INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.6 O conceitualismo e os intuicionistas.

A idéia de que os objetos matemáticos, os números e os conjuntos, por exemplo, seriam criações do espírito, entidades abstratas nascidas do pensar, pareceu, a muitos, bastante atraente. As idéias parecem atribuir um tipo de realidade a essas entidades, embora reconheça, um tanto a contragosto, que elas não têm existência independente. Trata-se, além disso, de idéias que tem certo atrativo, dando, com dá, uma extraordinária dignidade à atividade dos matemáticos Com efeito, uma forma extremada de conceitualismo sustentaria que:

“...o espírito está dotado de poderes para criar os números e as entidades matemáticas que desejasse, de modo inteiramente livre e onipotente”.

Os postulados matemáticos poderiam, então, comparar-se aos feitos da Divindade: quando o matemático pensasse com seus botões, “Postulemos que existam números de tal ou qual espécie”, ele os traria à luz, sendo seu poder soberano de criação análogo ao da Divindade onipotente que retira do nada qualquer coisa que deseja ser.

Seria exagero, porém, supor que o matemático estaria completamente liberto de restrições em sua atividade. Não se pode comparar o matemático à Divindade criadora, tal como descrito pelos teólogos voluntaristas, que admitem não estar Ela, submetida a quaisquer peias (tão poderosa que poderia transformar uma prostituta numa virgem - para usar um dos clássicos exemplos). Tenha a Divindade o poder que tiver, o matemático está sujeito ao requisito da consciência, não podendo criar auto-contradições.

Suponhamos, por exemplo, que alguém tente postular a existência de uma entidade que satisfaça à seguinte descrição:

“Um número natural que seja o número cardinal do conjunto de todos os números naturais”.

essa descrição pode, à primeira vista, parecer inteiramente razoável; pode parecer igualmente razoável que o matemático esteja em condições de postular, se assim o desejar, a existência de tal entidade. Não obstante, juntar a hipótese de que existe tal entidade aos axiomas comuns da teoria dos números naturais redunda em inconsistência (se existisse um número natural que fosse o número cardinal do conjunto de números naturais, ele deveria ser, simultaneamente, finito e não-finito - o que é contraditório). Um bom criador desse gênero não traria à vida o seu “objeto”. O exemplo deve bastar como lembrete de que nem todos o que imaginam ter criado alguma coisa chegaram, de fato, a criá-la.

O conceitualista precisa de qualquer modo, reconhecer que há uma diferença entre desejar e criar, nessa atividade lúdica de criação. Acresce que os principais defensores das concepções conceitualistas admitiram que os poderes criadores do espírito são limitados, estando sujeitos a mais imposições do que a simples consistência lógica.

O mais ilustre representante da corrente conceitualista, relativa à matemática dos números, é o filósofo Kant. Sustentava ele que as leis dos números, como as da geometria euclidiana, eram, ao mesmo tempo, a priori e sintéticas. Embora Kant não tenha deixado tão explícita as suas idéias acerca da Filosofia dos números quanto deixou explícitas as suas impressões a propósito da Filosofia do espaço, disse o bastante para fixar, em seus leitores, a noção de que, para ele, nosso conhecimento dos números se assenta numa consciência do tempo, estendida como “forma pura de intuição”, e numa consciência que o espírito possui de sua própria capacidade de repetir, seguidamente, o ato de contar.

Eis a explicação que oferece da possibilidade de existência de tal conhecimento sintético e a-priori: ao conhecer as leis dos números, o espírito ganha uma visão de seu próprio funcionamento interior e não da realidade, como ela é em si mesma. A idéia é paralela aquilo que Kant dizia a propósito de nosso conhecimento sintético e a-priori da geometria euclidiana basear-se na consciência que o espírito manifesta em torno de sua própria capacidade de construir, na imaginação pura, as figuras espaciais. Kant afirma, em verdade, que é através de uma visão sintética e a-priori que chegamos, a saber, de fatos particulares relativos aos números - tais como o fato de que 5 mais 7 é igual a 12. Isso não é muito plausível porquanto fatos particulares como esses, especialmente quando se referem a os números grandes, podem, por certo - e às vezes precisam – ser demonstrados. Seria preferível adorar o ponto de vista de que a compreensão e a justificação dos axiomas básicos da teoria dos números concordariam com a Filosofia Kantiana.

A concepção Kantiana da aritmética baseada na intuição da contagem parece pretender dizer que os números existem se, e somente se, puderem ser obtidos por meio do ato de contar; presume-se, também, que Kant apreciaria ter dito que os conjuntos existem se, e somente se, os seus elementos puderem ser contados. Em conseqüência, não haverá maior número, pois é sempre possível seguir a contagem para além de qualquer número a que se haja atingido ao contar. Mas não haverá nenhum infinito (número transfinito) porque seria impossível contar até o infinitamente elevado (isso requereria um período infinito de tempo, segundo Kant, e não dispomos desse tempo infinito).

De maneira análoga, uma reta não atinge o comprimento máximo, segundo a geometria Kantiana, porquanto é sempre possível estender, na imaginação, qualquer segmento já traçado; sem embargo, não pode haver uma reta infinita, porquanto não se pode, na imaginação traçar uma reta de comprimento infinito (isso também exigiria um tempo infinito). Segue-se que Kant, tanto com os números como com as linhas, está preso a doutrina; do infinito atual. Kant, em outro ponto de sua exposição, utiliza a doutrina que endossa argumentando que certas contradições insolúveis (por ele denominadas antinomias) aparecem quando se admite que o universo espaço-temporal pode conter qualquer totalidade infinita atual. Aristóteles ao tratar de alguns problemas filosóficos – o famoso paradoxo do movimento, de Zenão de Eléia, por exemplo - também se valeu de noções análogas acerca do infinito potencial.

Em períodos mais recentes, uma Filosofia da matemática de sabor kantiano foi revivida por um grupo de matemáticos liderados por Brouwer. Este matemáticos holandês sustentava, como Kant, que a “pura intuição” da contagem temporal seria o ponto de partida para a matemática do número; a filosofia desse grupo recebeu, por isso, o nome de “intuicionismo” . Para esses matemáticos modernos, no entanto, o intuicionismo não era apenas uma teoria filosófica, tal como a de Kant; era uma concepção de impregnava o próprio trabalho matemático executado pelo grupo - e a tal ponto que os juízos acerca da validade de argumentos matemáticos diferiam dos juízos formulados por matemáticos alheios ao intuicionismo.

Para ilustrar de modo concreto, um argumento como o de Cantor - de que há mais números reais dos números naturais - não é aceito pelos intuicionistas, embora seja dado como legítimo por muitos outros matemáticos. Ao construir s sua demonstração, Cantor definia um determinado número real (nós chamamos r0) asseverando que em sua representação decimal infinita o n-ésimo algarismo deveria ser “5” no caso do n-ésimo de rn não ser “5”; ou deveria ser “6”, no caso do n-ésimo algarismo de rn ser, precisamente, “6”.

Um intuicionista não pode aceitar como legítima essa definição porque ela não nos mostra de que modo “construir” o número real com auxílio da atividade puramente intuitiva de contar e calcular. A definição oferece-nos uma regra; para aplicar a regra, porém, e “criar” esse número real, precisaríamos completar um número infinito de passagens, percorrendo cada um dos algarismos do número real - e não há tempo para tanto, dizem os intuicionistas. O intuicionista não aceita, pois, o argumento de Cantor, destinado a revelar que há mais números reais do que naturais e rejeita, assim, toda a teoria cantoriana dos números transfinitos.

A demonstração de Cantor é “não-construtiva”; requer, em outras palavras, que consideremos o levar a cabo uma tarefa que requer um número infinito de fases. Poder-se-ia dizer que a forma comum de raciocínio por indução matemática também parece, em certo sentido, requerer a execução de um número infinito de fases. No raciocínio comum por indução matemática, inferimos que algo vale para todos os números naturais a partir de premissas que asseveram que esse algo vale para o zero e que vale para o sucessor de cada número natural para o qual esse algo também vale. Estaríamos autorizados, aqui, a admitir que algo vale para todos os números naturais, não sendo possível considerar completa a tarefa de examiná-los um a um ?

Rejeitaria o intuicionista a indução matemática ? A resposta é que ele não precisa rejeitar a indução matemática. A nossa conclusão a respeito de que algo vale para todos os números naturais não precisa ser entendida como afirmação de que tenhamos percorrido toda a série infinita de números naturais. Pode ser encarada como afirmação de que, para qualquer número natural, arbitrariamente escolhido, é possível contar, a partir de zero, até chegar a esse número, mostrando, assim, que aquele algo - fosse qual fosse - também se aplica ao número em questão. Assim considerado, o raciocínio é “construtivo”, pois cada específico número natural pode ser alcançado percorrendo-se apenas um número finito de fases do processo de contagem.

Do ponto de vista do intuicionismo, devemos dispor de uma demonstração construtiva de qualquer enunciado matemático a propósito dos números, antes de estarmos autorizados a dizer que sabemos da verdade desse enunciado. Se o enunciado afirma a existência de pelo menos um número de tal ou qual espécie, devemos saber como construir ou computar esse número, usando apenas um número finito de fases. Se o enunciado assevera que todos os números são de tal ou qual espécie, devemos estar em condições de demonstrar, usando apenas um número finito de fases, qualquer que seja o número dado, que esse número é daquela espécie. De maneira semelhante, é preciso dispor-se de uma contra-demonstração construtiva de qualquer enunciado, antes de poder dizer que se sabe da sua falsidade. E que acontece nos caso em que não se dispõe nem de uma demonstração nem de uma contra-demonstração matemática?

Dois exemplos bem conhecidos de asserções matemáticas que não foram demonstradas nem refutadas até o presente merecem atenção. O chamado “último teorema” de Fermat assevera que:

“não existirem números naturais, com n maior do que 2 , tais que se verifique a equação xn + yn = zn “.

A conjetura de Goldbach afirma que:

“todo número par pode ser expresso como a soma de dois números primos”.

(sendo o número não exatamente divisível por qualquer outro número, salvo a unidade e o próprio número). A despeito da inúmeras tentativas, os matemáticos não conseguiram encontrar demonstrações para essas duas asserções; também não conseguiram refutá-las.

O intuicionista assume uma posição radical diante de casos como esses. O intuicionista acredita que os números sejam criações do espírito e admite, com Kant, que a mente pode conhecer cabalmente aquilo que ela mesma gera. Sustenta o intuicionista que não pode haver verdade ou falsidade incognoscível (isto é, não-demonstrável construtivamente) acerca dos números.

Afirma, em conseqüência, que não podemos ter certeza a propósito da verdade ou da falsidade do último teorema de Fermat ou da conjetura de Goldbach. Se não podermos demonstrar nem refutar essas asserções, elas nem são verdadeiras nem são falsas. Não podemos demonstrar a demonstrabilidade (para atingir, portanto, a verdade ou a falsidade) dessas asserções; mas é possível que se chegue a fazê-lo, pensam os intuicionistas.

O intuicionismo admite uma terceira possibilidade e sustenta que pode haver um enunciado dotado de sentido e que não seja nem verdadeiro nem falso .

Está claro, pois quando se trata de rigor lógico, defenderem os intuicionistas padrões mais altos do que os matemáticos da linha de Cantor. Qualquer raciocínio aceitável aos olhos do intuicionista seria também aceitável aos olhos de Cantor; a recíproca, no entanto (como já vimos), não é verdadeira. É provável que ninguém daria muita importância ao fato, se os rígidos padrões intuicionais implicassem apenas o sacrifício da teoria cantoriana do transfinito. As atividades matemáticas poderiam prosseguir, excluída a teoria de Cantor, sem grande sensação de prejuízo. Acontece, porém, que algumas partes importantes da matemática chamada clássica também teriam de ser sacrificadas ao aceitar-se a posição intuicionista.

Uma vítima importante seria o teorema da análise que afirma que: todo conjunto limitado de números reais admite um menor limitante superior (supremo). O teorema é inaceitável para o intuicionista porque a definição do número real que seja o menor limitante superior de um conjunto de números reais exige que se faça referência a um conjunto ao qual a entidade definida pode pertencer (definições desse gênero são chamadas definições “não-predicativas”). Para o intuicionista, a definição “constrói” a entidade que está sendo definida; mas, prossegue ele, não se pode admitir a existência de um conjunto a não ser depois de se haver “construído” o conjunto, decidindo quais são os seus elementos.

De acordo com o intuicionista, portanto, uma definição não-predicativa nada chega a construir, pois pressupõe a existência daquilo que, supostamente, devera estar gerando. Outra vítima notável dos escrúpulos intuicionistas seria o “axioma da escolha”, formulado, pela primeira vez, pelo matemático alemão Zermelo, que se encarregou de mostrar, ainda, que esse axioma é um dado essencial em vários argumentos que dizem respeito ao conjuntos cujos elementos são conjuntos infinitos. Segundo o axioma da escolha, dado um conjunto cujos elementos são conjuntos não-vazios e mutuamente excludentes, existe pelo menos um conjunto que tenha exatamente um elemento em comum com cada um dos conjuntos pertencentes ao conjunto original. A objeção levantada pelos intuicionistas é que esse conjunto, cuja existência é alegada, não pode ser “construído”; “construir” o conjunto equivaleria a formular uma regra que nos permitisse, relativamente a qualquer objeto, determinar, por meio de algum processo finito de contagem e de computação, se o objeto pertence ou não pertence ao conjunto. Não há, todavia, regra alguma correspondente à espécie de conjunto que o axioma da escolha declara existir.

O intuicionismo - a mais influente das formas da Filosofia conceitualista do número - mutila, assim, de modo considerável, a matemática clássica, rejeitando alguns de seus axiomas. A filosofia que sustenta o intuicionismo teria atrativos bastantes para compensar essas perdas? Não, por certo. A doutrina segundo a qual números e conjuntos nascem da pura intuição do processo de contagem é toda ela muito vaga e discutível, especialmente se tomada ao pé da letra. Que seria, aliás, essa “pura intuição” ? Não poderia a mente contar, em “pura intuição”, com velocidade infinita, construindo, assim, os números transfinitos? As deficiências da doutrina tornam-se bem visíveis quando se compreende que ela decorre da teoria de Kant (e, presumivelmente, de Brouwer), segundo a qual as leis dos números valem para as coisas como a mente as intui ( concebe), não para as coisas como são por si mesmas. A idéia de que o número não se aplica às coisas tais quais elas realmente são, por si mesmas, equivale à idéia de que as coisas, na realidade, não são uma nem muitas. Isso está muito próximo de uma auto-contradição para tornar-se admissible.

A concepção filosófica do intuicionismo, relativa à criação de entidades matemáticas, pode, naturalmente, desligar-se dos seus princípios relativos à prática matemática (como a rejeição de argumentos não-construtivos, a rejeição de definições não-predicativas, e assim por diante). Ainda, separados de seu lastro filosófico, os princípios relativos à prática matemática parecem arbitrários e destituídos de justificativa. Por que abandonar certos tipos de procedimentos matemáticos, em geral aceitos, até determinada época, se isso não defluiu de um princípio filosófico?