INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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2.4.6.2 Comte: Curso de filosofia positiva.

Comte prossegue, caracterizando cada um dos estados, de modo a concluir que os primeiros dois estados foram necessários apenas como degraus para chegar ao seu estado perfeito, o estado positivo:

 No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os fenômenos que o atingem, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, concebe os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja arbitrária intervenção explicaria todas as aparentes anomalias do universo.

 No estado metafísico, que no fundo não é mais que uma modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por si mesmas todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste então em referir para cada um a entidade correspondente.

 No estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para se dedicar apenas a descoberta, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, das suas leis efetivas, isto é, das suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então aos seus termos reais, não é mais, a partir daqui, do que a ligação que se estabelece entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais cujo número tende, com os progressos da ciência, a diminuir cada vez mais. (...)

Assim se vê, por este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual ela sempre, e cada vez mais, tendeu, nem por isso ela deixou de utilizar necessariamente, no começo e durante muitos séculos, a filosofia teológica, quer como método, quer como doutrina provisória; filosofia cujo caráter é ela ser espontânea e, por isso mesmo, a única que era possível no princípio, assim como a única que podia satisfazer os interesses do nosso espírito nos seus primeiros tempos. É agora muito fácil ver que, para passar desta filosofia provisória à filosofia definitiva, o espírito humano teve, naturalmente, que adotar, como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas metafísicas. Esta última consideração é indispensável para completar a visão geral da grande lei que indiquei.

Com efeito, concebe-se facilmente que o nosso entendimento, obrigado a percorrer degraus quase insensíveis, não podia passar bruscamente, e sem intermediários, da filosofia teológica para a filosofia positiva. A teologia e a física são profundamente incompatíveis, as suas concepções têm características tão radicalmente opostas que, antes de renunciar a umas para utilizar exclusivamente as outras, a inteligência humana teve de se servir de concepções intermédias, de características mistas, e por isso mesmo própria para realizar, gradualmente, a transição. É este o destino natural das concepções metafísicas que não têm outra utilidade real.

O pensamento de Comte, mais do que uma filosofia original, era uma filosofia que captou certo espírito do século XIX e lhe deu uma espécie de justificação. Este tipo de espírito positivista viria a conhecer uma reação extrema, anti-positivista: o romantismo e o irracionalismo, que acabariam por dar o perfil definitivo à filosofia do continente europeu do século XX. Ao passo que o positivismo exaltava a ciência, o romantismo e o irracionalismo deploravam a ciência. Ambas as idéias parecem falsas e exageradas.

As idéias de Comte são vagas e os argumentos que ele usa para as sustentar são pouco mais do que sugestões. A própria idéia de ciência que Comte apresenta está errada; não é verdade que a ciência tenha renunciado a explicar as causas mais profundas dos fenômenos, nem é verdade que na história do pensamento tenhamos assistido a uma passagem de uma fase mais abstrata para uma fase mais concreta ou positiva. Pelo contrário, a ciência apresenta um grau de abstração cada vez maior, e a própria filosofia, com as suas teorias e argumentos extremamente abstratos, conheceu no século XX um desenvolvimento como nunca antes tinha acontecido.

O positivismo defende que só a ciência pode satisfazer a nossa necessidade de conhecimento, visto que só ela parte dos fatos e aos fatos se submete para confirmar as suas verdades, tornando possível a obtenção de “noções absolutas”.

Do que dissemos decorre que o traço fundamental da filosofia positiva é considerar todos os fenômenos como sujeitos as leis naturais invariáveis, sendo o fim de todos os nossos esforços a sua descoberta precisa e a sua redução ao menor número possível, e considerando como absolutamente inacessível e vazio de sentido a procura daquilo a que se chamam as causas, sejam primeiras ou finais. É inútil insistir muito num princípio que se tornou tão familiar a todos os que estudaram, com alguma profundidade, as ciências de observação. Com efeito, todos nós sabemos que, nas nossas explicações positivas, mesmo nas mais perfeitas, não temos a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, dado que nesse caso não faríamos senão adiar a dificuldade, mas apenas de analisar com exatidão as circunstâncias da sua produção e de ligá-las umas às outras por normais relações de sucessão e similitude.

O pressuposto fundamental é, pois, o de que há uma regularidade no funcionamento da natureza, cabendo ao homem descobrir com exatidão as «leis naturais invariáveis» a que todos os fenômenos estão submetidos. Essas leis devem traduzir com todo o rigor as condições em que determinados fatos são produzidos. Para isso tem de se partir da observação dos próprios fatos e das relações que entre eles se estabelecem de modo a chegar a resultados universais e objetivos. Qualquer fato observado é o resultado necessário de causas bem precisas que é importante investigar. Até porque as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, não havendo na natureza lugar para a fantasia e o improviso, tal como, de resto, acontece com uma máquina que se comporta sempre como previsto. A isto se chama determinismo. O determinismo é, então, uma conseqüência do mecanicismo moderno e teve inúmeros defensores, entre os quais se tornou famoso Laplace (1.749-1.827).

Escreve ele:

“Devemos considerar o estado presente do universo como um efeito do seu estado anterior e daquele que se há-de seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem? uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise ? englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo; para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos”..