ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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6.4 – PROPRIEDADE DA TERRA

Uma característica da terra é o facto de ser uma realidade fixa, insusceptível de ocultação ou de escamoteação, o que facilita o seu domínio e a fixação de parcelas com interesse económico. O seu domínio actua como uma primeira forma de relação económica e social. A terra é naturalmente o elemento primordial do sector agrícola, embora apareça também como elemento básico em diversas produções como, por exemplo, a extracção de minérios.

Sob o ponto de vista económico, as terras dividem-se em dois grandes tipos: um deles, é composto pelas terras virgens que constituem um objecto de trabalho fornecido directamente pela natureza; o outro, é constituído pelas terras agricultadas que foram crescendo à medida que os camponeses as iam arroteando, alargando a sua dimensão através dos séculos. Este segundo tipo de terras vai incorporando um trabalho anterior expresso na construção de obras de enxugo de pântanos, de defesa contra a erosão, de valados e socalcos, na adubação com produtos naturais, eventualmente na arborização como defesa contra as intempéries, na rotação apropriada contra o esgotamento de fertilidade, etc.

Com o desenvolvimento da agricultura, a terra quando arroteada e trabalhada torna-se usufruto da família a quem é atribuída. A propriedade familiar é uma forma autêntica de posse colectiva porque os numerosos parentes podiam pretender o exercício dum direito igual sobre a terra e os seus produtos. Este princípio tende a inflectir para uma posse mais estritamente individual, indicando já um sentido mais restrito dos direitos e da retribuição do trabalho. No entanto, era rara a apropriação privada da terra, embora fossem frequentes casos particulares como, por exemplo, a posse individual de árvores de fruto e dos pastos.

Com a formação dos primeiros Estados, a terra passou a ser considerada pertença dos deuses, ou dos soberanos que os representavam, o que na prática significava que era administrada pelos soberanos e pelos sacerdotes em nome dos deuses. O domínio exclusivo do soberano sobre as terras constituía uma forma de poder absoluto. A posse da terra estava associada ao domínio económico e político do território, o que significava a participação no poder das classes dominantes.

As terras mais férteis eram possuídas pelos reis e, em grande parte, distribuídas em grandes domínios, pelos membros da família real, pelos templos, pela nobreza, guerreiros e funcionários administrativos, grandes comerciantes, podendo ser exploradas directamente, arrendadas ou atribuídas por concessão ou doação. A forma tributária de entrega de excedentes não foi acompanhada da expropriação imediata da terra, que se mantém na posse dos domínios senhoriais ou das comunidades rurais. As parcelas próprias do soberano não desempenhavam no seu conjunto um papel de grande relevo e a sua exploração baseava-se nos mesmos princípios das restantes unidades económicas.

As terras que se destinavam à conversão em cultivo proporcionavam uma posse fácil, exercida através da pressão dirigida sobre os camponeses para que as arroteassem efectivamente com os meios usados. As terras já lavradas, produto do esforço dum trabalho humano anterior, também não criavam dificuldades à apropriação senhorial, pois as benfeitorias agrárias acumuladas ao longo dos tempos eram assimiladas, aparecendo como incorporadas nas forças da natureza. Tanto num caso como noutro, a situação da terra possibilitava um domínio total das classes senhoriais.

Um dos fenómenos característicos da opressão senhorial encontra-se nas sucessivas apropriações de terras comunais dos vários concelhos, por via de regra executadas pelos soberanos com o objectivo de as conservarem para si ou as doarem a entidades religiosas, à nobreza ou a militares. Com esta apropriação as organizações municipais perdiam rendimentos destinados a satisfazer as necessidades gerais dos agrupamentos concelhios e davam lugar à criação de zonas de conflito, à diminuição dos excedentes agrícolas no interior dos concelhos, afectando o abastecimento das populações e as transacções comerciais.

O modo de pagamento da renda em dinheiro afectou as relações pessoais, que constituíam a essência das relações senhoriais de domínio e de exploração da terra, sendo substituídas com o tempo por relações exclusivamente monetárias. Estava assim aberta a via para que a terra se tornasse uma mercadoria. A terra tornou-se, pouco a pouco, numa das mais importantes formas de propriedade privada, visto a terra ser o principal meio de produção. As formas de estrutura social e de comportamento dos grupos humanos são profundamente diferentes consoante a propriedade é colectiva da aldeia ou é repartida entre vários proprietários. A demarcação das terras tornou necessária a sua medição e, com ela, o desenvolvimento da agrimensura.

Na estrutura urbana, os camponeses tentavam manter cada família na terra dos seus antepassados. As diferenças na posse da terra acentuaram-se gradualmente e a percentagem de pessoas sem terra ou com parcelas mínimas aumentou drasticamente. Os pequenos proprietários possuíam normalmente terrenos de dimensões reduzidas e trabalhavam os seus lotes de terra com a sua própria família. Os produtores que tinham interesse na terra e na produção assumiam a responsabilidade pela sua posse. Porém, com frequência, as necessidades económicas provocaram o aumento da venda dos terrenos, que se tornou livre. Generalizou-se a expropriação de terras, com vantagem para os que emprestavam dinheiro.

A concentração da propriedade pela acção da pressão económica e latifundiária, usura ou expropriação efectiva, com o consequente desapossamento dos donos anteriores, assumiu uma das formas da acumulação primitiva. A expropriação do produtor agrícola, assim afastado de qualquer propriedade do solo, é a base de todo o processo de eliminar a capacidade produtiva individual de cada trabalhador. A grande propriedade atingiu uma estatura adulta digerindo a pequena. Muitos pequenos proprietários são substituídos por uns poucos grandes. Expulsos à força, sobrecarregados de dívidas, afectados pela crescente concorrência de fazendas equipadas com novas máquinas e métodos agrícolas que requeriam capital, acabam por entregar as suas terras a grandes agricultores ou outros proprietários de terras, por vezes, sem qualquer intenção produtiva. A inflação dos preços exerceu uma grande influência sobre o valor das propriedades fundiárias. Os proprietários inclinavam-se para as venderem, por baixo valor, à burguesia ascendente, que acabou por se tornar proprietária de muitas e extensas terras.

Na Grécia, em algumas cidades, os pequenos proprietários eram favorecidos; noutras, o capital líquido acumulado era investido em terras o que favorecia a criação de propriedades de dimensão média. A Pólis, como colectivo de cidadãos, tinha o direito de propriedade suprema da terra. Os espartanos recebiam a posse da terra, mas não a propriedade das parcelas, que voltavam à posse do Estado depois da sua morte. No território não adstrito às cidades, toda a terra era considerada propriedade do rei e dividida em duas categorias: a terra própria do rei e as terras cedidas aos templos, doadas aos favoritos e concedidas em pequenos lotes aos guerreiros como recompensa pelos seus serviços. No século II a.n.e., difundiu-se cada vez mais a aquisição da terra através da compra directa ao Estado de terras sem dono, abandonadas ou confiscadas pelo não pagamento de dívidas.

Em Roma, o imperador era o proprietário supremo da terra, podendo arbitrariamente confiscá-la ou reparti-la, situação que originava grande contestação e conflitos. Na comunidade romana, se o possuidor deixava de trabalhar o seu lote de terra, esta voltava ao fundo comunitário, podendo ser ocupada por outro cidadão. Existia assim uma combinação de posse colectiva e individual da terra. As grandes conquistas transformaram economicamente o país, até então baseado na pequena propriedade. Nos primeiros séculos da nossa era, as terras do imperador e as grandes propriedades recebidas pelos comandantes militares contribuíram para o nascimento de latifúndios, a criação extensiva de gado e a expansão da silvicultura.

Na Península Arábica, as terras eram frequentemente atribuídas a governadores e a chefes militares quando assumiam esse cargo, mas que eram recuperadas e outorgadas aos seus sucessores. Os beneficiários adquiriam o controlo das terras sob o seu domínio, mas ficavam sujeitos ao método de tributação. Estas dotações provocaram a decadência da agricultura e consequentemente o decréscimo das receitas estatais.

Durante o período otomano, os terrenos agrícolas encontravam-se divididos por três tipos com base na tributação a que estavam sujeitos: 1. terrenos cujos impostos iam para o Estado; 2. terrenos cujos impostos se destinavam a fins religiosos; 3. terrenos atribuídos aos governadores e outros altos funcionários.

Na China, I milénio a.n.e., a terra representava a base de todo o poder, riqueza e posição social. A terra pertencia teoricamente ao soberano, que usava o direito de soberania estatal sobre o território do país para distribuir grandes propriedades territoriais a membros do clã imperial, a funcionários de alto nível hierárquico, instituições estatais ou religiosas. Estas concessões serviam para a obtenção de fundos para fazer face às despesas de gestão de gabinetes governamentais e sustentação de entidades religiosas. No século V, as terras que eram propriedade do Estado estavam sujeitas a redistribuições periódicas entre determinados indivíduos durante as suas vidas adultas. Estas concessões impunham deveres aos beneficiários em termos de tributação per capita, em pagamento de impostos e prestação de trabalho. No século XVI, os principais proprietários de terras eram a família imperial, os nobres, os mandarins, os senhores de terras e os camponeses. Também possuíam terras alguns mosteiros e templos, mercadores e artesãos. As quintas imperiais eram trabalhadas segundo um sistema de locação. Duma política de encorajamento do cultivo de terras, anteriormente não cultivadas, resultou a sua transferência e a passagem de muitos agricultores à qualidade proprietários. Os latifundiários começaram a utilizar o trabalho assalariado e o sistema de arrendamento nas suas terras.

Na Índia, I milénio a.n.e., os soberanos atribuíram concessões de terras aos mosteiros, aos sacerdotes e, em alguns casos, a soldados em lugar dos salários. Já no início da era cristã, o desenvolvimento da propriedade privada de terras tornou-se um factor fundamental de suporte a novas formações sociais. A pequena propriedade explorada pelo próprio proprietário era a regra. As modalidades tradicionais da herança conduziram a uma extrema fragmentação da propriedade e à dispersão das parcelas cultivadas. A grande propriedade era rara, mas existia e pertencia em geral aos nobres e aos sacerdotes. Entretanto, assistiu-se ao emergir duma nova classe média de agricultores bem estabelecidos. Alguns deslocaram-se para os centros urbanos onde a sua riqueza acumulada foi investida em empresas comerciais.

No Norte da Europa, entre os escandinavos, o direito de propriedade derivava do trabalho da terra. O camponês que trabalhasse uma terra durante um período bastante longo via ser-lhe reconhecido o direito de propriedade, mas se a não cultivasse acabava por perder os seus direitos sobre ela. A posse da terra dependia do trabalho. Na Europa Ocidental, predominava um modo de vida agrário com a posse da terra organizada em propriedades de grandes ou pequenas dimensões, com economias fechadas, em maior ou menor grau, sobre si próprio. No século XVIII, os lavradores já integrados numa lógica capitalista começaram a pagar rendas superiores à dos rendeiros, conseguindo assim expulsá-los das suas terras, e iniciaram o sistema de cercados. Muitos destes camponeses foram assim convertidos em trabalhadores assalariados.

Na África Ocidental, faltava à aristocracia o monopólio das terras, ainda em regime de propriedade comunal. A terra pertencia em regra à família que primeiro se tinha instalado. Porém, nos férteis vales dos rios, as terras pertenciam aos detentores do poder e eram trabalhadas pelos seus cativos e tributários, a troco do dízimo sobre as colheitas. Em quase toda a África Subsariana a terra é possuída em comum. A terra é considerada como o sol ou o ar, abundante, necessária e pertencente a todos os membros da comunidade. A propriedade da terra, no sentido em que estão implícitos as vários direitos do proprietário, inclusive a venda, não existe. Embora um indivíduo possa utilizar um determinado terreno, os seus direitos e o poder de dispor dele estão limitados por outros direitos que sobre a mesma terra detêm os membros da família, do clã ou da tribo. Esta forma de propriedade tradicional resulta de haver terra em abundância e a prática duma agricultura de subsistência. Esta situação só se alterou, em algumas regiões, em consequência da conquista por outros povos ou da colonização, que se apoderou arbitrariamente da terra, ou do aparecimento dum poder central a assumir a função de distribuidor da terra.