INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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3.4.2 Definindo espécies mais elevadas de números.

O processo de redução de espécies mais elevadas de números aos números naturais se efetua em uma série de fases. Desenvolvemos, de início, uma teoria dos números racionais, inteiramente assentada sobre a nossa teoria dos números naturais, dos conjuntos e dos pares ordenados. Desenvolvemos, em seguida, uma teoria dos números reais, baseada em nossa teoria dos racionais. Passamos, a seguir, para os números reais relativos, isto é, dotados de sinal. Passamos daí, para os números complexos. Em cada uma das fases admitimos que se tenha compreendido o que sejam os números da espécie precedente e, o que é igualmente importante, admitirmos saber o que signifique adicioná-los ou multiplicá-los. Definimos, dessa maneira, o que sejam os números da espécie seguinte e definimos o que significa adicioná-los ou multiplicá-los. Tendo ampliado o domínio dos números de modo a incluir, por fim, todas essas espécies de números, podemos observar o modo em que os números complexos - os que se acham mais afastados dos números naturais - seriam reduzidos aos números naturais, pois explicamos os racionais em termos dos naturais, os reais em termos dos racionais e os números complexos em termos dos reais relativos.

Comecemos com os números racionais. Pensamos neles, de modo intuitivo, como aqueles números que podem ser representados por frações cujos numeradores e denominadores são números naturais. Recordamos, de nossa Aritmética ginasiana, que x/y é igual a z/w quando, e somente quando, xw é igual a zy. Em analogia com esse fato, podemos introduzir, de modo arbitrário, o termo “igual” para aplicá-lo a pares ordenados de números naturais.

Sendo x, y, z, w números naturais, diremos que o par ordenado (x, y) é igual ao par ordenado (z, w) se, e somente se, nem y nem w forem iguais a zero e o número natural xw for idêntico ao número natural zy . (Convém notar que dois pares ordenados poderiam ser iguais sem serem idênticos.) Estamos em condições, agora, de apresentar uma definição de números racionais. Podemos definir um número racional como qualquer conjunto não-vazio de pares ordenados de números naturais tais que cada par ordenado desse conjunto seja igual a qualquer outro par ordenado desse conjunto, conjunto que contenha, ainda, qualquer par ordenado que seja igual a um de seus pares ordenados. Precisamos definir, também, aquilo que entenderemos por adição de dois números racionais. A sugestão se apresenta quando recordamos, de nossos estudos de Aritmética, o fato de que

+ =

Consideremos, a seguir, três quaisquer números racionais R1, R2 e R3 onde (x1, y1) é um par ordenado de números naturais pertencente a R2 e (x3, y3) é um par ordenado de números naturais pertencente a R3. Por analogia com a regra da Aritmética ginasiana, podemos dizer que R3 será a soma de R1 e R2 se, e somente se, (x3, y3) for igual ao par ordenado

( x1. y2 + x2 y1), ( y1 y2 ))

Admitindo que se saiba o que seja somar e multiplicar números naturais, essa definição nos diz o que significará somar números racionais. A definição é projetada com o fio de assegurar que dois números racionais tenham por soma outro número racional, e que a adição goze das propriedades familiares (como a de que R1 + R2 seja idêntico a R2 + R1). A multiplicação de números racionais pode ser definida seguindo a mesma linha de pensamento.

Chegamos aos números reais. Em termos intuitivos, podemos pensar em números reais como números que se prestam para comparar um comprimento ou uma área com outro comprimento ou outra área. Assim, é o número de que necessitamos para comparar o comprimento da hipotenusa e o comprimento de um cateto num triângulo retângulo isósceles - não existindo, como os gregos demonstraram, com surpresa, um número racional capaz de efetuar essa comparação.

Podemos desenvolver o conceito de número real se imaginarmos os números racionais dispostos em ordem crescente de grandeza ao longo de uma reta, da esquerda para a direita ( a série sendo “densa”, no sentido de que entre dois quaisquer números racionais sempre haja um terceiro número racional). Figure-se, a seguir, um “corte” nesta série. (A noção de “corte” se deve ao matemático alemão Dedekind.) Suponhamos que o “corte” seja feito de tal maneira que entre os racionais situados à esquerda do 'corte' nenhum seja o maior (seja qual for o escolhido, há outros maiores do que ele). Podemos, então, considerar o conjunto de todos os racionais que ficam à esquerda do “corte”; esse conjunto terá as seguintes características:

1) nem todos os racionais estão nesse conjunto;

2) esse conjunto não admite um elemento que seja seu extremo superior;

3) cada racional pertencente ao conjunto é menor do que qualquer racional que não pertença a ele.

A um conjunto desse tipo chamaremos: conjunto de números reais. De acordo com essa definição, um número real é um tipo especial de conjunto de racionais; em outras palavras (levando em conta nossa definição de números racionais), um número real é um tipo de conjunto de conjuntos de pares ordenados de números naturais. Assim, por exemplo, o número real é o conjunto que contém todos e apenas aqueles racionais cujos quadrados forem números racionais menores do que 2 .

Podemos definir o que a adição deverá significar para os números reais dizendo que os números X e Y têm o número real Z por soma se, e somente se, quando qualquer racional pertencente a X sendo adicionado a qualquer racional pertencente a Y a soma for um racional pertencente a Z. Essa definição é elaborada com o fito de assegurar que dois números reais tenham um único número real por soma e que as propriedades familiares da adição sejam preservadas. A multiplicação de números reais pode ser definida ao longo de linhas semelhantes.

Os números com sinal - isto é, os números reais positivos e negativos, podem ser definidos como certas espécies de conjuntos de pares ordenados de números reais. Os números complexos, por seu turno, isto é, números que têm componentes imaginários, envolvendo a raiz quadrada de menos um, podem ser definidos como certos tipos de conjuntos de pares ordenados de números com sinal.

É importante notar, em relação a essa hierarquia de números, que o número 'um', por exemplo, admite vários significados diferentes. Surge de início, como nome de um número natural (o sucessor imediato de zero). Surge de início, como nome de um número racional (um número racional é um conjunto de pares ordenados de números naturais e o número um é o conjunto que contém os pares ordenados (1, 1), (2, 2), (3, 3) e todos os inúmeros pares de números naturais ``iguais'' a estes). Surge, em seguida, como nome de um número real (um número real é um conjunto de racionais e o número real um é o conjunto de racionais e o número real um é o conjunto de todos os inúmeros racionais menores do que o racional um). É preciso distinguir o número natural um do racional um, do real um e assim por diante. O mesmo numeral é costumeiramente empregado para representar qualquer deles, mas eles são entidades matemáticas essencialmente diferentes.

Esse desenvolvimento que acabamos de esboçar , ou sugerir, visa mostrar de que modo todas as espécies mais elevadas de números e as operações que eles podemos efetuar se definem a partir dos números naturais e das operações que com estes efetuamos. Visa, ainda, elaborar essas definições de maneira a se poder deduzir as leis, a que tais espécies mais elevadas de números obedecem, de leis básicas que governam os números naturais. Foi esse desenvolvimento que levou o matemático alemão Kronecker a esta freqüentemente citada observação:

“O bom Deus criou os números inteiros; o resto é obra do homem”.

O desenvolvimento é de importância filosófica não apenas como exemplo de pensamento matemático, mas por mostrar que, se aceitarmos essas reduções, as nossas perplexidades filosóficas e as nossas preocupações a propósito dos números poderão ser concentradas exclusivamente sobre os números naturais e as suas leis, associados aos conjuntos e aos pares ordenados com as leis próprias a estes.