ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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1.2– TRABALHO SERVIL

A servidão e a escravatura caracterizam-se por duas semelhanças essenciais: os servos e os escravos herdam o estatuto dos seus pais e transmitem-nos aos filhos; ausência total de liberdade pessoal. Porém, tudo as distingue quando se analisam as relações de produção ou as imunidades e os direitos de que gozam uns e outros. O servo era um trabalhador adstrito ao cultivo de terra alheia, com a obrigação de pagar ao dono rendas e prestar serviços, sem poder abandonar esse cultivo. Não dispunha de si mesmo, nem dos seus bens; não era propriedade do senhor, mas ficava vinculado ao solo. Embora não sendo escravo, o servo mantém-se submetido a uma dura exploração e a uma série de obrigações de carácter social que limitam a sua liberdade de tal maneira que nem o produto do seu trabalho, nem a sua força de trabalho são objecto de troca livre.

O trabalho servil é uma obrigação imposta por uma força coerciva apoiada pelo costume, por algum procedimento jurídico ou pela força militar. A produção do servo ultrapassava a dos escravos, entre os quais não havia qualquer incentivo. Os donos dos domínios senhoriais procuravam assegurar a renda máxima possível, deixando aos servos apenas o suficiente para sobreviverem. Os meios de subsistência das famílias camponeses eram obtidos do cultivo de pequenas parcelas que lhes eram concedidas pelos senhores. O tempo de trabalho do servo decompõe-se assim em duas partes: o tempo necessário para criar o produto indispensável à sua própria existência e da sua família e o tempo adicional para criar o sobreproduto sob a forma de prestação de serviço ou renda paga em espécie ou em dinheiro.

O sistema de relações na servidão baseia-se na existência de grandes domínios agrários, pertencentes à aristocracia, que permitem aos seu donos explorar os camponeses, utilizando-os gratuitamente na sua reserva ou obrigando-os a pagar tributos em espécie ou em dinheiro. As características económicas deste processo foram idênticas em toda a parte: apropriação do domínio territorial; transformação de alguns escravos em servos; possibilidade de produzir um excedente de que os senhores se apropriam sob a forma de renda do solo; prestação duma corveia, sob a forma de trabalho no domínio senhorial, durante alguns dias da semana ou quando o senhor assim o entenda; pagamento de dízimas às instituições religiosas. Esta dinâmica insere-se num modo de produção baseado no pagamento permanente dum tributo.

Quando a renda em trabalho e em produtos se transforma em renda em dinheiro, ocorre uma mudança que altera as relações senhoriais com os camponeses que se vão tornando proprietários das suas terras, desenvolvendo aí uma produção agrícola própria com base na pequena propriedade. Esta transição era o início da tendência, que se iria verificar mais tarde, com a ordem senhorial a desintegrar-se e a enfraquecer sob vários aspectos.

Já no inicio da era cristã, nas regiões mais evoluídas, a produção só se podia desenvolver por meio de melhores instrumentos de trabalho, o que exigia maiores qualificações e mais iniciativa dos trabalhadores. À medida que a produção se tornava mais complexa e especializada, a fraca produtividade do trabalho escravo e servil convertia-se num embaraço. Tal fenómeno observava-se não apenas na agricultura mas também na actividade artesanal. A progressiva transformação do trabalhador servil em trabalhador com liberdade de movimentos, embora sujeito ao peso coercivo da posse senhorial dos meios fixos de produção e de diversos actos de pressão material, incentivava apesar de tudo o servo a esforçar-se para elevar os resultados obtidos, assumir iniciativas pessoais no processo laboral e a lutar para fugir à correspondente absorção senhorial dos excedentes obtidos, tendencialmente mais elevados.

Quando a terra que o camponês trabalhava era insuficiente para entregar ao senhor o montante da renda exigido e simultaneamente assegurar o mínimo de subsistência, o agricultor abandonava a terra a despeito dos esforços e da pressão senhorial para o ligar ao seu domínio. Os servos perseguidos nos campos pelos seus senhores migravam para as cidades onde tinham de se integrar numa comunidade diferente e organizada e de se submeterem à posição que lhes apontava a necessidade de trabalho, geralmente assalariado.

O desenvolvimento da produtividade agrária conduziu ao abrandamento ou desaparecimento dos laços de servidão típica. Os forais comunais consagravam aos moradores radicados nos concelhos a possibilidade de se libertarem das cadeias servis. Com o enfraquecimento do campesinato, os antigos servos passaram a constituir um proletariado sem terra, muitas vezes obrigados a trabalhar para os latifundiários ou indústrias locais, nominalmente com um contrato salarial livre.

No Egipto, as pessoas que trabalhavam nos domínios do rei, dos templos ou dos militares eram verdadeiros servos e não escravos. Tinham a sua habitação própria e estavam ligados à terra. Toda a produção de cereais era monopólio do Estado e o camponês devia devolver à administração central “casa do celeiro” a quantidade estipulada medida pelo agrimensor régio das zonas ceifadas. Apenas cerca de 10 % do produzido era retirado para a alimentação do cultivador e da sua família, para fazer pão e cerveja e para reserva de sementes destinadas à estação seguinte. Os camponeses estavam adstritos à terra e ainda sujeitos a corveias. Não prestavam serviço militar porque os campos tinham de ser cultivados. Os camponeses constituíam a verdadeira espinha dorsal da sociedade e da economia egípcia.

Em muitas regiões da Europa Ocidental, entre os séculos VIII e IX, a escravatura foi em parte substituída pela servidão, sendo ocupado pelos servos o nível inferior nas relações de dependência e na escala dos estatutos jurídicos e sociais. As duas formas de dependência, escravatura e servidão, puderam coexistir ou justapor-se sem nunca se designarem realidades idênticas. Por volta do século XIV, os servos tornaram-se pouco a pouco rendeiros. Aos próprios senhores pareceu ser do seu interesse dar aos servos o estatuto de trabalhadores livres e procurar uma mão-de-obra independente. Porém, os camponeses não se tornaram legalmente livres, nem mais recompensados sob o ponto de vista económico.

Na Europa Oriental, no século XVIII, ainda os camponeses se encontravam ligados à terra de forma permanente, sujeitos a uma legislação senhorial ou eclesiástica. O dono era o senhor absoluto: decidia do número de horas de trabalho, fixava os impostos, decidia dos castigos. De facto, são pouco discerníveis os limites que separavam este género de servidão duma total escravidão, o que motivava revoltas frequentes dos camponeses. Com os métodos agrícolas a manterem-se primitivos, o nível geral de produção agrícola não podia melhorar.

Na África Ocidental, nos séculos XIII a XVI, a estrutura de produção agrícola era baseada essencialmente no trabalho servil, estando os servos submetidos a uma administração directa dos estados ou das tribos e ocupados na criação do gado e no cultivo de cereais.