INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.4 Deve-se tentar interpretar a teoria dos números?

A maioria dos matemáticos limitou-se a trabalhar com os números naturais sem co-gitar do que o termo “número natural” poderia significar e sem cogitar de saber se temos razões para que tais entidades realmente existam. Limita-se a acompanhar as conseqüências lógicas de hipóteses iniciais, como aquelas enfeixadas nos axiomas de Peano, admitindo que a matemática preencha, de modo cabal, as suas finalidades próprias ao estabelecer que seus teoremas sejam deduciveis dos seus axiomas. Algumas pessoas iriam mais longe, dizendo:

“E absurdo cogitar, como fazem os leigos e alguns filósofos, do que sejam os números ou da existência dos números; a matemática pura e inteiramente hipotética, no seguinte sentido: o que nos importa e somente o fato de que, se certos axiomas forem verdadeiros, então é logicamente necessário que certos teoremas também sejam verdadeiros. As questões levantadas a propósito de significado e existência são inteiramente irrelevantes para a matemática pura”.

Esse modo de ver é parcialmente justificável; e certo que se pode estudar a matemática dos números sem levantar questões a propósito da natureza ou existência dos números básicos. Uma teoria axiomatizada dos números naturais pode ser encarada como um sistema não-interpretado e pode ser investigado de um modo lógico e abstrato. Mas o ponto de vista alcança, por certo, o sinal, quando procura impedir reflexões acerca da natureza e da existência dos números.

A importância intelectual da teoria dos números como um corpo de conhecimentos não brota apenas do fato de ganhar a forma de um sistema interessante e logicamente consistente. Depende, também, da existência de algum interessante sentido em que os axiomas da teoria dos números possam ser verdadeiros. Um tema como a geometria de Lobacheviski e de interesse intelectual e merece atenção, mesmo que apenas estudado na qualidade de sistema não-interpretado - isto é, mesmo que nunca se chegue a encontrar qualquer interpretação cientificamente importante de seus termos primitivos capaz de tornar verdadeiros todos os seus axiomas.

A importância intelectual do sistema cresceria, no entanto, se pudéssemos encontrar alguma interpretação interessante que o tornasse verdadeiro. Ao contrário do que sucede com a geometria de Lobacheviski, a teoria dos números e ampla e continuamente empregada, tanto na ciência como na vida comum. Parece plausível, portanto, admitir que exista alguma importante interpretação capaz de tornar essa teoria verdadeira. O modo mais direito, embora não seja o único, de explicar porque a teoria dos números encontra aplicações úteis na ciência e na vida prática seria mostrar que a teoria admite alguma interpretação particularmente importante, interpretação que transforma as suas leis em verdades de grande valor quando utilizadas como premissas de raciocínios científicos ou de raciocínios comuns.

Esse ponto se torna especialmente significativo quando se cogita dos números transfinitos de Cantor. Vários pensadores, entre os quais se incluíram muitos filósofos proeminentes, como Aristóteles e Immanuel Kant, acreditaram que não pode haver, no universo, um número realmente infinito de coisas. Ao defenderem a idéia empregavam, por certo, a palavra ``número'' em importante sentido corriqueiro. Negavam, além disso, de algum modo, o que Cantor afirma em sua teoria ao formular o princípio de existe uma hierarquia de conjuntos infinitos, cada vez mais vastos. É claro, porém, que as afirmações de Aristóteles e de Kant não constituem negação das asserções de Cantor a menos que ambas as partes dêem ao algum sentido ao termo ``número'' e, em verdade, dêem ao termo, substancialmente, o mesmo sentido.

Cantor e outros matemáticos que o seguiram não empregavam, por certo, “número cardinal” como simples termo não-intepretado; entendiam, as leis de Cantor como asserções específicas, imaginando-as verdadeiras e não falsas. E possível que todos se manifestassem confusamente, dizendo coisas absurdas; não temos o direito, contudo, de considerar as suas idéias como desprovidas de sentido sem fazer, antes, um grande esforço para determinar a significação que podiam ter.

Consideraremos, de maneira breve, três principais pontos de vista adotados para sustentar que existe alguma interpretação literal da teoria dos números capaz de tornar verdadeiros os seus axiomas. Esses pontos de vista não respondem a pergunta “os números existem, realmente?” de um modo figurado, com réplicas do tipo “sim é claro”, no sentido de que o termo “número” aparece nos teoremas deduzidos dos axiomas ou do tipo “sim, é claro”, no sentido de que o discurso acerca dos números se revela frutífero para a ciência. Ao contrário, visam defender a posição de que as coisas que merecem o nome de números, coisas que tornam verdadeiras as leis da matemática, existem, literalmente falando. Defender essa posição afirmando que tais coisas “existem, literalmente” equivale a afirmar que essas coisas não são, em qualquer sentido, imaginárias ou fictícias. Equivale a sustentar que se deve dizer que tais coisas existem no mesmo tom de voz que e empregado para falar da existência de seja lá o que for que se admita como verdadeiramente real ( objetos físicos, dados sensórios, ou o Absoluto).

O problema de encontrar uma interpretação literal para a teoria dos números é bastante semelhante a questão dos “universais”, que tanto preocupou os filósofos medievais. O problema dos “universais” era uma questão acerca do status das propriedades como virtude, quadratura e vermelhidão. Encontramos, provavelmente, casos de virtude em nosso mundo, mas a própria virtude não parece coisa localizable no espaço e no tempo; isso não impede que dela falemos como se fora algo nem impede que digamos conhecê-la. A virtude, a quadratura, a vermelhidão e todos os “universais” semelhantes parecem ser entidades abstratas, isto é, objetos não-localizados no espaço ou no tempo. Que realidade possuem esses universais ? O seus status parece enigmático e misterioso. Sendo entidades imateriais, intangíveis, como é possível ter conhecimento delas e por que adquirem tanto relevo em nosso pensamento?

As respostas filosóficas dadas a esse problema, na Idade Média, eram de três tipos.

 Os nominalistas, por sua vez afirmavam que não existiam coisas como os universais ou eles não eram entidades abstratas.

 Os conceitualistas diziam que os “universais”, embora fossem entidades abstratas reais, não tinham qualquer realidade em nosso mundo além das que lhes conferia nosso pensamento – eram criadas pelo espírito.

 Os realistas sustentavam que os “universais” eram entidades abstratas reais, pelo menos tão reais quanto os objetos concretos, e sustentavam que o espírito tem poderes para descobrir e compreender essas entidades, servindo-se de uma visão racional.

No que concerne a teoria dos números, a questão relaciona-se a realidade dos números naturais (e dos conjuntos e dos pares ordenados) e não a realidade de propriedades. Os números, contudo, tal como sucede com as propriedades, parecem ser entidades concretas, isto é, objetos não localizados no tempo e no espaço. Isso é que torna a questão medieval semelhante a esta questão relativa à matemática. Pelo fato de as duas questões serem mais ou menos paralelas e que as respostas dadas pelos pensadores modernos acerca dos números podem ser classificadas em três categorias semelhantes às antigas. Podemos chamar nominalistas aqueles que sustentam que os números não são entidades abstratas e que se existe um modo qualquer de interpretar a teoria dos números de modo a torná-la verdadeira essa interpretação deve referir-se a objetos concretos. Podemos dizer que são conceitualistas aqueles que afirmam existirem números e serem eles entidades abstratas, sustentando, porém, que se trata de uma criação do espírito. E podemos, enfim, denominar realistas aqueles que admitem, sem discussões, que os números, como entidades abstratas, existem, literalmente, independentemente do nosso pensamento.