ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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5.3 – FORMAÇÃO DO SISTEMA CAPITALISTA

O início do período capitalista tem de ser situado quando ocorrem mudanças no modo de produção no sentido duma subordinação dos produtores aos capitalistas. O processo de produção altera-se quando o capital individual ou empresarial emprega simultaneamente uma superior quantidade de trabalhadores assalariados, amplia a sua capacidade e fornece o produto numa superior escala quantitativa.

A produção não se limita a dar seguimento às encomendas, mas antecipa a procura. A expansão da grande produção deixa de estar limitada apenas pelas solicitações do comércio e passa a estar influenciada também pela quantidade do capital investido e pelo nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho. O motivo determinante da produção e o seu objectivo directo é a obtenção de mais-valia. O interesse em ampliar o volume das transacções monetárias, que permite conseguir lucros mais elevados, manifesta-se através das restrições à produção familiar, à troca directa e ao auto-consumo.

Com o capitalismo surge a tendência para consumir bens em quantidade superior à necessária, vulgarmente denominada “consumismo”. Trata-se duma uma atitude comportamental que conduz ao exagero do consumo com o objectivo de proporcionar maiores lucros às empresas. Por sua vez, revela-se no mesmo sistema uma situação inversa, que consiste na destruição intencional de imensas quantidades de produtos sobretudo agrícolas para impedir a baixa de preços. Tanto num caso como noutro o objectivo não é o bem-estar do consumidor mas a manutenção ou obtenção de maiores lucros.

A libertação dos vínculos de servidão para com os senhores feudais, levou os servos a alugarem a sua força de trabalho a camadas de burguesia rural e urbana, à indústria artesanal e à navegação. Durante longo tempo, a maioria dos trabalhadores mantinha as marcas do período anterior, tanto nos seus hábitos como nos seus interesses, a natureza da relação de emprego e as circunstâncias da sua exploração. A sobrevivência das tradições artesanais e a heterogeneidade duma força de trabalho ainda inadaptada constituíram um obstáculo à formação duma consciência de classe, o que favoreceu o domínio do capital sobre o trabalho. As formas mais brutais de exploração foram postas em prática através do prolongamento de horas de trabalho pesado, do emprego de mulheres e crianças, dos descontos arbitrários, pagamento em géneros, criação de condições de endividamento, total desprezo pela saúde e segurança no trabalho.

A percentagem da força de trabalho empregue na indústria e nos serviços registou um crescimento constante, atingindo cerca dum um terço na Europa Ocidental e, eventualmente, mesmo metade na Inglaterra. No trabalho assalariado, os indivíduos, embora livres na sua pessoa, para viverem têm de vender a sua própria força de trabalho, assim transformada em mercadoria. O trabalhador acha-se divorciado dos seus meios de produção e da possibilidade de providenciar a sua própria subsistência. A sua relação com o proprietário dos meios de produção passa a ser puramente contratual.

Com o capitalismo é a própria capacidade de trabalho que se torna mercadoria, que se compra e vende como qualquer objecto de troca. É com o aparecimento do mercado da força de trabalho que se instaura verdadeiramente a produção capitalista. As transformações económicas, operadas entre os séculos XVI e XVIII, acabaram por transformar também em meros assalariados os pequenos produtores artesãos das cidades, originando o aparecimento duma cultura de proletariado que encontra a sua expressão ideológica no marxismo.

Com o advento do processo económico capitalista, o salário tornou-se a forma predominante de remuneração do trabalho e das relações entre capitalistas e trabalhadores. O pagamento em forma de salário respeita apenas a uma parte da jornada que reproduz o equivalente da força de trabalho. A parte restante da jornada de trabalho corresponde à mais-valia criada pelos trabalhadores e que não é paga pelos capitalistas.

A diferença entre o valor e o preço da força de trabalho constitui a fonte essencial do lucro capitalista. O salário traduz a expressão monetária do valor da força de trabalho vendida pelo trabalhador ao capitalista.

As relações agrárias no modo de produção capitalista pressupõem a existência de três entidades: o proprietário que arrenda a sua terra contra o pagamento duma determinada quantia; o arrendatário capitalista que na sua qualidade de empresário detém o uso fruto da terra pagando uma renda ao proprietário; o trabalhador assalariado que vende a sua força de trabalho ao arrendatário. A renda do solo caracteriza assim por relações entre três classes. A mais-valia criada pelo trabalhador assalariado é apropriada directamente pelo arrendatário, sob a forma de lucro sobre o capital investido, e uma parte desta mais-valia é cedida ao rendeiro.

Na Europa Ocidental, século XVIII, os rendimentos provenientes da terra sofreram um aumento espantoso, subindo ainda mais rapidamente que o preço dos produtos agrícolas. O mesmo aconteceu com os lucros comerciais e industriais, em consequência do acréscimo da procura, da quantidade abundante de dinheiro em circulação proveniente duma intensa acumulação de capital. Os grandes proprietários agrícolas foram os principais beneficiados por estes aumentos, apesar dos elevados lucros gerados pelo comércio colonial e pelo fabrico intenso de produtos acabados.

O imposto deixa de ter o carácter dum tributo como rendimento do poder senhorial para adquirir o aspecto indiferenciado duma receita administrativa. A fiscalização dos rendimentos do Estado implica a distinção entre “público” e “privado”.

O juro está relacionado com a acumulação e entesouramento do capital, podendo ser obtido através de empréstimos directos ou do depósito em bancos ou outras instituições financeiras, que por sua vez, o mobilizam através da concessão de crédito ou outras aplicações de natureza financeira.

Os lucros provenientes do comércio internacional de bens apenas ao alcance das classes dominantes propiciaram, a par das riquezas, a primeira grande acumulação de capitais na Europa. O comércio externo e a exploração colonial proporcionaram a acumulação de lucros fabulosos à burguesia mercantil.

O sistema de regulamentação do mercado e de monopólio urbano, fixado pelos governos das cidades ou pelo Estado, permite o uso da mobilidade dos preços como meio de conceder vantagens especiais aos grupos de negociantes cujo ganho consiste numa margem entre os preços porque podem adquirir as mercadorias aos camponeses, aos artesãos ou aos importadores de mercadorias de origem colonial e os preços pelos quais podem vender ao consumidor urbano ou ao estrangeiro.

A alta geral de preços, que se inicia na Europa, em meados do século XV, combinada com a baixa geral dos salários reais através da diminuição do poder aquisitivo da moeda, produziu imediatos e graves efeitos sociais que se manifestaram nos diversos países. A subida de preços favorecia os devedores e prejudicava os credores. Os proprietários da terra, que cobravam rendas em dinheiro, viram seriamente diminuídos os seus rendimentos e inclinaram-se para a revisão dos contratos rurais, o que deu origem a um período de tensão social nos campos. No movimento alongado dos preços manifesta-se uma fase altista, muito claramente marcada, que assenta num nível estabilizado e até depressivo. As conjecturas dos economistas contemporâneos deram lugar à explanação da teoria quantitativa da moeda.

A revolução dos preços, registada no século seguinte, gerou a inflação dos lucros e exerceu uma influência poderosa na transição para o capitalismo, embora os seus efeitos se revelassem longe de serem uniformes. Na Europa, vários factores provocaram uma diminuição do valor dos metais preciosos e, em parte, uma inflação dos preços. Entre essas causas estão a melhoria do trabalho nas minas, a importação de ouro de África, a descoberta dum processo, procedente da América, de produção de prata, a corrida a novas minas de ouro, entretanto descobertas. Os preços de alguns artigos de primeira necessidade triplicaram. Estes aumentos não resultaram apenas da abundância de metais preciosos, mas também das manobras dos governos com a degradação da moeda. No século XVIII, os movimentos de preços revelam uma duração, continuidade e universalidade sustentadas. Os preços agrícolas viriam a ser os que sofreram aumentos particularmente acentuados. Por exemplo, 250% num período de dez anos. Os preços industriais revelaram também uma tendência constante para o aumento, embora duma forma mais lenta. Este fenómeno afectaria de forma idêntica as matérias-primas, os combustíveis, os produtos transformados e, bem assim, os produtos provenientes das colónias.

O que interessa ao capitalista é apenas a mais-valia contida e realizável na venda da mercadoria e não o seu valor absoluto. A mais-valia é repartida entre os capitalistas industriais e comerciais, sob a forma de lucro, entre os capitalistas financeiros, sob a forma de juro, e entre os proprietários fundiários, sob a forma de renda. A mais-valia transformada em capital divide-se em capital constante e capital variável, em meios de produção e força de trabalho. Uma parte da mais-valia é consumida pelo capitalista como benefício próprio, outra é entesourada ou acumulada como capital. A proporção em que esta divisão se efectua determina a magnitude da acumulação.

Com o fim de ampliar a produção e obter maiores lucros, os capitalistas utilizam não só o seu próprio capital mas também capital de empréstimo que obtém de outros capitalistas que dispõem de excedentes monetários, contra a entrega de parte do lucro aos prestamistas, sob a forma de juros. Esta divisão dos lucros origina algumas contradições entre os interesses dos que emprestam o dinheiro e os que o empregam, porque quanto maior é o juro tanto menor é o lucro líquido do empresário e vice-versa. Porém, apesar desta contradição, os dois grupos estão interessados no aumento da mais-valia, isto é, no agravamento da exploração da classe trabalhadora. A taxa de juro acaba por ser influenciada pela correlação entre a oferta e a procura de capitais de empréstimo no mercado monetário.

Os meios de produção e o uso sistemático do dinheiro funcionam como capital e como meio de o valorizar. A possibilidade da sua acumulação e a necessidade do seu investimento produtivo inscrevem-se na própria lógica do modo de produção capitalista. O objectivo determinante é a maior realização possível de mais-valia e, consequentemente, a maior valorização do capital através da exploração do trabalho assalariado.

O desenvolvimento da produção capitalista impõe a necessidade dum acréscimo permanente do capital investido nas empresas. Por sua vez, a concorrência entre os capitalistas coage-os a conservar uma parte do capital por intermédio duma acumulação progressiva. Um papel essencial é atribuído ao esforço feito para acumular cada vez mais dinheiro, necessário a um nível mais elevado a novos investimentos, à expansão das empresas, bem como à satisfação das necessidades materiais fundamentais.

Ao nível de posse e ocupação das terras verificou-se um conjunto de profundas alterações nos domínios senhoriais, com a propriedade da terra a degradar-se como forma de riqueza, a aristocracia a perder a sua posição dominante e a burguesia a adquirir muitas dessas terras. A produção baseia-se na propriedade extensiva da terra, sem limites comunitários, na expropriação dos meios de produção e dos produtos do trabalho, sob a forma de mercadorias.

Com o surgir do modo de produção capitalista e a criação de empresas industriais, ocorre uma mudança radical na propriedade dos meios de produção. Estes passam a pertencer exclusivamente aos capitalistas individuais ou às empresas, ficando os trabalhadores reduzidos à posse da sua força de trabalho que tinham de vender na qualidade de trabalhadores assalariados.

O antagonismo entre as classes resulta do aparecimento duma pequena parte da sociedade a concentrar em si a propriedade de todos os meios de produção e a formação consequente duma classe desprovida de quaisquer meios de trabalho, sujeita à venda da sua própria força de trabalho como única fonte de subsistência.

A organização da sociedade dividida em classes antagónicas, já existente nos sistemas pré-capitalistas, alcança o seu maior desenvolvimento no capitalismo. Uma diferença social muito nítida pode separar frequentemente os proprietários agrícolas, da fábrica, do estabelecimento comercial ou do banco, dos que trabalham para eles.

Assiste-se ao aparecimento duma burguesia rural a consolidar e ampliar as suas propriedades e a pagar aos trabalhadores rurais em moeda, à formação duma burguesia urbana representada pelos mercadores, comerciantes e armadores de navios, estes nas cidades portuárias. O aparecimento duma classe puramente mercantil não terá por si só significado revolucionário, mas sim as transformações ocorridas nas diversas classes produtoras. A instalação do capitalismo como sistema dominante na Europa só ocorreu quando a burguesia assumiu o poder e concretizou o enquadramento político e jurídico que lhe permitiu aplicar na produção os capitais acumulados e a mão-de-obra assalariada disponível, desenvolvendo assim a indústria à margem de obstáculos institucionais.

Na Europa Ocidental, o crescimento demográfico constituiu um factor de maior procura e de uma maior oferta de força de trabalho. Este crescimento proporcionou uma expansão da agricultura indispensável para alimentar as populações urbanas. Neste período de expansão urbana e de implantação da indústria, as transferências de mão-de-obra fragilizaram o equilíbrio demográfico tradicional entre o campo e as cidades. A colonização teve consequências acentuadas em todos os continentes: populações europeias deslocaram-se para Ásia, África e América; alguns milhões de escravos foram deslocados de África para a América; numerosas populações ameríndias foram vítimas de genocídio e epidemias.

Estas transformações ultrapassam os países onde o capitalismo se tornou dominante. O desenvolvimento do mercado mundial e o processo expansionista, colocaram o capitalismo a agir indirectamente sobre os países com modos de produção pré-capitalista, através do desenvolvimento das trocas ou directamente por meio do controlo das riquezas locais e da subordinação. Com a expansão crescente do colonialismo assistiu-se a uma nova redistribuição da riqueza mundial. O comércio colonial, graças à imposição de transacções em termos desiguais e ao tráfico de escravos, constituiu um excelente instrumento de acumulação de capital.

A Europa, século XVI, com as suas colónias, viu nascer uma nova economia que diferia consideravelmente das sociedades com predomínio camponês, comum até então em todas as culturas. É de salientar três particularidades: a importância crescente das cidades, a intensificação das trocas entre todos os continentes e uma tendência crescente de utilização dos conhecimentos científicos e tecnológicos na indústria, comércio e agricultura.

A multiplicação dos meios de pagamento acompanhada pela flutuação dos preços em concordância com os objectivos lucrativos, foram factores que contribuíram para a expansão económica.

A movimentação do capital permite o investimento de fundos, não só em terras ou em imóveis, mas também a constituição de depósitos bancários, a progressão do crédito e à subscrição de empréstimos de estados. O investimento de capitais acumulados, com novos ganhos à vista, torna-se uma característica da economia mundial muito mais divulgada que anteriormente.

No século XIV, os investidores procuraram novos capitais a serem reinvestidos no imobiliário, comércio e indústria. Estas combinações de colocações provocaram frutuosas relações entre financeiros, proprietários de terrenos, mercadores e fabricantes. A grande circulação de metais preciosos e a activação das trocas mercantis lançaram as bases das primeiras formas de capital financeiro.

À acumulação de fundos monetários provenientes tanto do comércio interno como do comércio externo, tem de adicionar-se os lucros provenientes da actividade agro-pecuária e dos empréstimos públicos internos que os particulares absorviam. A possibilidade de investimento financeiro converteu as grandes firmas, antes dedicadas ao comércio de mercadorias, em verdadeiros potentados capitalistas.

A formação de grandes mercados de capitais permitiu o desenvolvimento da especulação. Constituem-se bolsas, nomeadamente em Antuérpia, e recorre-se a operações especulativas.