INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.3 Números transfinitos.

Ao apresentarmos as definições das espécies mais elevadas de números, empregamos o termo “conjunto”. A idéia de desenvolver uma teoria dos conjuntos e tratá-la como disciplina autônoma remonta ao matemático alemão George Cantor que a concebeu no final do século XIX. A contribuição especial de Cantor foi a sua teoria dos conjuntos infinitos e dos números transfinitos. Pode ser encarada como nova extensão do desenvolvimento que consideramos na última seção.

A teoria de Cantor vale-se da importante noção de correspondência um-a-um (ou biunívoca). Dizemos que os elementos de um conjunto S1 estão em correspondência biunívoca, ou um-a-um, com os elementos de outro conjunto S2 se existir algum modo de associar elementos de um conjunto a elementos de outro de tal maneira que a cada elemento de S1 se associe exatamente um elemento de S2, e a cada elemento de S2 se associe exatamente um elemento de S1. Consideremos os passageiros de um ônibus: se cada passageiro ocupar um assento, o conjunto de passageiros e o conjunto de assentos estarão em correlação biunívoca. Nessas circunstâncias, o conjunto de passageiros teria como é claro, o mesmo número de elementos que teria o conjunto de assentos, não importando qual fosse esse número.

Por outra parte, se cada assento estivesse ocupado por um passageiro, havendo, contudo, passageiros viajando em pé, o conjunto de passageiros seria mais amplo que o conjunto de assentos. Consideremos, nesse exemplo, dois conjuntos de tamanho finito (não poderia existir um ônibus de tamanho infinito). A idéia de Cantor era que os conjuntos infinitos também poderiam estar em correlação um-a-um, tornando-se possível comparar conjuntos, mesmo no caso de conterem uma infinidade de elementos. Sustentava Cantor que dois conjuntos infinitos deveriam ser considerados de mesma grandeza se, e somente se, fosse possível correlacionar seus elementos um-a-um; e que um conjunto infinito deveria ser considerado maior do que outro se, e somente se, correlacionados os elementos deste último conjunto, um-a-um, aos elementos do primeiro, sempre restassem alguns elementos desse primeiro conjunto. Assim, por exemplo, o conjunto de números ímpares e o conjunto de números pares são da mesma grandeza, já que é possível correlacionar biunivocamente seus elementos, ficando cada número ímpar associado ao seu sucessor imediato.

Não surpreende o fato de, segundo a definição de Cantor; o conjunto de números ímpares e o conjunto de números pares serem da mesma grandeza. Surpreende, porém, que a definição estabeleça a mesma grandeza para o conjunto de números naturais e o conjunto de números ímpares. O ponto a considerar é que existe um meio de correlacionar de modo biunívoco os elementos desses dois conjuntos:

Números ímpares 1 3 5 7 9 11 . . .

Números naturais 0 1 2 3 4 5 . . .

O que fazemos é associar o primeiro número ímpar ao primeiro número natural e, em geral, o n-ésimo número ímpar ao n-ésimo número natural; e aí está uma correlação um-a-um. Mais surpreendente ainda é o fato de o conjunto de números naturais ser da mesma grandeza que o conjunto de números racionais - que talvez teríamos a tendência de supor muito maior. Para ver que assim se dá, colocamos os números racionais em uma série, de modo que cada um dos racionais tenha seu lugar definido na série e esteja distante um número finito de passos do início da série. Estaremos, assim, em condições de correlacionar o primeiro racional ao primeiro número natural e, de modo genérico, o n-ésimo racional ao n-ésimo natural.

Imaginemos que cada um dos racionais tenha sido expresso na forma de uma fração. Consideremos o quadro:

0/1 1/1 2/1 3/1 . . .

0/2 1/2 2/2 3/2 . . .

0/3 1/3 2/3 3/3 . . .

Prolongando o quadro, para a direita e para baixo, sem cessar, cada número racional deverá figurar em algum ponto. O quadro é de duas dimensões, mas podemos dar-lhe a configuração de uma série linear principiando no canto superior esquerdo e caminhando em diagonais, ao longo do quadro. A série linear que obtemos é esta:

Esta série repete alguns racionais ( e por exemplo, são o mesmo número que ) ; retiremos, pois qualquer elemento que já tenha aparecido anteriormente na série. Obtemos, desse modo, uma série em que cada número racional está distante um número finito de passos do início da série.

0/1 1/1 2/1 3/1 . . .

0/2 1/2 2/2 3/2 . . .

0/3 1/3 2/3 3/3 . . .

Temos, assim, uma correlação um-a-um entre os elementos do conjunto de números racionais e os elementos do conjunto de números naturais; os dois conjuntos têm, pois, a mesma grandeza.

O fato de os números ímpares, que formam um subconjunto dos números naturais, serem tão números quanto os próprios naturais e o fato de o conjunto dos naturais ter a mesma grandeza do conjunto dos números racionais são descobertas que parecem contradizer o axioma de Euclides:

“O todo é maior que qualquer de suas partes”.

As descobertas indicaram que o axioma de Euclides era errôneo ? Aí está uma questão delicada, semelhante a questão de saber se os astrônomos defensores da teoria de Ptolomeu estavam enganados ao sustentarem que a Terra não se move. Euclides, ao enunciar o seu axioma, pensava, está claro, apenas em totalidades finitas; os gregos nunca discutiram totalidades infinitas. Se a teoria de Cantor fosse ensinada a Euclides é possível que ele a aceitasse, dizendo:

“Enganei-me. Esqueci-me de pensar nas totalidades infinitas”.

Mas também é possível que Euclides rejeitasse a teoria, dizendo:

“Falar a propósito de totalidades infinitas de mesma grandeza é usar de modo impróprio à linguagem”.

Se Cantor deseja apresentar a sua teoria de um modo que não seja necessariamente falso, ele deve falar em “totalidades de mesma grandeza”. Qual das duas respostas estaria Euclides mais autorizado a oferecer? O assunto merece atenção, mas não é fácil chegar a uma resposta bem determinada. De qualquer forma, é possível ver que a teoria de Cantor acentua certas tendências e ignora outras tendências latentes no prévio emprego dos termos “totalidades” e “mesma grandeza”.

O surpreendente resultado de Cantor, relativo ao conjunto de números racionais, poderia induzir-nos a admitir que talvez todos os conjuntos infinitos, segundo a teoria por ele proposta, seriam da mesma grandeza. Cantor, porém, revelou que isso não acontece. Para simplificar as coisas, consideremos apenas os números reais maiores do que zero, mas não maiores do que um. Segundo Cantor, o conjunto de números reais situados nesse intervalo é mais amplo do que o conjunto de números naturais. Para estabelecer essa conclusão, Cantor argumentou indistintamente, valendo-se da “reductio ad absurdum”.

Suponhamos que aquele conjunto de números reais fosse da mesma grandeza que o conjunto dos números naturais. Isso significaria que esses números reais poderiam se dispostos, de algum modo, em série como, por exemplo, r1, r2, r3, . . . , rn, . . . , sendo o primeiro número real da série associado ao primeiro número natural e, genericamente, o n-ésimo número real associado ao n-ésimo número natural. Ora, cada um dos números reais em tela poderia ser representado em notação decimal assumindo a forma decimal infinita (ou não exata) - decimal infinita é aquela que não admite um ponto a partir do qual todos os algarismos sejam `` 0 ''. Alguns desses reais teriam, de qualquer forma, de aparecer como decimais infinitas: e o caso de 1/3 que nos daria 0,33333... . Outros que viriam a admitir forma exata, poderiam ser transformados, assumindo forma não-exata: e caso de 0,303 , que poderia ser expresso como 0,3029999... .

Considere-se, agora, o número real (chamemo-lo “r0”) representando pela seguinte decimal não-exata: o seu primeiro algarismo será “5” o primeiro algarismo de r1 e será 6 no caso contrário; o seu segundo algarismo será `` 5 '', se não for “5” o segundo algarismo de r2 , será “6” no caso contrário; de maneira geral, o seu n-ésimo algarismo será `` 5 '', se não for “5” o n-ésimo algarismo de r_n , e será “6” no caso contrário. Essa decimal infinita deve representar um número real maior que zero , mas não maior que um; entretanto r0 está definido de tal modo que não pode ser idêntico a qualquer dos números r1, r2, r3, ; ; ; , rn, . . . da série em foco. Teríamos, então, um número real r0 não-correlacionado com qualquer número natural. Isso contraditória a suposição de que era possível estabelecer uma correlação um-a-um entre os números reais daquele intervalo e os números naturais. Segue-se, portanto, que tal correlação não pode ser estabelecida, e que ha mais números reais no intervalo considerado do que números naturais. O conjunto de números reais é mais amplo do que o conjunto de números racionais.

Cantor desenvolveu uma teoria dos números cardinais transfinitos. Um número cardinal mede a grandeza de um conjunto, finito ou não; os cardinais transfinitos medem as grandezas de conjuntos infinitos - como os que examinamos. O conjunto de números naturais possui o menor número cardinal transfinito; o conjunto de números reais tem, como vimos um número cardinal transfinito maior; o conjunto de todos os subconjuntos do conjunto de números reais tem um número cardinal transfinito ainda maior. Cantor chegou a essa conclusão por meio de um raciocínio semelhante ao que acabamos de fazer. Disse ele que cada conjunto não-vazio, finito ou não, tem mais subconjuntos do que elementos. Isso quer dizer que o número cardinal do conjunto de subconjuntos de um lado conjunto não-vazio deve ser sempre maior do que o número cardinal do conjunto dado. Isso garante que sempre existe, qualquer que seja o cardinal dado, cardinais maiores do que esse cardinal. Cantor sustentou, pois, que há uma quantidade infinita de números cardinais que podem ser colocados em uma seqüência crescente.

As surpreendentes descobertas de Cantor podem ser dadas como natural prolongamento dos desenvolvimentos discutidos na seção anterior. Podemos pensar nos resultados de Cantor como teoremas do sistema axiomático já anteriormente concebido: sistema cujos axiomas expressam as leis básicas dos números naturais, dos conjuntos e dos pares ordenados. No final do século passado e no início deste, diversos matemáticos estavam agradavelmente convencidos de que seria possível, em princípio, erigir um único sistema axiomático dessa espécie, capaz de abarcar todas as espécies de números, finitos e transfinitos, e capaz de gerar todos os ramos tradicionais da matemática (sendo a geometria tratada por meio de interpretações numéricas, tal como se dá na geometria analítica). Muito já se havia conseguido ao longo dessas linhas, e as esperanças desses matemáticos eram de tal sistema axiomático, único e geral, poderia ser obtido em prazo relativamente curto. Veremos, no capítulo seguinte, em que deram essas esperanças.