INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

INTRODUÇÃO A EPISTEMOLOGIA DA CIENCIA

Christian José Quintana Pinedo(CV)
Karyn Siebert Pinedo (CV)

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1.2.1 Como ler filosofia.

1.2.1.1 Os problemas.

A bibliografia filosófica é intrincada e sutil, mesmo quando se trata de textos claros e acessíveis, como os que indicaram acima. é por isso importante aprender a isolar o que é filosoficamente importante do que é apenas acessório.

Quando lemos um texto de filosofia devemos concentrar a nossa atenção sobre os seguintes aspectos:

 os problemas;

 as teorias;

 os argumentos.

Os bons filósofos costumam começar por enunciar os problemas que estão a procurar resolver nas suas obras. é o que faz Descartes, que declara logo na primeira meditação que está preocupado com o problema do fundamento do conhecimento. Nos diálogos de Platão também é costume surgir logo após o preâmbulo dramático o enunciado do problema, muitas vezes uma pergunta de Sócrates, como “O que é a piedade?”

Mas os pormenores dos problemas filosóficos são sutis e intrincados. é fácil de ver que o fundamento do conhecimento é o problema que Descartes procura resolver nas Meditações. Mas em que consiste exatamente este problema? é aqui que o conceito de “formulação” tem de ser introduzido. Quando eu andava no liceu usava-se muitas vezes a expressão “explicar pelas suas próprias palavras”. Esta é uma boa formulação do que é a formulação. A formulação de um problema filosófico, por exemplo, do problema filosófico que Descartes procura resolver nas Meditações, é enunciar esse problema de forma clara, organizada e pormenorizada - claro que a melhor forma de o fazer é no papel, mas podemos tentar fazê-lo, de forma mais informal, mesmo quando estamos a ler, ou oralmente, nas aulas e com os amigos. Quando formulamos um problema filosófico devemos estar preocupados com os seguintes aspectos:

 Qual é a sua formulação exata?

 Quais são as causas da sua existência?

 Quais são as suas conseqüências?

A formulação correta de um problema, de uma teoria ou de um argumento é o indício mais seguro de que o autor da formulação compreendeu o que está a dizer. Numa boa formulação as relações lógicas têm de se tornar claras. As suas sutilezas têm de ser cuidadosamente expostas, as suas obscuridades clarificadas, as suas ambigüidades desambiguadas. O inverso disto é a paráfrase e as citações superabundantes, ótimas para dar volume e evitar trabalho (no meu tempo chamava-se “palha” a isto). Se não percebemos muito bem uma certa passagem, o melhor é citá-la: quem nos lê ficará com a sensação que é estúpido porque não percebe algo que o autor deve ter percebido, caso contrário não teria citado.

Esta estratégia, claro, é desonesta. é preferível escrever 5 linhas claras onde se explica por que razão não se percebeu uma passagem do que encher 5 páginas obscuras onde se cita a passagem e mais 30 comentadores e outras tantas paráfrases, ocultando o fato crucial de não se ter percebido. Por vezes, a expressão clara de uma incompreensão tem valor filosófico porque essa incompreensão pode ela própria ter valor filosófico: a passagem em causa pode ser filosófica ou logicamente incongruente. Ao fazê-lo, o estudante mostra que leu com atenção crítica; ao limitar-se à paráfrase e à citação bacoca o estudante mostra que se limitou a prosseguir uma função mecânica e acrítica – o contrário do espírito crítico da filosofia.

Por causas e conseqüências não se entende, obviamente, causas e conseqüências extra-filosóficas. Por exemplo, é irrelevante que Descartes estivesse preocupado com os fundamentos do conhecimento por ter descoberto um dia que não podia ter a certeza se a sua namorada o amava de fato, ou por causa de mais uma das muitas guerras absurdas que se viviam no seio da Europa.

E é irrelevante que o problema do conhecimento tenha levado ao suicídio algum estudante mais desequilibrado do século XVI, ou que tenha provocado a queda de algum rei, ou uma qualquer convulsão social, política, econômica ou cultural. Todos estes aspectos são interessantes, cada um à sua maneira; mas não são filosoficamente interessantes.

Da mesma forma que a tinta que Mozart usou para escrever o Réquiem é irrelevante para a análise musical do Requiem, também todas as questões políticas, econômicas, culturais e sociais que rodeiam obviamente todos os filósofos são irrelevantes do ponto de vista filosófico. Estas questões são interessantes do ponto de vista bem, político, econômico, cultural e social - mas não filosófico.

As causas e as conseqüências que nos interessam enquanto estudantes de filosofia são, claro, as causas e conseqüências filosóficas. Por exemplo, depois de formularmos de forma correta o problema do conhecimento que Descartes enuncia no início da primeira meditação, podemos perguntar: que razões o levam a pensar que o problema do fundamento do conhecimento existe realmente? Não será apenas uma fantasia? Na verdade, uma das reações negativas mais comuns em relação à filosofia é o menosprezo pelos seus problemas.

Mas uma coisa é menosprezar sumariamente um problema como irrelevante ou mal formulado ou como o resultado de uma confusão conceptual; outra coisa - e isto é já um trabalho filosófico – é elaborar essa reação e mostrar que o problema X que o filósofo Y levanta resulta de um erro categorial, ou outro. Na verdade, grande parte do trabalho dos filósofos consiste em tentar mostrar que os outros filósofos cometeram esse tipo de erros (é o que acontece, por exemplo, no livro The Concept of Mind, onde Ryle procura mostrar que o conceito cartesiano de mente resulta de um erro categorial).

Perceber as causas de um problema filosófico é perceber de que depende a sua existência. Por exemplo, Wittgenstein procurou mostrar que o problema filosófico do solipsismo, levantado por Locke - e que é ainda uma conseqüência da atitude de Descartes perante o conhecimento - é uma conseqüência de uma concepção errada (no sentido forte de erro: logicamente incongruente) da linguagem. Claro que não se espera que um estudante de filosofia, ao tentar descobrir as causas dos problemas filosóficos que está a ler, tenha a mesma capacidade crítica que os filósofos altamente especializados e treinados têm. Mas têm de começar a ter alguma dessa capacidade crítica. E a melhor coisa a fazer para desenvolver uma capacidade é treiná-la pacientemente a partir de exercícios simples.

Quando procuramos as causas de um problema filosófico perguntamo-nos como é que as coisas têm de ser para que aquele problema exista e o que aconteceria se as coisas fossem ligeiramente diferentes. Não é importante, inicialmente, se é para nós claro que as coisas são de fato como têm de ser para que se levante tal problema; mas é importante perceber claramente que para se levantar tal problema as coisas têm de ser desta maneira e daquela.

Mas de que coisas se trata? Não se trata, com certeza, de dados acerca da iliteracia dos portugueses, ou da análise do trabalho dos jornalistas portugueses. Trata-se, sim, de certos aspectos da natureza da linguagem, do mundo, e dos nossos conceitos acerca destas duas coisas. Por exemplo: que conceito de conhecimento e de linguagem tem Descartes de ter para que se levante o problema do fundamento do conhecimento?

Tudo quanto disse em relação às causas se aplica às conseqüências. Neste caso, temos de nos perguntar o que somos obrigados a aceitar se aceitarmos uma certa formulação de um certo problema. Se aceitarmos, como Descartes, que existe um problema com o fundamento do conhecimento, o que se segue daí? Poderemos continuar a conceber a ciência, por exemplo, como concebíamos antes? Ou não? E a religião? Se o conhecimento precisa de fundamentos, que temos de fazer para encontrá-los? E qual será o método para fazê-lo?