ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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PREFÁCIO

Excluindo os estudos técnicos especializados, é muito pobre a literatura portuguesa sobre a Economia Política, sendo muito limitada a contribuição dos economistas, naturalmente mais motivados para se pronunciarem acerca dos fenómenos actuais inerentes ao próprio sistema capitalista ou sobre temas de organização e gestão empresarial ou administrativa. É, aliás, compreensível esta atitude face às mais diversas mensagens que permanentemente fluem perante todos nós, provindo dos mais variados quadrantes do mundo. Equacionar e debater os fenómenos económicos e financeiros, tentar dar respostas acertadas para os complexos problemas ocorridos na actualidade, representa um intenso trabalho de investigação que, sem dúvida, urge realizar e divulgar.

Tem o autor assumido a opinião de que a investigação económica não tem envolvido os sistemas, estruturas e modos de produção que ainda permanecem, se interligam e sucedem uns aos outros e que essa investigação não tem abrangido todos os povos, limitando-se apenas a debruçar-se sobre aqueles que mais intensamente participam no desenvolvimento de uma determinada época histórica. O facto de não se analisar em pormenor os modos de produção surgidos em períodos anteriores ao sistema capitalista, e que ainda coexistem na actualidade, cria dificuldades extremamente sérias aos investigadores, limita e pode dar lugar à omissão ou extracção de conclusões erradas. O estudo da ciência económica não deve abranger apenas a actividade das sociedades modernas, mas também a de todas as sociedades, mesmo daquelas que se encontram em eventual via de extinção.

Numa Comunicação que apresentei ao VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Setembro de 2004, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, numa das suas sessões temáticas, expressei a seguinte questão:

“Desde quando e onde começam a surgir actividades produtivas do homem com reflexo nas relações sociais?”

Sobre este tema desenvolvi algumas considerações que me permito transcrever:

“O conhecimento destes fenómenos, a sua observação, análise e investigação, incluem-se entre os objectivos da Ciência Económica. Quando o homem exerce uma actividade consciente e intencional, aplicando as suas capacidades físicas e intelectuais na adaptação e transformação dos recursos naturais ou na criação e utilização de meios por si criados, materiais ou imateriais, com o fim de satisfazer as suas necessidades, interesses ou desejos colectivos, poderá concluir-se que deu início a uma actividade produtiva. O homem adquire assim a sua qualidade de produtor, cria instrumentos de trabalho, exerce a sua influência sobre a natureza no sentido de satisfazer os seus objectivos. Através do processo produtivo os homens estabelecem entre si determinadas relações de natureza social, no sentido em que têm de se associar e cooperar em quaisquer circunstâncias.”

E mais adiante concluí:

“Neste Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais parece fazer todo o sentido incluir este tema, na medida em que no conjunto dos países desta área ainda se mantêm situações de modos de produção comunitários, tributários, feudais ou mercantis e subsistem economias mistas, assentes no trabalho de grupos familiares ou comunitários, a servir de fonte complementar de rendimentos e de satisfação de necessidades básicas, em paralelo com uma produção destinada aos mercados locais ou regionais onde estes produtores se apresentam a vender os seus excedentes de origem agrícola ou artesanal e a adquirir os seus instrumentos de trabalho e outras mercadorias. Parece estar fora de dúvida que esta situação, ainda actual, não pode ser ignorada pela Economia Política. As tendências liberal ou de globalização constituem no presente uma grande ameaça a estas formas de produção, pois é evidente o objectivo de as eliminar, por vezes, com o recurso a meios agressivos e violentos.”

“O surgimento de um novo sistema económico com posições dominantes em algumas regiões do globo e em momentos diferenciados no tempo, não significa que a investigação económica só tenha de existir após o seu aparecimento. À pergunta acima formulada: “ Desde quando e onde começa a surgir uma actividade produtiva do homem com reflexo nas relações sociais?”, poderemos pois responder com a premissa de que a economia deve incorporar a investigação a partir do momento em que o homem aplica as suas forças produtivas em conjunto e em constante mobilidade, daí resultando o estabelecimento de relações sociais específicas.”

Dentro deste critério escrevi um livro, a que dei o título “ECONOMIA DO SISTEMA COMUNITÁRIO – Enquanto a mercadoria e a moeda não existem”, editado em Novembro de 2002 por “Campo das Letras – Editores” e, mais tarde, em edição digital, pelo Grupo de Investigação “eumed.net”, da Universidade de Málaga, que o incluiu na sua Biblioteca de Economia, na Secção de ”Libros de economia grátis”.

Impunha-se, porém, prosseguir!

Para estudar os sistemas económicos é indispensável conhecer os recursos, as actividades, as categorias económicas, as relações e as estruturas existentes em cada um deles. Foi o que procurei analisar, com algum pormenor, no decorrer do trabalho de pesquisa que deu lugar a este livro.

No sistema comunitário, no modo de produção recolector, o homem procura obter os bens necessários à sua subsistência apropriando-se dos produtos que a natureza lhe oferece através de contínuas deslocações e da criação dos primeiros artefactos e instrumentos de trabalho, ainda que rudimentares, que utiliza em proveito colectivo, recíproco e solidário.

Com o início da domesticação e criação de animais e plantas, novos instrumentos de trabalho são criados ou aperfeiçoados, o modo de obtenção de alimentos amplia-se e as populações tendem a fixar-se em espaços próprios. O homem consegue adaptar, em certas condições, o ambiente às suas necessidades e interesses e realizar uma produção consciente, já planeada embora de forma empírica.

A produção intensiva de alimentos por iniciativa do próprio homem acaba por conduzir à rotura da partilha comunal e à alteração profunda das relações sociais existentes entre as comunidades e mesmo no seu interior. A intensificação da produção agrícola e pecuária permitiu obter excedentes em géneros, não já partilhados por toda a comunidade, que se concentraram na mão dos chefes das comunidades criando as premissas para uma apropriação coerciva e o aparecimento de desigualdades sociais. As terras aráveis, os animais e os pastos, embora permanecendo como propriedade comunal, começam a ser atribuídas a famílias inseridas na comunidade agrícola, que tendem a explorar por sua própria conta. Esta apropriação torna-se incompatível com a partilha igualitária. Nos últimos estádios do regime comunitário acentua-se a diferenciação entre as pessoas ou as famílias conforme a sua posição em relação à posse dos meios de produção e à distribuição igualitária dos bens produzidos, e assiste-se à formação duma estratificação social em fase nascente, embora ainda não institucionalizada.

Seguiu-se uma mudança, iniciada por volta do IV milénio a. C., que não foi geral e apenas ocorreu em algumas regiões onde as condições de vida eram mais propícias. Estas alterações foram tão complexas que justificam analisar e aprofundar o conjunto de factores económicos que conduziram à emergência de novos sistemas económicos e encontrar as características fundamentais das relações sociais decorrentes e das diferentes estruturas económicas da sociedade que se sucederam.

O território que alberga uma comunidade, declarado pertença dos deuses, torna-se na prática em domínio estatal, representado pelo soberano e a sua corte, chefe de tribo ou de comunidade, e partilhado pelas instituições religiosas e pela aristocracia. Estas classes dominantes apropriam-se dos excedentes produzidos por outras classes a elas subordinadas sob a forma dum tributo regular constituído por porções significativas de colheitas ou um certo número de cabeças de gado ou por prestação de trabalho obrigatório nos seus domínios. O rendimento da tributação permite às classes dominantes acumular riquezas, viver sem produzir, sustentar os seus escravos e servos, efectuar o pagamento em espécies a funcionários, guerreiros, artesãos e outros indivíduos a trabalharem directamente nos seus territórios e domínios.

A riqueza das classes dominantes não se baseava apenas na intensificação das diversas modalidades de exploração, mas também no alargamento da base territorial onde se apoderavam de novos tributos e capturavam escravos, o que originava sucessivos conflitos e guerras de conquista.

A divisão social do trabalho acentuou a necessidade da troca, primeiro directa, entre os diferentes produtores. A par duma produção destinada ao consumo e à entrega do tributo, os camponeses, os artesãos, os caçadores ou os pescadores, começam a consagrar uma parte dos bens recolhidos ou produzidos à troca, estabelecendo relações de carácter mercantil. Também a acumulação de bens na posse das classes dominantes estimulou o desenvolvimento da troca interna e externa, como forma destas classes adquirirem bens de prestígio, de luxo ou outros, fora das suas esferas de influência. Com a produção intencional de excedentes destinados à troca, nasce a mercadoria e a figura do mercador como intermediário nas trocas entre as diferentes comunidades. Os mercadores passaram a desempenhar importantes funções ligadas ao exercício do poder, ao serviço das classes dominantes.

O sistema económico pré-capitalista começa a ser caracterizado e dominado pela existência duma produção destinada especificamente à troca. Os camponeses e artesãos caem sob a dependência duma nova classe social, a dos comerciantes que figuram como intermediários na troca das mercadorias, como fornecedores de matérias-primas ou como emprestadores financeiros. O móbil dominante desta nova classe, a burguesia, é a procura dum lucro monetário tão elevado quanto possível, a acumulação de capital indispensável à obtenção de rendimentos e à formação de empresas nos diversos sectores de actividade.

Os camponeses e os artífices mais pobres são empregues como trabalhadores assalariados, o mesmo acontecendo à classe servil e, mais tarde, aos próprios escravos. A força de trabalho aparece como mercadoria, sujeita às condições do mercado, apresentando uma forma específica de excedente, a mais-valia.

A expansão da grande produção deixa de estar limitada pelo comércio e passa a ser influenciada pela quantidade do capital investido e pelo nível de desenvolvimento da produtividade. No sector agrícola surgem grandes propriedades fundiárias que permitem uma produção extensiva agrícola e pecuária. A indústria alcança uma posição dominante com a transformação gradual da actividade artesanal e a desintegração do sistema das corporações. A concentração da riqueza monetária contribui para a expansão da produção destinada à venda em grande escala nas mais diversas regiões, facilitada pelo desenvolvimento das comunicações terrestres e marítimas.

Em certas regiões do globo começam a viver comunidades mais amplas e organizadas, submetendo-se a certas disciplinas, gozando das vantagens das cidades e não limitando o seu modo de existência a uma simples sobrevivência. Aparecem os Estados centralizados, representando unidades políticas nacionais, desejosos de alargarem mercados externos através da aquisição de colónias e da supremacia terrestre e marítima. Estes fenómenos económicos, com a produção como ponto de partida, não se desenrolam de igual modo em todos os espaços territoriais ou nas mesmas épocas históricas, embora na sua evolução ocorram formas semelhantes que conduzem à definição de leis económicas.

Estes temas, sinteticamente referidos neste “Prefácio”, serão objecto duma interpretação económica, tão aprofundada quanto possível, de acordo com as descrições históricas, que nos fornecem e descrevem os factos. É uma tarefa complexa, esperando o autor que este livro possa, pelo menos, constituir um meio útil de investigação e de divulgação de conhecimento deste tema.

A existência de novos conceitos, de categorias e duma terminologia técnica que nem sempre os especialistas conseguem ultrapassar nos contactos de divulgação, cria uma impressão de esoterismo inconveniente que exige uma disposição e um esforço capaz de facilitar a sua interpretação e compreensão, sem o que fica reduzida a capacidade de os levar ao conhecimento púbico com a necessária clareza e rigor. Procurou-se redigir o texto de forma a atingir tal objectivo.