ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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4 – RELAÇÕES DE REPARTIÇÃO

4.1 – EXCEDENTE ECONÓMICO

Os caçadores e recolectores não tinham necessidade de produzir excedentes, salvo em situações pontuais de presumível escassez. Os povos limitavam-se a recolher aquilo que precisavam para consumo imediato ou a um prazo muito reduzido. A produção era insignificante, apenas a necessária para a manutenção da própria vida e a satisfação das necessidades mais elementares. No ano de 1964, o antropólogo Richard Lee partilhou a vida duma tribo e constatou que os seus habitantes precisavam em média de três dias por semana para assegurar a subsistência de todos os membros do grupo, mesmo englobando os que não podiam ou não desejavam trabalhar nas actividades de subsistência. Este é um exemplo de sociedade onde o tempo dedicado ao trabalho “necessário” à vida material é bastante inferior ao das sociedades de classes, onde os produtores produzem para eles e para os outros que não só não trabalham como exigem condições para simbolizar os seus estatutos e exercer as suas actividades sociais.

O desenvolvimento constante das forças produtivas elevou-se a um nível que permitiu a alguns povos atingir uma produção superior à indispensável para satisfazer as suas carências mais directas, como alimentação, vestuário ou habitação. O incremento da produtividade do trabalho tornou possível que se produzisse mais do que o indispensável para manutenção da produção necessária e a reprodução da força de trabalho. O tempo excedente permitiu o aparecimento de indivíduos não ocupados inteiramente com a produção de bens essenciais.

A produção necessária é formada pela parte do produto social criado pelos trabalhadores para a sua própria subsistência, dos seus familiares ou da sua comunidade, para a sua preparação e adestramento, e reprodução da sua força de trabalho, conforme o nível de vida atingido por uma determinada sociedade no decurso do seu desenvolvimento histórico. Uma outra parcela é indispensável reter para assegurar a substituição dos meios produtivos consumidos de forma a permitir a prossecução da actividade económica. A restante produção constitui a produção excedentária.

A essência e a forma da divisão entre produto necessário e produto excedentário são determinadas pela natureza das relações económicas dominantes. Ainda hoje existem populações consideradas incapazes de produzir um excedente. Conforme o modo de produção, o excedente produzido é destinado, uma parte a entregar à classe dominante como tributo ou mais-valia e outra a ser trocada por outros produtos ou a ser vendida no mercado.

O aumento da produção excedentária deriva dos esforços da própria sociedade, das relações entra as classes, das facilidades naturais disponíveis em cada região, natureza do solo e do clima, da produtividade do trabalho e da utilização de novas tecnologias. A civilização surge, em primeiro lugar, nas regiões onde o homem se liberta da necessidade de consagrar toda a sua energia e inteligência apenas ao problema da sua sobrevivência. Enquanto as energias dos membros duma sociedade estão empenhados apenas na busca do sustento, a exiguidade dum excedente alimentar não dá lugar à diversificação das actividades produtivas nem, portanto, ao desenvolvimento duma economia complexa que obriga a uma divisão social do trabalho.

A adopção da agricultura permitiu um excedente durável da produção alimentar e tornou possível um consumo significativo de produtos não estritamente alimentares. Esta situação levou a uma especialização da actividade produtiva e à criação de novos utensílios e instrumentos de trabalho. As colheitas mais abundantes aumentaram ainda com o crescimento demográfico.

A forma como o trabalho excedente tem sido apropriado difere nos diversos estágios da sociedade. Numa sociedade predominantemente agrícola, em que as relações sociais estão ligadas à posse da terra, o trabalho excedente tende a ser executado directamente como obrigação individual ou a tomar a forma de entrega pelo cultivador ao seu senhor dum tributo, ou seja, duma certa cota do produto em espécie. O trabalho excedente estava perfeitamente identificado e reconhecido.

Entretanto, foram-se colocando questões inerentes à posse dos bens acumulados e dos excedentes produzidos para além das necessidades imediatas dos produtores. Os produtos do trabalho não são já apenas destinados ao consumo das comunidades produtoras, mas também à apropriação coerciva pelos não produtores que vão surgindo. A intensificação da produção agrícola e pecuária, deixa de ser partilhada por toda a comunidade, permitindo a acumulação e conservação de excedentes, que se concentraram nas mãos dos chefes detentores do poder. A produção social não consumida pelos produtores é assim absorvida pelos chefes tribais e religiosos e, mais tarde, pelos soberanos, nobreza e chefes militares, o que permitiu constituir reservas que serviram para pagar os serviços daqueles que eram designados para se ocuparem da manutenção e dos interesses das classes dominantes em formação.

A apropriação do excedente assumiu modalidades específicas nos diferentes modos de organização social em que governantes reivindicam para si próprios os excedentes, sob a forma de tributo, renda, imposto, juro ou mais-valia. Ao mesmo tempo, estas modalidades representaram formas determinadas de acumulação e, portanto, do seu emprego.

Com o aparecimento das relações de dominação e exploração, o excedente encontrou as condições mais decisivas e gerais da sua realização regular. A existência dum sobreproduto regularmente obtido e a possibilidade da sua redistribuição impulsionaram a constituição duma força social antagónica e do Estado. A formação dum produto excedente de dimensão considerável permitiu que uma pequena parte das pessoas pertencentes a um grupo ou comunidade pudesse libertar-se dos trabalhos imediatos da produção, passando a concentrar as suas forças em outros ramos de actividade.

No modo de produção tributário, os excedentes serviram para acumular riquezas e para a manutenção da classe dominante e de todo aquele mundo de burocratas e artesãos que viviam e trabalhavam nos palácios e templos, sendo uma porção substancial destinada ao aprovisionamento e à aquisição de instrumentos bélicos. A dimensão dos excedentes é atestada pela grandeza das obras públicas, o consumo de artigos de luxo, por vezes transportados ao longo de distâncias consideráveis, o sustento de grupos de oficias ou servidores dos templos. Simultaneamente, esse progresso foi uma condição imprescindível ao acréscimo duma população desligada das tarefas orientadas para a obtenção de géneros alimentícios e que pôde dedicar-se a outras profissões. Os governantes forçavam as massas rurais a produzir mais do que era necessário para a satisfação das suas próprias necessidades. Sempre que os processos de trabalho necessário e excedente não correspondiam a este objectivo recorriam mesmo à coacção extra-económica, que ia da força da tradição ou da violência, para que se realizasse o processo de extracção do excedente. Por vezes, os excedentes armazenados pelos senhores eram redistribuídos. Essa redistribuição ocorria em tempos de grande carestia ou através da realização de grandes festas que consolidavam o prestígio e o poder dos soberanos face aos seus subordinados.

Na escravatura apenas a parte extremamente reduzida do dia de trabalho em que o escravo simplesmente reintegra o valor dos meios da sua subsistência, em que portanto trabalha para si próprio, representa o trabalho necessário; todo o trabalho restante apresenta-se claramente como trabalho adicional e consequentemente não pago.

Na produção mercantil, a diferença entre o valor da força de trabalho levada a custos de produção e o valor que resulta da venda das mercadorias, traduz-se na diferença entre a remuneração do trabalho necessário à produção e a quantidade de trabalho efectivamente fornecido e integrado no produto. Tal diferença revela-se na criação dum produto material de valor superior ao obtido com o produto necessário, ou seja, um sobreproduto. Este sobreproduto é utilizado para o consumo pessoal do mercador, para a ampliação da produção, acumulação de riqueza ou de capital.

O aumento da produtividade nos ramos de actividade que produzem meios de produção para o fabrico de artigos de consumo necessários à subsistência dos trabalhadores, conduz a uma redução do valor desses artigos e consequentemente à redução do valor da força de trabalho. Encurta o tempo de trabalho necessário e aumenta, à custa do mesmo, o tempo de trabalho adicional. Com este sobretrabalho, considerado trabalho não pago, intensifica-se a exploração dos trabalhadores e agudiza-se a luta de classes.

O aparecimento das cidades marca o momento em que a produtividade atingiu um nível que permitiu à sociedade utilizar os produtos excedentes para sustentar uma considerável quantidade de pessoas que não estavam directamente envolvidas no trabalho da produção mas ocupava cargos de grande importância para a sociedade: administradores, soldados, sacerdotes, artistas, intelectuais, etc.

A existência permanente de excedentes levou à criação de todo um sistema de comércio, no qual as leis reguladoras das trocas comerciais, dos valores relativos de mercado e duma economia equilibrada se revelaram completamente compreendidas e aceites. O excedente tinha de ser lançado no circuito comercial em proporções que aumentavam aos poucos em função do crescimento da produtividade e das possibilidades impostas pelos vínculos económicos. Os excedentes eram também aumentados à custa de roubos ou comércio desigual com populações vizinhas, captura de escravos, alargamento do território e consequente aumento da população, através de actos de pirataria ou da guerra, tornando-se estes elementos constantes da vida da sociedade.

O valor excedente é uma fonte de acumulação, mas deve encontrar relações estruturais definidas para poder ser acumulado. Se o excedente tiver apenas a forma material dos géneros de consumo e não é destinado ao aumento de produção e do investimento, pode considerar-se uma acumulação de riqueza mas não uma acumulação de capital.

No modo de produção capitalista, o tempo de trabalho socialmente necessário é a parte da jornada de trabalho durante a qual o trabalhador reproduz o valor da sua força de trabalho. É um tempo determinado pelas condições técnicas e organizáveis para um espaço considerado, pela preparação média dos trabalhadores, e pela intensidade média de trabalho para a época, ou seja, o tempo necessário a uma produtividade média. Este tempo necessário requer só uma parte da jornada de trabalho, constituindo a parte restante um sobretrabalho, utilizado para enriquecer as classes dominantes. Com este fim, estas classes procuram reduzir o trabalho necessário e aumentar o trabalho excedente. A grandeza do sobretrabalho é obtida pela subtracção do tempo de trabalho necessário ao dia de trabalho total.

O tempo de trabalho individual efectivo consiste no tempo que um produtor aplica na elaboração da unidade dum dado tipo de produção. Este tempo depende do nível de desenvolvimento dos meios de trabalho empregues, da forma como está organizada a produção, da qualificação dos trabalhadores, da intensidade do trabalho e doutras condições que influenciam a produtividade. O tempo de trabalho individual efectivo pode desviar-se num sentido ou noutro do tempo de trabalho socialmente necessário Quando é menor, as classes dominantes recolhem, além do lucro habitual, uma mais-valia extraordinária; quando é maior as unidades económicas sofrem perdas, não conseguem esse benefício extra e vêem-se obrigadas a melhorar a técnica de produção e, consequentemente, elevar a produtividade do trabalho. Caso contrário, arruinam-se. A contradição entre o tempo de trabalho individual e o tempo de trabalho socialmente necessário apresenta um carácter antagónico e irreconciliável.