ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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3.2 – PODER ESTATAL

O poder revela, em geral, o conjunto de relações sociais, impostas por estruturas organizadas ou por interesses pretendidos por uma parte da sociedade sobre outra. O poder condiciona a vida dos habitantes dum determinado espaço, impõe-lhes um certo tipo de coerência e de organização.

O poder estatal pode ser exercido pela influência, pela autoridade ou pela dominação. A influência é uma relação social pela qual o detentor do poder modifica o comportamento dum indivíduo ou grupo por um simples processo de comunicação. A autoridade corresponde à aptidão de se fazer obedecer quando se ordena. É um poder que se forma num sistema de relações inter-individuais de acordo com o nível de desenvolvimento do grupo e, em geral, ou é reconhecido e consentido de forma obediente, sem constrangimento, ou se manifesta sob formas mais ou menos rígidas ou contundentes. O poderio ou a dominação consiste na capacidade do detentor do poder, pessoa ou grupo, exercer sobre um grupo humano um poder tal que torne possível fazer aplicar uma decisão, obter actos ou comportamentos que não seriam adoptados espontaneamente. Essa dominação pode manifestar-se pela imposição da vontade de fazer prevalecer objectivos definidos, fazer respeitar regras, mesmo contra uma vontade contrária, por meio de submissão, com o recurso eventual a meios coercivos. A dominação, qualificada de pública, caracteriza-se por ser usada por instituições como o Estado, o exército ou a justiça.

Mesmo que a autoridade esteja ligada a uma pessoa, o poder aparece como uma instituição que existe independentemente dos indivíduos que o exercem. É no que se refere ao Estado que o poder se manifesta com maior alcance. Porém, o fenómeno do poder não é intrínseco ao Estado. Além do poder político e económico, erguem-se outros poderes como o poder religioso, o poder ideológico, o poder familiar e, numa escala mais restrita, em todas as organizações sociais ou económicas, como feudos, corporações, comunidades locais, tribos, concelhos, províncias, estados vassalos ou colonizados.

No interior duma sociedade comunitária as decisões que determinam a actividade dos seus membros são atribuídas ao líder, indivíduo ou grupo, a quem reconhecem ou são forçados a aceitar o direito de as assumir. O exercício do poder não implica forçosamente o consenso, mesmo se este é procurado. Numa primeira fase, o governante não era o representante de Deus na terra mas, pelo contrário, representava o povo perante os deuses. Os chefes continuaram por bastante tempo como lideres comunitários que tinham a obrigação de cuidar de todos os membros da comunidade e de se conformarem com as forças da tradição e da religião que lhes eram impostas.

A concepção senhorial da actividade política tinha por finalidade aparente assegurar o bem comum, a sua razão de ser, pacificamente aceite e proclamada pelo entendimento colectivo, e ao soberano competia promover, assegurar e defender toda a ordem económico-social e, além disso, manter a ordem hierárquica. O conceito de soberania nunca deixou de ser o instrumento teórico para estabelecer uma distinção hierárquica entre o poder concentrado na pessoa do soberano e os outros poderes políticos. O poder soberano desenvolve-se, como outras instituições sociais, no decurso do desenvolvimento histórico do Estado. A apresentação da essência do poder político como abstracta ou suprema na sua origem pretendeu conferir-lhe uma legitimidade que justificasse o seu carácter absoluto.

Os governantes, em estreita aliança com os sacerdotes, concentravam todo o poder político e económico nas suas mãos. Contribuíam para esta situação os mitos que colocavam os sacerdotes como intermediários entre os deuses e o povo e os governantes como sendo os representantes dos deuses na terra ou mesmo como sendo eles próprios deuses encarnados. O rei podia ser o principal sacerdote, mas qualquer que fosse a sua função, estava rodeado duma ordem regular de ministros do culto, não se distinguindo a autoridade laica da religiosa. A origem divina do poder justificava a consciência política senhorial na sua base ideológica fundamental decorrente da aceitação da ordem reinante eterna, imóvel e absoluta. O poder dos governantes assentava na sua força militar e era exercido com a ajuda de funcionários civis ou religiosos. Os reis, os sacerdotes e os seus colaboradores directos eram responsáveis tanto pelas relações pacíficas como pelas guerras de conquista para obter matérias-primas ou objectos preciosos para engrandecer o seu prestígio pessoal.

Entretanto, tomou forma a via do poder real sem qualquer limitação proveniente de regras previamente estabelecidas. O poder soberano á atribuído a um indivíduo ainda que possa, em circunstâncias excepcionais e por pouco tempo, assumir-se como poder de natureza colectiva. Com frequência, um líder militar vitorioso, apoiado por uma eventual assembleia restrita, apoderava-se do poder mesmo contra a vontade do Conselho dos Anciãos e outros membros da classe governante. A monarquia torna-se a forma mais característica do Estado, com algumas excepções. O princípio da monarquia hereditária foi estabelecido com grande dificuldade. Em alguns estados, surge o monarca dum corpo governante electivo.

Na estrutura política da sociedade pré-capitalista, o poder mantém-se afastado da intervenção colectiva e directa da população; ganha forma o culto do chefe absoluto, com atribuição de direitos, deveres e funções que se reflectem no domínio de espaços físicos e de pessoas, dos serviços, na apropriação de meios de produção e na distribuição dos bens produzidos.

A riqueza identifica-se com o poder económico e político, que mantém entre si uma ligação indissolúvel. A autoridade central forçou as massas camponesas a produzir excedentes destinados às classes dirigentes e a grande maioria dos artesãos a trabalhar para eles e para os sacerdotes. Só uma autoridade forte poderia levar à prática grandes obras como a irrigação, a drenagem e a fortificação, ou organizar a construção de monumentos de prestígio que não traziam benefícios económicos directos. O poder dos senhores existia na origem em função da capacidade de apropriação dum importante excedente no interior do domínio senhorial. Residia em função da sua capacidade para se apropriar dum tributo ou renda importante, que tendia a ser maior nas regiões em que a agricultura de irrigação permitia uma maior produtividade agrícola.

Os agregados constituídos por templos e palácios, além das atribuições políticas e religiosas, concentravam em si um significativo poder económico sob a forma de grandes extensões de terra cultivada, água abundante, mão-de-obra dependente para a produção agrícola e artesanal, artífices especializados e mercadores responsáveis pelo comércio longínquo de matérias-primas. Desempenhavam um importante papel na economia dos países, ocupando a principal posição na esfera da circulação do dinheiro.

Além destas instituições, também algumas famílias extensas ou grupos familiares formavam importantes conjuntos de grandes proprietários de terrenos capazes de acumular riquezas e exercer um poder que se evidenciava no âmbito político. Através do domínio comercial, os governantes confiavam na estabilidade da sua posição económica. No I milénio d. C., em muitos países, a economia era dirigida por agentes privados e por alguns templos, não desempenhando os bens reais um papel importante na economia como um todo, ao contrário de que acontecia em períodos mais recuados.

Num sistema estatal centralizado, o poder controlava e definia as políticas monetárias e a economia. A concentração do poder económico nas mãos dos soberanos dos grandes Estados foi um estímulo para a unificação em blocos únicos, para o desenvolvimento económico e para o estabelecimento de redes monetárias, que favoreceu o advento do modo de produção capitalista.

A partir de meados do século XV, verificou-se o aparecimento de novas formas de organização do poder político que se destacam pela sua concentração, pela tendência para monopolizar o poder militar, pela construção de aparelhos burocráticos legitimados. Reacende-se ainda a tentativa de consolidação dum sistema ao serviço da ideia da origem divina do poder.

No século XVI, a necessidade duma transição na capacidade de governar foi abordada a partir de três ângulos diferentes: um primeiro lugar, o governo era concebido como a expressão do código moral que justificava em pleno a incondicional obediência ao poder instituído; em segundo lugar, o governo era encarado como uma forma de intervenção em todos os aspectos da vida quotidiana, incluindo os económicos; em terceiro lugar, a posição do governo enquanto entidade económica e política implicava a necessidade de reunir elementos informativos indispensáveis à governação. Os novos conceitos, que principiaram a surgir, definiam aquilo que era visto como o governo ideal, ou seja, a monarquia absoluta e a organização a que o sistema deveria estar submetido. Estes conceitos trouxeram à tona o confronto entre dois poderes totalitários: o do Estado e o da Igreja. Os Estados mais esclarecidos não toleravam interferências por parte da Igreja nos seus assuntos políticos, não aceitando igualmente a sua independência em relação à autoridade secular exercida pelo monarca. Uma das características mais típicas foi o controlo cada vez maior do Estado sobre a vida económica.

No Egipto, III milénio a.C., os faraós consideravam-se donos da terra e dos seus habitantes, recebiam os rendimentos por intermédio da sua administração, devendo, em contrapartida, assegurar o emprego e meios de subsistência aos seus súbditos. O fortalecimento do Estado passava por uma boa gestão e uma boa execução da função real. Como chefe religioso o faraó, detinha um poder supremo e era o responsável pela ordem, equilíbrio, harmonia e justiça no país. Nas suas mãos estava concentrado um enorme poder, cuja base material era a posse dos grandes recursos em terras, dos produtos alimentares e da força de trabalho.

Na Grécia, século III, foi criado um sistema de administração das propriedades de Estado e um aparelho militar, administrativo, financeiro e judicial. Foram ainda definidas as relações das cidades e dos templos com a administração real.

Em Roma, século IV, o imperador era assistido por um gabinete ministerial constituído por um mestre de corte, polícia e serviços secretos, um chefe do supremo tribunal, um ministro de finanças, um encarregado dos bens privados do imperador e um grande chanceler. O direito romano interessava aos governantes por que destacava o poder dos soberanos.

Na Índia, já na nossa era, a tendência dos estados regionais para substituir os centrais não se deu por simples fragmentação dos antigos impérios, mas antes a partir de fontes locais de poder, que constituíam centros duma maior autoridade do que a dos seus predecessores. Aprofundou-se o controlo das classes superiores sobre a população.

Na China, no século XVI, os que possuíam riqueza ou terras não eram necessariamente governantes políticos. O país era governado por funcionários públicos administrativos ao serviço do imperador. A duração do período de serviço era limitada e, só por excepção, hereditária. Em teoria, qualquer um, independentemente da sua posição social, podia tornar-se um mandarim. O imperador governava o império com o “Mandato do Céu”, o que significava o seu governo sobre os povos como sendo uma vontade celestial. Todo o poder do Estado centrava-se no imperador. Um Conselho, que tinha um poder imenso, formava o núcleo da máquina administrativa que apoiava o imperador na gestão de assuntos de Estado

Na Europa Ocidental, século XVI, a intervenção do Estado traduziu-se, no campo industrial, no estabelecimento de manufacturas e fábricas protegidas ou dirigidas. Estes estabelecimentos correspondiam à necessidade de fornecimento de abastecimentos e produtos necessários para a sua política militar e naval. Apesar dos esforços empreendidos e da sua significativa expansão em toda a Europa, no século XVIII, os estabelecimentos industriais fundados pelos governos e conhecidos pela designação genérica de Fábricas Reais iriam revelar-se menos importantes para o futuro da indústria europeia. Os motivos poderão situar-se na produção exclusiva de bens essenciais para o Estado ou em alguma limitação resultante da dependência da realeza em relação aos interesses variáveis dos financiadores oficiais.

Na África Ocidental, a aristocracia política surgiu com a fundação dos estados nascidos dos clãs dominantes, detentores de poder, riquezas e influência. Com a instituição duma nova sociedade diferenciada e hierarquizada, as relações sociais passaram a reger-se por normas objectivas, subordinadas a uma rígida autoridade. Despontaram formas de poder de tipo estatal que se impuseram nas diferentes sociedades e regiões. Um conselho régio prestava orientação ao rei e numerosos dignitários chefiam os departamentos administrativos. Em conclusão, existiram, com níveis variáveis de êxito, todas as formas de poder estatal, desde a patriarcal à democracia municipal.

Na África Equatorial, século XVI, o poder real não se fundamentava em qualquer tipo de posse, mas na capacidade de mobilizar e manipular as forças sobrenaturais. Por definição, o rei detinha poderes sobrenaturais e extraordinários e, por conseguinte, podia superiorizar-se a qualquer outra pessoa. O seu poder era essencialmente religioso e não podia ser contestado. Acreditava-se que o rei era o protector do povo, fazedor de chuva e garante da fertilidade. A natureza sagrada da realeza estava associada com o domínio tecnológico, acreditando-se ser o rei a fonte de todas as invenções. Nos reinos da costa oeste do Congo e Angola, por exemplo, o rei era o mais sabedor dos ferreiros e conhecido como o “rei ferreiro”.

Entre os astecas e os incas, o vértice do poder era um soberano com poderes autocráticos. Os cargos de governadores de província, com poderes administrativos de nível superior, eram preenchidos por homens pertencentes à nobreza. Na região central dos Andes, um salto qualitativo e quantitativo transformou uma federação de reinos, relativamente desunidos, num Estado integral. O crescimento da classe governante implicou o aumento de impostos e levou a uma divergência de interesses.