os números naturais.

Esses axiomas contêm três termos não-definidos: “zero”, “sucessor imediato” e “número natural”'. Os axiomas, por si mesmos, não nos revelam o que tais termos devam significar (embora entrelacem quaisquer significados que os termos possam ter) e não nos dão qualquer evidência a favor do fato de os termos poderem referir-se a qualquer coisa real.

Se desejarmos aceitar os axiomas como verdadeiros, será preciso que fixemos os significados e forneçamos, por nossa conta, essa evidência. Na base do emprego desses termos e, em tais axiomas, está a hipótese tácita de que “zero” se refere, realmente, a alguma entidade bem definida, dentre as que estão sob exame e de que, para cada uma dessas entidades em tela, existe, de fato, apenas uma entidade que é sue sucessor imediato. Segue-se dos axiomas, também, que zero, seu sucessor, o sucessor deste, e assim por diante, são, todos, números naturais; segue-se ainda (em vista do quinto axioma) que nada mais será um número natural.

Dos axiomas deflui que deve haver uma infinidade de números naturais, já que a sucessão não pode ser interrompida nem pode, em círculo, retornar ao ponto de partida ( porquanto zero não é o sucessor imediato de um número natural). O quinto axioma é particularmente importante porque expressa o pressuposto em que se assenta a indução matemática ( uma importante forma de raciocínio matemático dedutivo e que nada tem a ver com o raciocínio indutivo).

Podemos conceber de que modo opera o raciocínio por indução matemática imaginando uma série de peças de dominó colocadas em pé, umas ao lado das outras, em fila: suponhamos saber que a primeira peça vai cair e que, ao cair uma das peças, a seguinte também cai; estamos aptos, nesse caso, a inferir que todas as peças vão cair, não importa quantas sejam. No mesmo espírito, se sabemos que algo vale para o zero e que, valendo para um dado número natural, valerá igualmente para o seu sucessor imediato, estamos em condições de inferir que esse algo vale para cada um dos números naturais. Com base nos axiomas de Peano, podemos introduzir os nomes dos números seguintes: “um”, por definição, nomeia o sucessor imediato de zero; “dois”, por definição, nomeia o sucessor imediato de um; e assim por diante.

Os axiomas de Peano exprimem de modo claro, as propriedades essenciais dos números naturais. Não bastam, no entanto, por si mesmos, para efetuar a 'redução' de outras espécies mais elevadas de números - admitindo que se continue a empregar os mesmos princípios lógicos, relativamente elementares, utilizados para deduzir os teoremas da geometria. E não permitem a redução, por dois motivos. Em primeiro lugar, os axiomas de Peano não nos oferecem, tais como estão, uma teoria completa dos números naturais.

Se nos limitarmos aos três termos primitivos de Peano e aos cinco axiomas que ele formulou, será impossível (empregando princípios normais, elementares de lógica) definir a adição e a multiplicação de modo a dar-lhes o sentido geral que tem quando se trata de tais números; será impossível formular e, a-fortiori, demonstrar no sistema leis como a que afirma que a soma de números naturais x e y é sempre igual à soma de y e x , ou que afirma que o produto de x pela soma de y e z é igual à soma do produto de x por y e do produto de x por z . (Note-se que nem sequer nos preocupamos com subtrações ou divisões, pois essas operações não podem ser livremente efetuadas com os números naturais).

Em segundo lugar, é preciso, para a redução das espécies mais elevadas de números, empregar dois outros termos muito importantes, “conjunto” e “par ordenado”, que Peano não incluiu entre os seus termos primitivos (e que não pertencem à lógica, usual, elementar). Tratemos, por um momento, desses dois termos, discutindo a maneira pela qual devam ser entendidos.

Para nossos fins, os termos “conjunto”' e “par ordenado” precisam ser entendidos de maneira vaga. Um conjunto é uma classe, coleção , ou grupo de coisas; as coisas que pertencem a um conjunto podem ser de qualquer tipo, concretas ou abstratas, semelhantes entre si ou, ao contrário, muito distintas umas das outras. O único ponto essencial é que o conjunto deve ser concebido como uma entidade única, distinta das coisas que são seus elementos. Consideremos o conjunto de filósofos, isto é, o conjunto cujos elementos são cada um dos filósofos , isto é, o conjunto cujos elementos são cada um dos filósofos e nada mais.

Esse conjunto é muito diferente de cada qual de seus elementos: cada elemento é um filósofo, mas o conjunto é numeroso (ou seja, tem vários elementos), mas nenhum de seus elementos é numeroso. O conjunto, portanto, precisa ser distinguido de seus elementos. Dois conjuntos se dizem idênticos quando, e somente quando, possuem exatamente os mesmos elementos; assim, por exemplo, o conjunto de triângulos equiláteros é idêntico ao conjunto de triângulos eqüiângulos. É permitido falar de conjuntos vazios, isto é, de conjuntos que não têm elementos; à luz desse critério de identidade, porém, todos os conjuntos vazios são idênticos, e só pode haver um conjunto vazio. Assim, o conjunto de unicórnios é idêntico ao conjunto de círculos quadrados, já que ambos possuem exatamente os mesmos elementos (nenhum). Um conjunto é um subconjunto de outro quando todos os elementos do primeiro são elementos do segundo; assim, o conjunto de filósofos é um subconjunto do conjunto dos seres humanos. É preciso, entretanto, distinguir entre subconjunto e elemento: Platão é um elemento, mas não um subconjunto do conjunto de filósofos, ao passo que o conjunto de filósofos é um subconjunto, mas não um elemento do conjunto dos seres humanos.

O termo “par ordenado” também precisa ser entendido de maneira mais ou menos vaga. Um par ordenado consiste em duas coisas de qualquer espécie, tomadas em certa ordem. As coisas podem ser concretas ou abstratas, semelhantes ou não. Um par ordenado (x, y) se diz idêntico a outro par ordenado (z, w) se, e somente se, os dois primeiros itens forem idênticos ( y é idêntico a w ). É possível definir pares ordenados como certa espécie de conjuntos de conjuntos, mas isso é dispensável fazer aqui. Imaginemos, agora, possuir um sistema axiomático em que todas as leis fundamentais dos números naturais possam ser expressas e demonstradas e onde possam ser expressas e demonstradas as leis fundamentais que governam os conjuntos e os pares ordenados. Essa é a base de que necessitamos para “reduzir” as espécies mais elevadas de números.