INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.7 O realismo e a tese logicista.

O nominalismo e o conceitualismo são mesquinhos e avarentos quando se trata de questões de existência matemática. A atitude realista não tem preconceitos contra as entidades abstratas como tais. Ao contrário do que sucede com o conceitualista, o realista não admite que o reino das entidades abstratas esteja limitado pelos pobres poderes criadores do espírito, pois as entidades abstratas existem em si e por si, e não como “construções” da mente.

O realista acredita que existem, literalmente falando, quaisquer entidades citadas nos axiomas e teoremas da teoria dos números parecem referir-se a entidades abstratas, deve-se entender que assim, de fato, sucede, e nessa interpretação os axiomas e teoremas são enunciados verdadeiros. Do ponto de vista do realista, a tarefa dos matemáticos é comparável a uma viagem de descobrimentos.

O matemático não pode criar ou inventar os objetos acerca dos quais fala; esses objetos estão aí para serem descobertos e descritos. Como Bertrand Russell, em um de seus escritos mais antigos, afirmou

“Todo conhecimento deve ser reconhecimento, sob pena de não passar de ilusão; a Aritmética precisa ser descoberta exatamente no mesmo sentido em que Colombo descobriu as Índias Ocidentais, e não criamos números, assim como ele não criou os índios... Tudo que o puder ser imaginado existe, e o ser é anterior e não um resultado do fato de ter sido pensado”.

No entender do realista, não parece haver qualquer justificativa para rejeitar demonstrações não-construtivas e definições não-predicativas na matemática, nem parece haver qualquer justificativa para pensar que um enunciado não seja verdadeiro nem falso (ao contrário do que diz a lei do terceiro excluído). Se os números e as demais entidades matemáticas têm realidade independente de nós, os escrúpulos conceitualistas são lembrados em vão.

Não há objeções a fazer aos raciocínios não-construtivistas: a demonstração de Cantor fala de um número real cuja representação decimal, infinitamente longa, não podemos percorrer; isso, porém, não tem a menor importância porque a realidade do número não depende de nossa capacidade de percorrer os algarismos de sua representação decimal. Cantor determinou um número genuíno, mesmo que não tenhamos condições para determinar, especificamente, de que número se trata.

O mesmo acontece com as definições não-predicativas: se admitimos que os conjuntos existem por sua própria conta, independentemente de nosso pensamento, temos liberdade, ao definir uma entidade qualquer, de fazer referência a uma classe que contenha a entidade. A lei do terceiro excluído, além disso, não precisa nem deve ser abandonada; como os números naturais existem, o último teorema de Fermat, por exemplo, ou é verdadeiro ou é falso, em relação a eles, e uma dessas duas hipóteses se verifica, possamos ou não demonstrá-lo, constatando qual das duas hipóteses tem lugar.

Que tipo de conhecimento será o nosso conhecimento acerca dos números, sob o prisma realista? A situação, aqui, torna-se mais delicada. O matemático alemão Frege, um dos que mais claramente e com maior força advogou a tese realista, sustentava que nosso conhecimento do número é , em essência, um questão de visão racional a-priori. (Russell, de maneira geral, concordava com Frege.) Para Freg e, o conhecimento que se obtém, com o auxílio do “olho da Razão”, contemplando as estruturas atemporais da realidade numérica é um conhecimento a-priori.

Esse conhecimento não é, pois, analítico, no primeiro dos dois sentidos que demos antes a palavra “analítico”; o conhecimento dos números, portanto, não é , para Frege, uma questão de compreensão de significados de vocábulos. Quando ele fala de uma Razão que conhece objetos matemáticos, associa a essa espécie de conhecimento matemático muito mais do que a compreensão da linguagem; admite que alguém possa entender tão completamente a linguagem do número quanto se possa imaginar, sem saber, todavia, as leis dos números se a sua Razão estiver nebulosa a ponto de não apreender números.

Seria, então, a concepção de Frege acerca do nosso conhecimento dos números uma simples versão da velha tese racionalista, segundo o qual o olho da Razão pode penetrar no núcleo da realidade ? Não é exatamente isso o que sucede. Frege em verdade, seguido, logo após, de Bertrand Russell, introduziu uma importante novidade na Filosofia do número: admitiu que as leis dos números são todas analíticas. Ele escreveu:

“Na aritmética, não nos preocupamos com objetos que chegamos a conhecer de fora, como algo alheio ... mas com objetos que se apresentam diretamente à Razão e que, por se assemelharem a ela, são inteiramente transparentes à Razão”.

A citação poderá parecer estranha ao leitor habituado com o abuso que se faz do emprego da palavra “analítico”, em Filosofia Contemporânea, dando-lhe a impressão de que se trata de uma forma tortuosa de dizer que nosso conhecimento dos números é analítico.

Mas Frege emprega a palavra “analítico” apenas no segundo dos dois sentidos que apresentamos. Sustentando que as leis dos números são analíticas, Frege sustenta nada mais nada menos do que o fato de serem elas “reduzíveis” às leis da Lógica ( entendendo a Lógica em sentido amplo).

Dizer, pois, que as leis dos números são analíticas nesse sentido é perfeitamente compatível com dizer que o conhecimento que temos dessas leis depende, basicamente, de uma visão racional. Trata-se, porém, do mesmo tipo de visão racional que aquele que nos dá conhecimento das leis da Lógica - e este é, para Frege, o mais direto e o mais claro tipo de visão racional.

A doutrina que sustenta serem as leis da matemática dos números dedutíveis da Lógica e inteiramente “reduzíveis” à Lógica veio a ser conhecida como “tese logicista”. Enunciada, pela primeira vez, por Frege, a tese foi depois, independentemente, formulada por Bertrand Russell. Em seu monumental Principia Mathematica, Whitehead e Russell entregaram-se à tarefa de estabelecer, de maneira minuciosa, a tese proposta. De acordo com o logicismo, as leis da Aritmética e todo o resto da matemática dos números se relacionam às leis da Lógica da mesma forma que os teoremas da geometria se relacionam aos seus axiomas.

Para evidenciar que assim se dá, duas coisas se impõem: uma formulação clara do que são as leis da Lógica e uma série de definições dos termos-chave da teoria dos números, capaz de fazer que as leis dessa teoria se tornem deduzíveis das leis da Lógica. Estava completamente fora de questão a derivação de qualquer parte da matemática a partir da tradicional Lógica aristotélica; um sistema lógico muito mais potente fazia-se necessário.

Frege e igualmente Whitehead e Russell contribuíram, em larga escala, para a elaboração das leis dessa moderna e poderosa lógica. É importante notar que, para os seus objetivos, os termos “conjunto” e “par ordenado”, assim como as leis relativas aos conjuntos e aos pares ordenados, eram tidos como partes da Lógica e não como partes da matemática. (Russell propôs, a certa altura, o que chamou “teoria sem classes” - classe nada mais sendo que outro nome dos conjuntos; mas a supressão das classes implicava o uso das noções de propriedades e relações, tão ou mais complicadas que a noção de conjunto.)

As definições que se faziam indispensáveis eram definições de todos os termos e símbolos, básicos, não-lógicos, da teoria dos números; aí estão incluídos “zero”, “sucessor imediato”, “número natural”, bem como “ + “ e “  ”. Whitehead e Russell definiam os números naturais como certas espécies de conjuntos de conjuntos.

O zero era definido como o conjunto de todos os conjuntos vazios; um como o conjunto de todos os conjuntos não-vazios, cada um dos quais sendo tal que quaisquer objetos a ele pertencentes deveriam se iguais; dois como o conjunto de todos os conjuntos que tivessem um elemento distinto de algum outro elemento, mas tais que quaisquer outros elementos devessem ser iguais a um desses dois elementos; e assim por diante.

Um desses conjuntos se diria sucessor imediato de outro se, e somente se, retirado um elemento de qualquer conjunto da primeira coleção, o conjunto restante viesse a ser da segunda coleção.

Ora, o conjunto dos números naturais é um conjunto ao qual pertence o zero e ao qual pertence cada sucessor imediato de algo que está nesse conjunto. Dizer isso, no entanto, não é caracterizar de maneira completa os números naturais porquanto há muitos conjuntos nessas condições ( como, por exemplo, o conjunto formado por todos os franceses e todos os números naturais). O que se pode afiançar, contudo, é que todos os números naturais, e somente eles, pertencem a cada um desses conjuntos.

Um número natural pode, portanto, ser definido como qualquer coisa que pertença a cada conjunto que contenha zero e que contenha o sucessor imediato de qualquer objeto que também pertença ao conjunto. Definições que esclareçam o que significam adicionar e multiplicar esses números naturais também podem ser introduzidas. Desse modo, com o auxílio de uma Lógica ampliada, em que figurem leis relativas aos conjuntos e aos pares ordenados (ou seus equivalentes), os axiomas de Peano e as demais leis da teoria dos números podem ser deduzidos.

Frege sustentava apenas que as leis dos números podiam ser, dessa forma, reduzidas à lógica. A tese de Whitehead e de Russell era mais ambiciosa, sustentando eles que toda a matemática poderia ser reduzida à lógica. A geometria deveria ser tratada por meio da geometria analítica, sendo os pontos do espaço identificados a tríadas de números reais. Formas abstratas da álgebra (onde não se faz emprego dos números) poderiam ser encaradas como resultados da Lógica das relações, amplamente desenvolvida por Whitehead e Russell.

Não foi acidental o fato de ter a tese logicista sido desenvolvida pelos adeptos do realismo como filosofia do número, porquanto as duas concepções caminham juntas, com naturalidade. É claro que uma pessoa não-simpatizante do realismo poderia, perfeitamente, aceitar a tese logicista; a hipótese contrária também é igualmente concebido. Foi o realismo, entretanto, que forneceu a motivação intelectual responsável pelo surgimento das obras de Frege e de Russell; tivessem eles abraçado o nominalismo ou o conceitualismo kantiano, ou alguma Filosofia não-literal acerca dos números, dificilmente chegariam a desenvolver a tese logicista.

Tal como o fenômeno se manifestou, Frege e Russell julgaram-se exploradores de um terreno até então desconhecido da realidade abstrata - exploradores que haviam descoberto que a vasta área da realidade matemática não passava de uma península do amplo continente da realidade lógica. Era um modo otimista e agradável de caracterizar a própria atividade.

Contudo, como acontece com inúmeros sonhos brilhantes e inovadores, começou a desfazer-se, antes mesmo de ganhar contornos definidos.