ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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2.5 – ESTRUTURA ESCRAVISTA

A importância do papel desempenhado pela escravatura nas diferentes sociedades variou consideravelmente ao longo dos tempos. Em determinadas épocas históricas e regiões apareceram indivíduos escravizados que participavam nas actividades produtivas ou domésticas dos seus donos, mas em que a produção social não assentava de forma intensa ou predominante no trabalho escravo.

Só se pode considerar a existência duma estrutura escravista quando em determinadas comunidades, países, eras ou em certas actividades produtivas, a força do trabalho escravo desempenha um papel dominante. Tal estrutura desenvolve-se gradualmente, a partir duma fase já avançada da economia, caracterizada pela intensificação da agricultura e da indústria, o aumento da população e das necessidades inerentes, pelo alargamento da propriedade privada dos meios de produção e do intercâmbio externo tanto proveniente da guerra como do comércio.

A utilização da escravatura assumia normalmente duas formas: na primeira, os escravos eram adquiridos individualmente pelo dono que fazia deles aquilo que muito bem entendia, considerados bens móveis que podiam ser comprados, vendidos ou hipotecados; na segunda forma, era todo um povo que se via reduzido a uma situação de dependência de rigor variável. Neste caso, os escravos eram inicialmente propriedade do Estado, que podia colocá-los à disposição dos cidadãos. Estes escravos desempenharam um papel muito importante na agricultura, na produção artesanal de objectos utilitários e nas actividades de serviços, onde representavam uma elevada percentagem da força de trabalho.

O escravismo como estrutura desenvolveu-se, num primeiro período, no mundo mediterrâneo e durou, embora com algumas mudanças, até ao fim do Império Romano. Embora dispondo de dados escassos, é de admitir a existência, em algumas regiões do Mediterrâneo, dum número de escravos superior ao de homens livres. Na sua maioria eram de origem estrangeira, capturados em ataques rápidos ou fornecidos por mercadores que os tinham comprado à aristocracia tribal. Nos reinos do Mundo Egeu, no II milénio a.n.e., estavam ao serviço dos palácios alguns milhares de escravos ocupados como artífices de bronze, no domínio dos têxteis e produção de vestuário, na moagem e em tarefas domésticas. As sociedades mediterrâneas grega e romana puderam basear a sua economia na escravatura com escravos oriundos da periferia com experiência de vida agrícola, pastorícia, artes oficinais, como a olaria, exploração de minério, produção de sal e mesmo mineração de ouro. Um dos resultados deste período de escravatura foi a mistura de povos de várias origens étnicas, com os grupos sociais mais baixos e mesmo com elites. Os escravos constituíram então a fonte de mão-de-obra mais importante dos países do Mediterrâneo.

Em meados do I milénio a.n.e., a escravatura foi um elemento importante do sistema social grego. O período da sua formação foi caracterizado pelo início da ampla difusão na Grécia dum tipo de escravo inteiramente privado de instrumentos e meios de trabalho, sendo ele próprio considerado um “instrumento falante”, pertencente inteiramente ao seu dono. A quantidade não pára de crescer e os escravos tornam-se um dos principais elementos da estrutura social. As guerras contribuíram para uma ampla difusão da escravatura e a introdução dos escravos em todas as esferas da actividade económica. Os habitantes do Estado de Esparta, que dispunham de todos os seus direitos, não se ocupavam de nada que fosse trabalho produtivo, o qual se baseava apenas na massa da população escravizada. As “pólis” de Atenas contavam com dois terços de escravos entre o seu número total de habitantes. Era considerado degradante uma pessoa livre trabalhar para outra. A antítese entre a liberdade e a escravidão era particularmente marcante.

Em Roma, nos finais do I milénio a.n.e., desenvolveu-se o modo de produção escravista, atingindo o cume do seu florescimento nesta primeira fase. Escravos e proprietários de escravos tornaram-se as principais classes antagónicas da sociedade romana. No Império Romano, os povos conquistados foram escravizados completando a base da sociedade romana. Para garantir o seu poder sócio-económico os romanos tiveram de conquistar um território após outro, transformado em província, escravizando dezenas de milhares dos seus habitantes de forma a garantir o seu próprio desenvolvimento económico e mesmo social, bem como o seu modo de vida. As corporações das grandes indústrias independentes ou monopolistas empregavam muitas vezes escravos ou praticavam o sistema de trabalho em cativeiro. No último século do Império, as tensões sociais resultantes de tal sistema de exploração humana tornaram-se explosivas e, no primeiro século da nossa era, o Império tremeu sob a ameaça de constantes revoltas de escravos.

Na China, no início da nossa era, a quantidade de escravos do Estado tornou-se enorme, sendo enviados às centenas de milhares para as campanhas militares, para as grandes obras, como por exemplo a Grande Muralha, construção de infra-estruturas, minas e oficinas de fundição de ferro, indústrias transformadoras, etc. A escravatura constituía a base da produção na industria e era utilizada em toda a parte na agricultura. Porém, o trabalho escravo como base da produção agrícola tornou-se cada vez menos habitual, talvez devido à sua ineficácia e despesa, sendo suplantada pela servidão com terra ou sem terra.

No século XVI, a escravatura ressurge, sob uma nova forma mais avançada, com a exploração de grandes plantações agrícolas, a exploração mineira, o despontar de indústrias de grande dimensão, o desenvolvimento dos transportes e a exploração intensiva dos novos territórios alcançados através da navegação marítima. As funções dos escravos eram múltiplas: os escravos asseguravam as funções de produção e até as militares; a expansão do urbanismo, a ocupar escravos em trabalhos domésticos; os escravos eram utilizados de forma massiva nas construções monumentais ou nas grandes explorações agrícolas; embora duma forma mais limitada, eram aproveitados pelos comerciantes, pelos agricultores e pelas corporações de artesãos.

Na China, no século XVI, nas quintas imperiais, era inicialmente utilizada a mão-de-obra escrava. Os escravos trabalhavam sob a supervisão de capatazes, tendo de fornecer à família imperial cereais, vegetais e fruta, ou então pagar o seu equivalente em prata. Gradualmente a escravatura foi substituída pelo sistema de partilha de colheitas. Os escravos libertos tornavam-se agricultores, arrendando as terras imperiais. No século XVIII, o governo chinês acabou por aplicar uma lei que permitia a alguns escravos tornarem-se “gente vulgar”, diminuindo o número de escravos.

No Continente Americano, o colonialismo elevou à mais alta escala o processo da escravatura levada a cabo pela emigração forçada. A partir de meados do século XV, o litoral africano começou a ser assolado por caçadores europeus de escravos. Estes eram retirados das suas comunidades agrícolas africanas e colocados nas plantações latifundiárias de açúcar, tabaco, café, anil, algodão e também na exploração do ouro. As fases principais da escravatura dos negros na América obedeceram a uma cronologia concordante com a expansão destas actividades. Os lucros provenientes do comércio transatlântico de escravos representavam apenas uma fracção dos ganhos que os “donos” dos escravos obtinham com o seu trabalho. A trilogia povoamento-colonização-escravatura foi a dominante da expansão ultramarina da Europa Ocidental e representou, na época, a maior expressão de relações interculturais entre os povos euro-afro-americanos.

A escravatura constituiu, na sua fase avançada, uma etapa indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, pois tornou possível a industrialização através duma intensa acumulação de capital. Mas, em contrapartida, foi a industrialização com as suas necessidades de utilização da tecnologia e de formação de trabalhadores qualificados que rapidamente tornou a instituição escravista obsoleta e ultrapassada. A escravatura como forma de produção só foi mantida pelo capitalismo enquanto contribuía para o seu próprio desenvolvimento. O arranque económico da Europa Ocidental foi largamente determinado, sobretudo no século XVIII, período de maior intensidade do tráfico de escravos, pela interconexão estabelecida entre a colonização da América e a utilização de escravos africanos na construção de novos espaços e de novas estruturas económicas.

A base da existência de escravos e da sua transformação em homens livres não se pode ir buscar apenas a razões de índole moral, política ou ideológica, mas sobretudo à estrutura económica da época. A estrutura escravista representou, durante alguns milénios, uma instituição tradicional na generalidade dos países então mais avançados; era considerada indispensável à vida e ao progresso social, pelo que não chocava a consciência dos que a exerciam. A existência da instituição da escravatura era considerada um fenómeno natural. Só quando deixou de ser portadora de progresso e útil ao capitalismo foi defendida a sua abolição na Europa e na América. Para o seu desenvolvimento era necessário libertar todos os potenciais trabalhadores, tornando-os disponíveis para a agricultura latifundiária e para a indústria baseada no trabalho assalariado.

Por sua vez, a abolição da escravatura constituiu, na altura, uma catástrofe económica para os escravos libertos que não dispunham de condições de adaptação rápida a um novo contexto como produtores.

Nos nossos dias, a escravatura desapareceu oficialmente, mas continua a subsistir em certos países sob a forma de trabalho forçado.